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segunda-feira, 12 de novembro de 2012



"ÁGUA EM PINGOS"

A chuva tem o condão de lembrar a sua existência.
O toque de frescura da vida. 
Som sorridente. Suavidade agradável da água em pingos, caindo pesadamente.
Como a imagem, vasculhada numa memória tamanha, ocupando espaço reservado ao que ainda deviria de vir. 
Sinal do querer reviver. 
O que viveu e sentiu, vivendo sem o sentido de querer.
A saudade despertada pelo som dos risos. 
Da água dividida em pingos. Dessa  chuva, que se faz notar.

Autoria: 
TITO COLAÇO
11.11.12



Excerto do "Livro do Desassossego"                     (BERNARDO SOARES/Fernando Pessoa) 



"Agir com os outros."




“Assim como, quer o saibamos quer não, temos todos uma metafísica, assim também, quer o queiramos quer não, temos todos uma moral. 
Tenho uma moral muito simples – não fazer a ninguém nem mal nem bem. 
Não fazer a ninguém mal, porque não só reconheço nos outros o mesmo direito que julgo que me cabe, de que não me incomodem, mas acho que bastam os males naturais para mal que tenha de haver no mundo. 
Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros uma amabilidade de viagem. 
Não fazer bem, porque não sei o que é o bem, nem se o faço quando julgo que o faço. 
Sei eu que males produzo se dou esmola? Sei eu que males produzo se educo ou instruo? Na dúvida, abstenho-me. 
E acho, ainda, que auxiliar ou esclarecer é, em certo modo, fazer o mal de intervir na vida alheia. 
A bondade é um capricho temperamental: não temos o direito de fazer os outros vítimas de nossos caprichos, ainda que de humanidade ou de ternura. Os benefícios são coisas que se infligem; por isso os abomino friamente.

Se não faço o bem, por moral, também não exijo que mo façam. Se adoeço, o que mais me pesa é que obrigo alguém a tratar-me, coisa que me repugnaria de fazer a outrem. 
Nunca visitei um amigo doente. Sempre que, tendo eu adoecido, me visitaram, sofri cada visita como um incómodo, um insulto, uma violação injustificável da minha intimidade decisiva. 
Não gosto que me dêem coisas; parecem com isso obrigar-me a que as dê também – aos mesmos ou a outros, seja a quem for.

(…)

Nunca amei ninguém. 
O mais que tenho amado são sensações minhas – estados da visualidade consciente, impressões da audição desperta, perfumes que são uma maneira de a humildade do mundo externo falar comigo, dizer-me coisas do passado (tão fácil de lembrar pelos cheiros) -, isto é, de me darem mais realidade, mais emoção, que o simples pão a cozer lá dentro na padaria funda, como naquela tarde longínqua em que vinha do enterro do meu tio que me amara tanto e havia em mim vagamente a ternura de um alívio, não sei bem de quê.

E esta a minha moral, ou a minha metafísica, ou eu: Transeunte de tudo – até de minha própria alma -, não pertenço a nada, não desejo nada, não sou nada – centro abstracto de sensações impessoais, espelho caído sentiente virado para a variedade do mundo. Com isto, não sei se sou feliz ou infeliz; nem me importa.

(…)

Colaborar, ligar-se, agir com outros, é um impulso metafisicamente mórbido. A alma que é dada ao indivíduo, não deve ser emprestada às suas relações com os outros. O facto divino de existir não deve ser entregue ao facto satânico de coexistir.

Ao agir com outros perco, ao menos, uma coisa – que é agir só.

Quando me entrego, embora pareça que me expando, limito-me. Conviver é morrer. Para mim, só a minha autoconsciência é real; os outros são fenómenos incertos nessa consciência, e a que seria mórbido emprestar uma realidade muito verdadeira.”


TITO COLAÇO
12.11.12