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segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Que desce, em espirais, da imensidade...

Evolução

Fui rocha em tempo, e fui no mundo antigo
tronco ou ramo na incógnita floresta...
Onda, espumei, quebrando-me na aresta
Do granito, antiquíssimo inimigo...

Rugi, fera talvez, buscando abrigo
Na caverna que ensombra urze e giesta;
O, monstro primitivo, ergui a testa
No limoso paúl, glauco pascigo...

Hoje sou homem, e na sombra enorme
Vejo, a meus pés, a escada multiforme,
Que desce, em espirais, da imensidade...

Interrogo o infinito e às vezes choro...
Mas estendendo as mãos no vácuo, adoro
E aspiro unicamente à liberdade.


Antero de Quental
"Sonetos"

31.12.12

"Mesmo eu, que sonho tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge..."



Excertos do "Livro do Desassossego" de Fernando Pessoa



























"Querer compreender o Universo é ser menos que homem,porque ser homem é saber que se não compreende. Trazem-me a fé como um embrulho fechado numa salva alheia. Querem que o aceite, mas que não o abra. Trazem-me a ciência, como uma faca num prato, com que abrirei as folhas de um livro de páginas brancas. Trazem-me a dúvida, como pó dentro de uma caixa; mas para que me
trazem a caixa se ela não tem senão pó"

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"Mesmo eu, que sonho tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas aparecem-me
nítidas. Esvai-se a névoa de que me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a carne da minha alma.
Todos os pesos visíveis de objectos me pesam por a alma dentro. A minha vida é como se me
batessem com ela"

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"O homem não deve poder ver a sua própria cara. Isso é o que há de mais terrível. A Natureza deu-lhe o dom de não a poder ver, assim como de não poder fitar os seus próprios olhos.Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto. E a postura, mesmo, que tinha de tomar, era simbólica. Tinha de se curvar, de se baixar para cometer a ignomínia de se ver.O criador do espelho envenenou a alma humana."

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"Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção. Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser. Tudo o que não é meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim. Nunca amei senão coisa nenhuma.
Nunca desejei senão o que nem podia imaginar. À vida nunca pedi senão que passasse por mim sem que eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um sonho longínquo. Nas minhas próprias
paisagens interiores, irreais todas elas, foi sempre o longínquo que me atraiu, e os aquedutos que se esfumavam – quase na distância das minhas paisagens sonhadas, tinham uma doçura de sonho em relação
às outras partes da paisagem - uma doçura que fazia com que eu as pudesse amar."

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"Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram! O que eu sinto quando penso no passado que tive no tempo real, quando choro sobre o cadáver da vida da minha infância ida, isso mesmo não atinge o fervor doloroso e trémulo com que choro sobre não serem reais as figuras humildes dos meus sonhos, as próprias figuras secundárias que me recordo de ter visto uma só vez, por acaso, na minha pseudo vida, ao virar uma esquina da minha visionação, ao passar por um portão numa rua que subi e percorri por esse sonho fora."

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"Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo, um bocado de sossego com um bocado de pão, não me pesar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim. Isto mesmo me foi negado, como quem nega a esmola não por falta de boa alma, mas para não ter que desabotoar o casaco.

Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa, uma espécie de oração, uma semelhança de clamor. Mas a reacção contra mim desce-me da inteligência... Vejo-me no quarto andar alto da Rua dos Douradores, assisto-me com sono; olho, sobre o papel meio escrito, a vida vã sem beleza e o cigarro barato que a expender estendo sobre o mata-borrão velho. Aqui eu, neste quarto andar, a interpelar a vida!, a dizer o que as almas sentem!, a fazer prosa como os génios e os célebres! Aqui, eu, assim!..."

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"Só uma vez fui verdadeiramente amado. Simpatias, tive-as sempre, e de todos. Nem ao mais casual tem sido fácil ser grosseiro, ou ser brusco, ou ser até frio para comigo. Algumas simpatias tive que, com auxílio meu, poderia – pelo menos talvez – ter convertido em amor ou afecto. Nunca tive paciência ou atenção do espírito para sequer desejar empregar esse esforço.

A princípio de observar isto em mim, julguei – tanto 'nos desconhecemos – que havia neste caso da minha alma uma razão de timidez. Mas depois descobri que não havia; havia um tédio das emoções, diferente do tédio da vida, uma impaciência de me ligar a qualquer sentimento contínuo, sobretudo quando houvesse de se lhe atrelar um esforço prosseguido. Para quê? pensava em mim o que não pensa. Tenho a subtileza bastante, o tacto psicológico suficiente para saber o «como»; o «como do como» sempre me escapou. A minha fraqueza de vontade começou sempre por ser uma fraqueza da vontade de ter vontade. Assim me sucedeu nas emoções como me sucede na inteligência, e na vontade mesma, e em tudo quanto é vida.

Mas daquela vez em que uma malícia da oportunidade me fez julgar que amava, e verificar deveras que era amado, fiquei, primeiro, estonteado e confuso, como se me saíra uma sorte grande em moeda inconvertível. Fiquei, depois, porque ninguém é humano sem o ser, levemente envaidecido; esta emoção, porém, que pareceria a mais natural, passou rapidamente. Sucedeu-se um sentimento difícil de definir, mas em que se salientavam incomodamente as sensações de tédio, de humilhação e de fadiga.

De tédio, como se o Destino me houvesse imposto uma tarefa em serões desconhecidos. De tédio, como se um novo dever – o de uma horrorosa reciprocidade – me fosse dado com a ironia de um privilégio, que eu me teria ainda que maçar, agradecendo-o ao Destino. De tédio, como se me não bastasse a monotonia inconsistente da vida, para agora se lhe sobrepor a monotonia obrigatória de um sentimento definido.

E de humilhação, sim, de humilhação. Tardei em perceber a que vinha um sentimento aparentemente tão pouco justificado pela sua causa. O amor a ser amado deveria ter-me aparecido. Deveria ter-me envaidecido de alguém reparar atentamente para a minha existência como ser-amável. Mas, à parte o breve momento de real envaidecimento, em que todavia não sei se o pasmo teve mais parte que a própria vaidade, a humilhação foi a sensação que recebi de mim. Senti que me era dada uma espécie de prémio destinado a outrem – prémio, sim, de valia para quem naturalmente o merecesse.

Mas fadiga, sobretudo fadiga – a fadiga que passa o tédio. Compreendi então uma frase de Chateaubriand que sempre me enganara por falta de experiência de mim mesmo. Diz Chateaubriand, figurando-se em Renê, «amarem-o cansava-o» – on le fatigait en Paimant. Conheci, com pasmo, que isto representava uma experiencia idêntica à minha, e cuja verdade portanto eu não tinha o direito de negar.

A fadiga de ser amado, de ser amado deveras! A fadiga de sermos o objecto do fardo das emoções alheias! Converter quem quisera ver-se livre, sempre livre, no moço de fretes da responsabilidade de corresponder, da decência de se não afastar, para que se não suponha que se é príncipe nas emoções e se renega o máximo que uma alma humana pode dar. A fadiga [de] se nos tornar a existência uma coisa dependente em absoluto de uma relação com um sentimento de outrem! A fadiga de, em todo o caso, ter forçosamente que sentir, ter forçosamente, ainda que sem reciprocidade, que amar um pouco também!

Passou de mim, como até mim veio, esse episódio na sombra. Hoje não resta dele nada, nem na minha inteligência, nem na minha emoção. Não me trouxe experiência alguma que eu não pudesse ter deduzido das leis da vida humana cujo conhecimento instintivo albergo em mim porque sou humano. Não me deu nem prazer que eu recorde com tristeza, ou pesar que eu lembre com tristeza também. Tenho a impressão de que foi uma coisa que li algures, um incidente sucedido a outrem, novela de que li metade, e de que a outra metade faltou, sem que me importasse que faltasse, pois até onde a li estava certa, e, embora não tivesse sentido, tal era já que lhe não poderia dar sentido a parte faltante, qualquer que fosse o seu enredo.

Resta-me apenas uma gratidão a quem me amou. Mas e uma gratidão abstracta, pasmada, mais da inteligência do que de qualquer emoção. Tenho pena que alguém tivesse tido pena por minha causa; é disso que tenho pena, e não tenho pena de mais nada.

Não é natural que a vida me traga outro encontro com as emoções naturais. Quase desejo que apareça para ver como sinto dessa segunda vez, depois de ter atravessado toda uma extensa análise da primeira experiência. É possível que sinta menos; é também possível que sinta mais. Se o Destino o der, que o dê. Sobre as emoções tenho curiosidade. Sobre os factos, quaisquer que venham a ser, não tenho curiosidade alguma. "

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"Tudo se me evapora. A minha vida inteira, as minhas recordações, a minha imaginação e o que contém, a minha personalidade, tudo se me evapora. Continuamente sinto que fui outro, que senti outro, que pensei outro. Aquilo a que assisto é um espectáculo com outro cenário. E aquilo a que assisto sou eu.

Encontro às vezes, na confusão vulgar das minhas gavetas literárias, papéis escritos por mim há dez anos, há quinze anos, há mais anos talvez. E muitos deles me parecem de um estranho; desreconheço-me neles. Houve quem os escrevesse, e fui eu. Senti-os eu, mas foi como em outra vida, de que houvesse agora despertado como de um sono alheio.

É frequente eu encontrar coisas escritas por mim quando ainda muito jovem - trechos dos dezassete anos, trechos dos vinte anos. E alguns têm um poder de expressão que me não lembro de poder ter tido nessa altura da vida. Há em certas frases, em vários períodos, de coisas escritas a poucos passos da minha adolescência, que me parecem produto de tal qual sou agora, educado por anos e por coisas. Reconheço que sou o mesmo que era. E, tendo sentido que estou hoje num progresso grande do que fui, pergunto onde está o progresso se então era o mesmo que hoje sou.

Há nisto um mistério que me desvirtua e me oprime.

Ainda há dias sofri uma impressão espantosa com um breve excerto do meu passado. Lembro-me perfeitamente de que o meu escrúpulo, pelo menos relativo, pela linguagem data de há poucos anos. Encontrei numa gaveta um escrito meu, muito mais antigo, em que esse mesmo escrúpulo estava fortemente acentuado. Não me compreendi no passado positivamente. Como avancei para o que já era? Como me conheci hoje o que me desconheci ontem? E tudo se me confunde num labirinto onde, comigo, me extravio de mim.

Devaneio com o pensamento, e estou certo que isto que escrevo já o escrevi. Recordo. E pergunto ao que em mim presume de ser se não haverá no platonismo das sensações outra anamnese mais inclinada, outra recordação de uma vida anterior que seja apenas desta vida...

Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?"

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"A minha imagem, tal qual eu a via nos espelhos, anda sempre ao colo da minha alma. Eu não podia ser senão curvo e débil como sou, mesmo nos meus pensamentos.
Tudo em mim é de um príncipe de cromo colado no álbum velho de uma criancinha que morreu sempre há muito tempo.
Amar-me é ter pena de mim. Um dia, lá para o fim do futuro, alguém escreverá sobre mim um poema, e talvez só então eu comece a reinar no meu Reino.
Deus é o existirmos e isto não ser tudo."

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"Tudo me cansa, mesmo o que me não cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.
Quem me dera ser uma criança pondo barcos de papel num tanque de quinta, com um dossel rústico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos reflexos sombrios da pouca água.
Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar.
Raciocinar a minha tristeza? Para quê, se o raciocínio é um esforço? e quem é triste não pode esforçar-se.
Nem mesmo abdico daqueles gestos banais da vida de que eu tanto quereria abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não possuo o de alma com que esforçar-me.
Quantas vezes me punge o não ser o manobrante daquele carro, o cocheiro daquele trem! qualquer banal Outro suposto cuja vida, por não ser minha, deliciosamente se me penetra de eu querê-la e se me penetra até de alheia!
Eu não teria o horror à vida como a uma Coisa. A noção da vida como um Todo não me esmagaria os ombros do pensamento.
Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda-chuva contra um raio.
Sou tão inerte, tão pobrezinho, tão falho de gestos e de actos.
Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia.
Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de que me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhecê-las durezas. Todos os pesos visíveis de objectos me pesam por a alma dentro.
A minha vida é como se me batessem com ela."

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"Penso às vezes, com um deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu já não pertença, estas frases, que escrevo, durarem com louvor, eu terei enfim a gente que me «compreenda», os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser amado. Mas, longe de eu nela ir nascer, eu terei já morrido há muito. Serei compreendido só em éfígie, quando a afeição já não compense a quem morreu a só desafeição que houve, quando vivo.

Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever-nato de intérprete de uma parte do nosso século; e, quando o compreendam, hão-de escrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me acontecesse. E o que escrever isto será, na época em que o escrever, incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro. Porque os homens só aprendem para uso dos seus bisavós, que já morreram. Só aos mortos sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver."


30.12.12

segunda-feira, 12 de novembro de 2012



"ÁGUA EM PINGOS"

A chuva tem o condão de lembrar a sua existência.
O toque de frescura da vida. 
Som sorridente. Suavidade agradável da água em pingos, caindo pesadamente.
Como a imagem, vasculhada numa memória tamanha, ocupando espaço reservado ao que ainda deviria de vir. 
Sinal do querer reviver. 
O que viveu e sentiu, vivendo sem o sentido de querer.
A saudade despertada pelo som dos risos. 
Da água dividida em pingos. Dessa  chuva, que se faz notar.

Autoria: 
TITO COLAÇO
11.11.12



Excerto do "Livro do Desassossego"                     (BERNARDO SOARES/Fernando Pessoa) 



"Agir com os outros."




“Assim como, quer o saibamos quer não, temos todos uma metafísica, assim também, quer o queiramos quer não, temos todos uma moral. 
Tenho uma moral muito simples – não fazer a ninguém nem mal nem bem. 
Não fazer a ninguém mal, porque não só reconheço nos outros o mesmo direito que julgo que me cabe, de que não me incomodem, mas acho que bastam os males naturais para mal que tenha de haver no mundo. 
Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros uma amabilidade de viagem. 
Não fazer bem, porque não sei o que é o bem, nem se o faço quando julgo que o faço. 
Sei eu que males produzo se dou esmola? Sei eu que males produzo se educo ou instruo? Na dúvida, abstenho-me. 
E acho, ainda, que auxiliar ou esclarecer é, em certo modo, fazer o mal de intervir na vida alheia. 
A bondade é um capricho temperamental: não temos o direito de fazer os outros vítimas de nossos caprichos, ainda que de humanidade ou de ternura. Os benefícios são coisas que se infligem; por isso os abomino friamente.

Se não faço o bem, por moral, também não exijo que mo façam. Se adoeço, o que mais me pesa é que obrigo alguém a tratar-me, coisa que me repugnaria de fazer a outrem. 
Nunca visitei um amigo doente. Sempre que, tendo eu adoecido, me visitaram, sofri cada visita como um incómodo, um insulto, uma violação injustificável da minha intimidade decisiva. 
Não gosto que me dêem coisas; parecem com isso obrigar-me a que as dê também – aos mesmos ou a outros, seja a quem for.

(…)

Nunca amei ninguém. 
O mais que tenho amado são sensações minhas – estados da visualidade consciente, impressões da audição desperta, perfumes que são uma maneira de a humildade do mundo externo falar comigo, dizer-me coisas do passado (tão fácil de lembrar pelos cheiros) -, isto é, de me darem mais realidade, mais emoção, que o simples pão a cozer lá dentro na padaria funda, como naquela tarde longínqua em que vinha do enterro do meu tio que me amara tanto e havia em mim vagamente a ternura de um alívio, não sei bem de quê.

E esta a minha moral, ou a minha metafísica, ou eu: Transeunte de tudo – até de minha própria alma -, não pertenço a nada, não desejo nada, não sou nada – centro abstracto de sensações impessoais, espelho caído sentiente virado para a variedade do mundo. Com isto, não sei se sou feliz ou infeliz; nem me importa.

(…)

Colaborar, ligar-se, agir com outros, é um impulso metafisicamente mórbido. A alma que é dada ao indivíduo, não deve ser emprestada às suas relações com os outros. O facto divino de existir não deve ser entregue ao facto satânico de coexistir.

Ao agir com outros perco, ao menos, uma coisa – que é agir só.

Quando me entrego, embora pareça que me expando, limito-me. Conviver é morrer. Para mim, só a minha autoconsciência é real; os outros são fenómenos incertos nessa consciência, e a que seria mórbido emprestar uma realidade muito verdadeira.”


TITO COLAÇO
12.11.12

terça-feira, 29 de maio de 2012

Como se o modo como se diz, alterasse o que existe!






Acabo de ouvir num canal televisivo que uma determinada empresa construtora "rescindiu com 300 colaboradores". Está tudo errado nesta frase. No espírito e na letra. O mundo laboral parece ter sido liofilizado no discurso jornalístico corrente. Como se a palavra trabalho queimasse. Como se trabalhar fosse algo indigno. Como se um trabalhador devesse ocultar esta sua condição numa sociedade - e num continente inteiro, como bem revelam as estatísticas europeias - onde um posto de trabalho é um bem cada vez mais escasso.

Trabalho, palavra bíblica. "Bem basta a cada dia o seu trabalho", diz Jesus no Sermão da Montanha. Reescrita à luz da novilíngua dominante, quem trabalha deixou de ser trabalhador: é "funcionário" ou, de modo ainda mais eufemístico, "colaborador". Pela mesma lógica, não pode ser despedido mas "dispensado". Ou, de modo ainda mais eufemístico, alguma Alta Entidade da corporação empresarial "prescinde" dos seus serviços. Ou da sua colaboração.

Sempre me ensinaram que o discurso jornalístico, para ser eficaz e competente, devia descodificar todo o jargão encriptado, que obscurece a mensagem em vez de a tornar transparente. Nos dias que correm, sucede precisamente ao contrário: o jornalismo abdica demasiadas vezes de clarificar a mensagem, obscurecendo-a por cumplicidade activa com as "fontes" ou por mera preguiça intelectual.

No reino dos eufemismos, não se trabalha: "colabora-se". E ninguém é despedido: há apenas quem "cesse funções" ou veja os seus préstimos "prescindidos" por alguma entidade empregadora em fase de "reestruturação" ou "reavaliação" das potencialidades do mercado. Mas as coisas são o que são, mesmo que as palavras ardilosas procurem camuflar uma realidade nua e crua.

A empresa construtora despediu 300 trabalhadores. Assim mesmo, ponto final. A realidade, só por si, já é suficientemente dura. Não juntemos ao drama do despedimento a injúria de ver esta palavra banida do dicionário jornalístico quando está mais presente que nunca na vida real.




Publicado no Blogue: Delito de Opinião
Por por Pedro Correia 
 28.05.12

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Em resposta a este texto, oferece-me o seguinte comentário que enderecei ao autor do mesmo, apesar de entender o seu ponto de vista, tendo a minha ousadia de realçar, na minha opinião, o meu delito de opinião, o seguinte:


Não sei qual o problema, da terminologia das palavras que se empregue, quando se sabe o sentido da frase.
Não sei qual o problema, de quem escreve que opte por esta ou aquela palavra, sendo a intenção do significado, o importante.
Não sei qual o problema, de quem lê, quando sabe e entende o que se quis dizer.
O problema é este: muito se fala, fala-se e fartam-se de falar.
Os canais televisivos, as rádios, os blogues,..., há comentadores, comentaristas, especialistas, curiosos, académicos, políticos, e quem seja tudo isto junto, ex-tudo desde ex-políticos, ex-professores, ex-desportistas, ex-qualquer coisa,..., toda a gente, "todo o mundo" como dizem os brasileiros. Fala-se, falam e fartam-se de falar...
É este o problema, fala-se demais.
Não é que a livre expressão esteja mal, não! é o excesso dela. De falar por falar. Todos querem o seu tempo de antena. Todos e ao mesmo tempo.
É este o problema, fala-se muito e faz-se pouco.
Pouco, do que se deveria fazer: fazer-se mais e falar menos.
Não interessa trabalhar muito, muitas horas, pode-se trabalhar menos e melhor.
Não se devia dar importância à forma, mas ao conteúdo, não à estética mas ao interior, da realidade patente, visível a todos excepto a quem estiver enclausurado no seu universo imaginário, precisará de ouvir, de ler, de tanta notícia, de tantos comentários, de tantas pessoas, a toda a hora.
Como se fosse o modo como se diz, mudasse o que existe.



TITO COLAÇO
29.05.12

sexta-feira, 25 de maio de 2012

O genial Almada Negreiros (1893 - 1970) - Pintor e Poeta


O genial Almada Negreiros, conhecido como «Mestre Almada»




Artista e escritor polifacetado, José de Almada-Negreiros nasceu a 7 de abril de 1893, em S. Tomé e Príncipe, e morreu a 15 de junho de 1970, em Lisboa.







"ROSA DOS VENTOS"

http://www.truca.pt/ouro/s_outros/almada_negreiros_rosa_dos_ventos.mp3


Não foi por acaso que o meu sangue veio do sul
se cruzou com o meu sangue que veio do norte
não foi por acaso que o meu sangue que veio do oriente
encontrou o meu sangue que estava no ocidente
não foi por acaso nada do que hoje sou
desde há muitos séculos se sabia
que eu havia de ser aquele onde se juntariam todos os sangues da terra
e por isso me estimaram através da História
ansiosos por este meu resultado que até hoje foi sempre futuro.
E aqui me tendes hoje
incapaz de não amar a todos
um por um
que todos são meus e me pertencem
e por isso mesmo lhes não perdoo faltas de amor!
Mas porque maldição me não entendem
se eu os entendo a todos?
Eu sei, eu sei porquê:
Falta-lhes a eles terem, como eu, a correr-lhes pelas veias todos os sangues da terra.
A lei é clara: ninguém ama senão os seus.
E os meus são os de todos os sangues da terra
mas, ó maldição que pesa sobre mim,
cada um dos sangues da terra não me inclui entre os seus!
Não pertenço a nenhum sangue de raça
sou da raça de todos os sangues,
o meu amor não tem condições que excluam criaturas
não é amor natural
é amor buscado por boas mãos
desde o primeiro dia das boas mãos
através de tempos desiguais e de estilos que se contradizem
com os olhos no futuro melhor
e a esperança convicta de que se ainda hoje não são todos como eu
é questão apenas de a humanidade viver outra vez
tanto como viveu até hoje,
ou de mais ainda,
é questão de mais tempo,
ainda mais tempo,
é o tempo que há-de fazer
o que apenas se pode atrasar,
Entretanto deixai que se convençam
aquelas experiências que ainda não se tinham feito
e ainda tão longe do realismo da redondeza da terra!
Entretanto deixai que os números se espantem
de que a totalidade seja sempre ainda mais pr'além!
Deixai os números instruir-se da verdadeira capacidade do infinito
deixai que a ciência prossiga em sua loucura galopante
explicando todas as suas falhas com desculpas geniais
enquanto não esgota a sua especialidade,
a especialidade de nos meter a todos nela,
o que é um estilo
um estilo mais
e não o último
porque nenhum estilo é o último senão a liberdade!
Deixai que milhões se juntem para formar uma força
enquanto outros isolados se reconheçam o bastante para ter a liberdade,
deixai-os a ambos que nada os deterá,
eles são duas metamorfoses minhas
das quais mais conservo uma vaga memória.
Tal qual eles agora, eu já estive num e noutros antigamente,
quando na História
nos altos e baixos da minha ascendência
tomei também cada metamorfose minha
por minha definitiva realidade.
Deixai primeiro que o sangue deles
leve tanto tempo a dar a volta ao mundo
como o que levou o meu sangue ou a História do Homem.
Deixai que a natureza consinta ainda em parcialidades que o tempo consente temporariamente.
Deixai que o ardente desejo de totalidade, não possa ainda funciona
senão pelo meio ou pelas pontas.
Deixai que cada especialidade acabe de vez com a sua impertinência Deixai que os sangues mais intactos morram por isolamento
ou espalhem morte e terror com o verdadeiro medo a certeza de acabar.
Deixai que a Democracia e a Aristocracia
se cansem de não caber isoladas em parte nenhuma
já que não cabem juntas no nosso entendimento.
Deixai que Uma e Outra esgotem todos os quadriláteros onde a Democracia não cabe
e, por conseguinte, a Aristocracia não sai.
Deixai sumir-se até ao fim a confusão de Nobreza e Fidalguia com
Aristocracia.
Deixai que a Democracia repare que é um corpo sem cabeça
e que a Aristocracia uma cabeça sem corpo.
E é o corpo que há-de buscar a cabeça
ou a cabeça que há-de buscar o corpo?
Esperai que venha esta resposta.
Entretanto deixai que a liberdade também esteja à espera desta resposta.
Deixai que se expliquem por si coisas terrenas que nada mais ultrapassem do que o nosso entendimento
condenado a acreditar nos sentidos
mais do que em todo o trajecto desde o princípio do mundo até hoje.


 Da autoria de Almada Negreiros:  Famoso retrato de FERNANDO PESSOA


"ODE A FERNANDO PESSOA"

Tu que tiveste o sonho de ser a voz de Portugal
tu foste de verdade a voz de Portugal
e não foste tu!
Foste de verdade, não de feito, a voz de Portugal.
De verdade, e de feito só não foste tu.
A Portugal, a voz vem-lhe sempre depois da idade
e tu quiseste acertar-lhe a voz com a idade
e aqui erraste tu,
não a tua voz de Portugal
não a idade que já era de hoje.
Tu foste apenas o teu sonho de ser a voz de Portugal
o teu sonho de ti
o teu sonho dos portugueses
só sonhado por ti.
Tu sonhaste a continuação do sonho português
somados todos os séculos de Portugal
somados todos os vários sonhos portugueses
tu sonhaste a decifração final
do sonho de Portugal
e a vida que desperta depois do sonho
a vida que o sonho predisse.
Tu tiveste o sonho de ser a voz de Portugal
tu foste de verdade a voz de Portugal
e não foste tu!
Tu ficaste para depois
E Portugal também.
Tu levaste empunhada no teu sonho
a bandeira de Portugal
vertical
sem pender para nenhum lado
o que não é dado pra portugueses.
Ninguém viu em ti, Fernando,
senão a pessoa que leva uma bandeira
e sem a justificação de ter havido festa.
Nesta nossa querida terra onde ninguém a ninguém admira
e todos a determinados idolatram.
Foi substituído Portugal pelo nacionalismo
que é maneira de acabar com partidos
e de ficar talvez o partido de Portugal
mas não ainda talvez Portugal!

Portugal fica para depois
e os portugueses também
como tu.


Almada Negreiros



quinta-feira, 17 de maio de 2012

Não é menos Estado, mas sim melhor Estado!


Ocupar o comum


Para os defensores do neoliberalismo, não faz mal acabar com serviços e actividades reconhecidamente eficientes, de qualidade e utilidade social, desde que estejam reunidas pelo menos uma destas condições: que seja um modo de transferir para a esfera do privado recursos que antes pertenciam ao público, promovendo oportunidades de negócio; que seja um modo de eliminar do campo das experiências dos cidadãos formas de fazer em comum que possam favorecer o seu apego a instituições públicas, a finalidades não-lucrativas, a lógicas cooperativas e participativas.


É nesta engenharia de reconfiguração da sociedade que se enquadram o anunciado encerramento da Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, ou o despejo da Es.Col.A. da Fontinha, no Porto. Por muito que a violência demolidora da vida em sociedade a que estamos a assistir o possa sugerir, o que está em causa não é, para o projecto neoliberal, acabar com o Estado, mas antes desviá-lo das suas funções sociais e redimensioná-lo à medida da avidez de mercados instáveis e de interesses privados. Não está também em causa acabar com toda e qualquer iniciativa de cidadãos que se mobilizem autonomamente para intervir na sociedade, mas tão-somente a daqueles que o fazem, até em regime de voluntariado, associando a supressão das falhas dos poderes públicos a propostas transformadoras das comunidades que não sejam redutíveis aos valores do pensamento único, à forma económica da troca mercantil e do lucro, ao formato de gestão do «empreendedorismo social».


O neoliberalismo nada tem contra haver Estado suficiente para parcerias público-privadas desastrosas para o erário público; para tráficos de influências e garantias de proveitosas carreiras; para salvamentos de bancos nacionais impostos por um sistema financeiro internacional que confisca a democracia; para sistemas educativos que formem elites ou para sistemas de saúde que se ocupem dos doentes que não são rentáveis para a medicina privada. O neoliberalismo nada tem contra haver na sociedade autonomia suficiente canalizada para o assistencialismo ou a caridade, desde que essa acção não questione intelectualmente, nem abale através de práticas, o imobilismo trágico das desigualdades socioeconómicas e a irracionalidade de um modelo económico iníquo.


Valores, práticas e finalidades são o que distingue os projectos em confronto nas sociedades. São eles que separam, por um lado, os que concebem uma comunidade como organização em que se afere, de acordo com modalidades democráticas e participadas, quais os bens comuns a prosseguir; e, por outro, os que nela vêem um somatório de interesses individuais e privados em que os mecanismos da competição farão emergir os mais fortes e, supletivamente, obrigarão a encontrar as formas de assistência aos mais fracos que eternizarão a rigidez dos lugares sociais. É neste antagonismo quanto a valores, práticas e finalidades que reside o essencial das escolhas de sociedade. Tudo o mais diz respeito aos actores que dão corpo a essas escolhas e às alianças e contágios entre as diferentes esferas em que os actores se movem; no quadro das relações de força em cada momento existentes, essas alianças e contágios podem ser potenciados ou impedidos.


Se os efeitos que se quer alcançar forem a densificação da democracia, a restauração dos serviços públicos e do Estado social e a reconstrução de comunidades de bem-estar, será que mantém utilidade e capacidade explicativa uma grelha de análise que encerre nos vértices de um triângulo três pólos que não se sobrepõem nem têm afinidades a aproximá-los ou separá-los? Com efeito, a imagem que nos habita tende a ser a de um triângulo − mesmo que o possamos ver equilátero, isósceles ou escaleno. Ele representa três sectores da sociedade separados e estanques: o público, o privado e o terceiro sector (ou economia social). A mesma figura geométrica ressurge se pensarmos em termos de três esferas de actividade traduzidas no Estado, no mercado e na actividade cooperativa ou solidária. Dada a correlação de forças, esta imagem tem estado revestida por uma capa de naturalidade e fixidez, quando ela traduz uma visão que não é neutral, mas política. E tem servido, sobretudo, para permitir que ocorram longe da visibilidade do debate público todas as formas de disputa e de captura que o poder, cada vez mais forte, dos mercados (isto é, dos interesses privados que estes representam) tem vindo a operar em relação aos sectores público e cooperativo.


Há por isso vantagem em encontrar arranjos e parcerias alternativas que estilhacem estas lógicas que se encontram em acção e que, mantendo a noção de que todos estes três pólos são construções em aberto, desloque a aliança estratégica para o lado do público e do cooperativo. As modalidades dessa redefinição de alianças podem ir da simples cedência de espaços públicos até outras mais entrosadas, como por exemplo a extensão dos âmbitos de actividade em que se ensaiam formas económicas não-mercantis e em que se beneficia mutuamente de economias de escala.


A constituição desta aliança, mais ou menos formal, fará com que o campo do público e da cidadania tenha mais condições para disputar ao privado o conjunto de valores, práticas e finalidades que projecta para a sociedade. Talvez seja dos contágios entre racionalidades de serviço público, participação democrática, organização cooperativa, não desbaratamento de recursos com a exploração e o lucro, e prossecução de objectivos de sustentabilidade ecológica e de bem-estar social que possam vir a surgir alianças duradouras entre o Estado e as organizações de cidadãos − movimentos, associativismo, economia social − que fortaleçam ambos em detrimento dos interesses privados. 

Ocupar este espaço do comum é uma forma de romper com o consenso neoliberal assente no pensamento único, na prática única. É, certamente, uma forma de reapropriação do futuro.



Le Monde diplomatique - edição portuguesa
por Sandra Monteirosexta-feira 4 de Maio de 2012




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Não é menos Estado, mas sim melhor Estado 

Recomendo leitura:

Economia e Política: Uma Abordagem Dialética da Escolha Pública - Uma abordagem dialética da escolha pública


Ao texto publicado no "Le Monde Diplomatique" supra-mencionado, teço o seguinte comentário ou seguintes considerações:

Coloca-se antes demais, não uma questão ideológica, mas a da teoria da escolha pública que ao longo das últimas décadas, a colocou como principal crítica teórica de outra corrente (essa essencialmente económica) que fundamenta a intervenção do Estado na economia — a economia do bem-estar (welfare economics).

Enquanto esta se centrava na análise dos «fracassos de mercado» que justificavam a intervenção correctora do Estado, a teoria da 
escolha pública veio clarificar os «fracassos do governo» e os limites da intervenção desse mesmo Estado.

Naturalmente a public choice foi aproveitada ideologicamente por todos aqueles que defendem uma menor intervenção 
do Estado na economia, em particular pelos neoliberais. Contudo, a teoria da escolha pública não deve ser confundida com o pensamento neoliberal. A pergunta é ambígua, pois a teoria da escolha pública é um programa de investigação (no sentido utilizado por Lakatos) e o neoliberalismo é uma ideologia.
A teoria da escolha pública é usualmente definida como a aplicação do método económico a problemas que geralmente são estudados no âmbito da ciência política: grupos de interesse, sistemas eleitorais, partidos políticos e a constituição, entre outros. Este método é aquele que tem sido utilizado com algum sucesso na microeconomia: o individualismo metodológico.

Este método assenta, em primeiro lugar, em que a unidade base de análise é o indivíduo, ou seja, que só este é sujeito de acções individuais ou colectivas e só ele tem preferências, valores, motivações. Neste sentido, grupos, organizações ou instituições privadas ou públicas são sempre um conjunto de indivíduos, não existindo nenhuma concepção orgânica «acima»
desses indivíduos que seja observável e analisável.

A postura metodológica individualista resulta de que para muitos economistas é a única operacional, ou seja, mesmo que, por hipótese, se aceite a existência de entidades orgânicas supra-individuais com vontade própria (grupos, povos, sociedades), torna-se impossível determinar qual seria essa vontade. A incapacidade de a conhecermos não pode logicamente levar à negação dessas entidades, mas leva muitos economistas a adoptarem a posição de que qualquer análise deve basear-se numa postura metodológica individualista.

A abordagem da teoria da escolha pública é sobretudo processual, cada escolha colectiva, no processo político, é resultado das preferências dos agentes envolvidos na escolha (cidadãos num referendo, autarcas numa câmara municipal, deputados no parlamento) e das regras e procedimentos que permitem passar de preferências diversas de cada indivíduo para uma única escolha 
colectiva.
Um segundo elemento do individualismo metodológico é o postulado de que os indivíduos são instrumentalmente racionais, ou seja, que são capazes de escolher acções apropriadas para os objectivos que pretendem alcançar.

Se se considerasse que certas vezes os indivíduos são racionais e outras irracionais, qualquer análise que se pretendesse fazer previsão seria votada ao fracasso.

Finalmente, existe um terceiro elemento que muitas vezes vem sendo confundido com o de racionalidade, mas que convém distinguir, que é o de os indivíduos serem egoístas, ou seja, cuidarem essencialmente dos seus interesses pessoais.

Egoísmo e racionalidade nas escolhas são os principais atributos do homo oeconomicus.

Da mesma forma que há várias noções de racionalidade, há também diversas formas de entender o postulado motivacional do egoísmo. Uma delas, defendida por Stigler, pode ser posta nos seguintes termos: as pessoas são basicamente egoístas, o que não exclui a possibilidade de poderem ser em certas ocasiões altruístas, mas, quando em
situação de conflito interno entre duas acções que se excluem mutuamente, optarão pela egoísta.

Outra abordagem é defender o egoísmo como motivação fundamental da conduta, baseado numa perspectiva evolucionista de que num ambiente competitivo, os indivíduos adoptando motivações egoístas têm uma maior probabilidade de sucesso (real ou aparente) e isso leva a que indivíduos com outras motivações sintam um efeito de emulação e adoptem atitudes egoístas. Neste caso não se trata de uma perspectiva ontológica (ser egoísta), mas sim do 
resultado de um processo de evolução num determinado ambiente (tornar-se egoísta).
Dito por outras palavras, parece existir uma inconsistência em assumir que os agentes, quando actuam nos mercados privados, são egoístas, mas, quando actuam no «mercado» político, são altruístas e prosseguem o «interesse público». Esta tem sido a posição defendida por Buchanan em vários escritos que sustentam a sua abordagem da política «sem romance», onde defende que é necessário manter os mesmos postulados em relação à conduta humana, independentemente do contexto institucional.

Modelizar os agentes no processo político como egoístas é, na perspectiva de Buchanan, uma atitude de precaução. Ao pensar o sistema político do ponto de vista de que os indivíduos poderão querer utilizar o sistema em proveito próprio, leva a pensar em regras, procedimentos e instituições que evitem os piores abusos de poder e outras tentações políticas.


Neste sentido, o modelo pioneiro da Constituição americana, com a separação de poderes entre o executivo, o legislativo e o sistema judicial e as limitações constitucionais ao poder do executivo, baseou-se precisamente nos checks and balances necessários para que nenhuns indivíduos, numa qualquer instituição, possam estar numa situação de abuso de poder.
A versão «moderna» da democracia é mais simples e pragmática: trata-se apenas de um processo pelo qual certos indivíduos adquirem poder de decidir em nome de outrem através de um processo de competição pelo voto.
Pode-se dizer que está introduzida a ideia de que a democracia, o processo político democrático, pode ser analisado como um mercado competitivo, onde os agentes que nele actuam (políticos, cidadãos, funcionários públicos) têm basicamente motivações egoístas, onde, por exemplo, se assume que os políticos pretendem maximizar os votos.

Este postulado é por vezes criticado na base de que a motivação fundamental dos políticos é servir o «bem comum» e não maximizar votos. Há dois tipos de argumentos para defender o postulado da maximização dos votos. Em primeiro lugar, um político (ou um partido) que queira efectivamente implementar a sua noção de «bem comum» terá, antes de mais, de ser eleito 
e, portanto, deverá maximizar os votos com esse fim. Por outro lado, não há necessariamente contradição entre servir o interesse comum e maximizar votos.


De facto, o objectivo egoísta da maximização de votos está a servir a vontade da maioria (ou da maior minoria) numa forma semelhante à «mão invisível» de Adam Smith, onde o objectivo egoísta de maximização de lucros leva (em mercados competitivos) ao bem-estar colectivo.
Como em qualquer mercado privado, a competição política não é perfeita, mas em todo o caso em democracia existe sempre um certo grau de competição pelo voto do povo.
Este processo competitivo desenvolve-se não só no «mercado» político formal, o do voto nas eleições, como também no mercado
político informal, onde competem grupos de interesse.
A teoria da escolha pública veio clarificar os problemas inerentes à tomada de decisão colectiva e pôr a nú alguns problemas que hoje identificamos como os «fracassos do governo», ou melhor, do sector público e do sistema político: ineficiência da administração pública, ausência de incentivos, problemas com obtenção de informação acerca das preferências dos cidadãos, 
rigidez institucional, permeabilidade à actuação de lobbies, financiamento ilegal de partidos políticos, etc.


Esta visão mais realista do processo político, de certa forma, tem alterado um pouco o ideal democrático, e tem mostrado 
que eventualmente as aspirações desse ideal estavam demasiado elevadas em relação àquilo que o método democrático permite.


Na perspectiva da teoria da escolha pública, trata-se de comparar os «fracassos do governo» com os «fracassos do mercado», ou seja, perceber que, quer o mercado, quer o sector público, são instituições imperfeitas de afectar os recursos, e como tal o objectivo da análise é desenvolver uma análise institucional comparada, para que se consiga diminuir e clarificar estas imperfeições.
É preciso não confundir a teoria da escolha pública com a vulgarização neoliberal, que, naturalmente, utilizou os argumentos desenvolvidos no âmbito da teoria para reforçar a sua posição ideológica de apoiar o desenvolvimento dos mercados, com cada vez menos restrições de qualquer natureza, e ao mesmo tempo defender a redução da intervenção do Estado na economia.

O reducionismo ideológico é precisamente a redução, com um objectivo de persuasão política, de problemas que são por natureza pluridimensionais a uma única dimensão. Essa única dimensão é geralmente identificada, no espaço ideológico unidimensional, com a oposição: mais Estado versus mais mercado, e esta última opção é geralmente defendida pelos autores neoliberais.

É natural que, no contexto redutor desta oposição ideológica, os argumentos desenvolvidos no âmbito da teoria da escolha pública tenham sido utilizados pelos defensores de um maior papel para os mercados. Contudo, da mesma maneira que é falacioso o argumento (utilizado pelos economistas do bem-estar) de que a existência de «fracassos de mercado» leva logicamente a concluir que a intervenção governamental é necessária e superior, também é falacioso o argumento de que os «fracassos do governo»
indicam, por si só, que o alargamento dos mercados terá efeitos benéficos.

Qualquer generalização é abusiva e a tarefa, eventualmente árdua, da análise institucional comparada é precisamente a de estudar, caso a caso, as vantagens e as limitações de cada arranjo institucional.

Aquilo que a teoria da escolha pública aponta não é para menos Estado, mas sim para melhor Estado, sendo um aspecto amplamente consensual.
Facilmente entendível, a dificuldade crescente que um governo tem (qualquer que ele seja) em implementar as políticas que considera as mais correctas para o país e sobretudo as reformas que são necessárias (na educação, na saúde, na segurança social, no sistema fiscal, etc) serem implementadas mesmo que por via de um recurso de ajuda financeira internacional, obrigando a perdas de soberania nessas mesmas políticas nacionais, visando colmatar políticas reestruturativas, muitas das quais, medidas impopulares, das que não captam votos, por isso, tendo sido evitadas por sucessivos governos.

Para além das consequências imediatas na relativa incapacidade de resolver certos problemas, existe um outro problema sério: a desconfiança crescente que muitos cidadãos vão tendo em relação à capacidade das instituições democráticas, em resolver os seus problemas, por outras palavras, um certo descrédito na democracia, que se manifesta, entre outros factos, no alheamento crescente do exercício da cidadania, e simultaneamente em crescentes radicalicazações, notoriamente elucidativos pelos recentes acontecimentos nalguns países da União Europeia.


TITO COLAÇO
17.05.12

domingo, 8 de abril de 2012

"Essa sinistra guilhotina" - Prof.Doutor Fernando Paulo Baptista


O meu agradecimento pelo excelente estudo. Brilhante e elucidativo trabalho, do senhor Professor Doutor Fernando Paulo Baptista, ilustre filólogo, sobre o que muitos defensores desta atrocidade à nossa "madre língua" deveriam saber, por quem sabe fundamentar erudita e exemplarmente com todos os pontos nos is, os factos, a verdadeira percepção, da projecção que as alterações do (Des)Acordo acarretam!
Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico. Leia, assine e divulgue!
Bem haja Professor!!!             
TITO COLAÇO
07.04.12



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"Essa sinistra guilhotina -  Fernando Paulo Baptista.

Essa sinistra “guilhotina” liquidatária das matrizes profundas da Língua Portuguesa, esfingicamente instalada e escondida na Base IV do actual acordo ortográfico (1990), deveria ser a nossa preocupação nuclear pela defesa da «madre língua»!…
– 1 –
A desassossegada e fulcral preocupação que o actual acordo ortográfico/1990 não pode deixar de suscitar reside no facto de impor uma «grafia» (repare-se bem: uma «grafia»!…) fono-cêntrica ou orali-cêntrica, assente na volátil e efémera “substância” dos «sons», dos «fonemas» («verba volant»), e não, na “substancialidade” estruturante, consistenciante, estabilizadora e permansiva das «letras», dos «grafemas» («scripta manent») de que, pelo menos desde os gramáticos, retóricos, dialécticos e filólogos clássicos (e.g.: Dionísio de Trácia, Apolónio Díscolo, Marco Terêncio Varrão, Marco Fábio Quintiliano, Valério Probo, Élio Donato, Prisciano Cesariense…), as regulae, as gramáticas, os dicionários e as antologias têm sido a expressão concreta, garantística e profiláctica[1].
– 2 –
Na verdade, contrariando o princípio enunciado pelo clarividente linguista brasileiro Luiz Carlos Cagliari[2], segundo o qual, «a grafia tem como objetivo maior permitir a leitura, e não, representar uma pronúncia», “escrever como se pronuncia” (como se fala…) passou a ser o leitmotiv teleológico e condutor deste novo acordo!…
– 3 –
Mas, afinal, o que é que, através de um tão mal engendrado e tão contraditório normativo acordatário destinado a regulamentar, a unificar e a normalizar a forma grafémica das práticas escritas da língua como é este novo acordo ortográfico (que, importa dizê-lo frontalmente, configura objectivamente um “monumento” à incongruência epistemológica e à incompetência linguística, filológica e pedagógico-didáctica!…), sim, o que é que, com um tal “pacto regulatório”, se pretende normalizar, uniformizar e estabilizar?… É a «pronúncia», ou seja, «o modo oral» de realização da língua, que se concretiza através dos actos de falar e de ouvir, ou é «o modo escrito» de realização dessa mesma língua, que se concretiza através dos actos de escrever e de ler?…
– 4 –
Se é «a pronúncia», há que elaborar, então, um acordo que, com toda a propriedade, deverá passar a designar-se de «acordo ortoépico» ou «acordo ortofónico», e não, «acordo ortográfico»; esse acordo, tomaria como referencial um «padrão fonético-fonológico» o mais alargado possível, com a intervenção dos melhores foneticistas e fonologistas da CPLP (e recuperando a parte melhor do trabalho, a esse nível, realizado pela comissão liderada por Gonçalves Viana para o acordo de 1911…), por forma a poder vir a funcionar como uma espécie de «unicode ortofónico» ou de «alfabeto fonético-fonológico universal» para toda a CPLP.



– 5 –
Se, pelo contrário, o que se pretende realmente normalizar, uniformizar e estabilizar são «as práticas escritas», com especial destaque para o «vocabulário» (sobretudo, em sua expressão mais rigorosa e elaborada…), então, há que pensar num acordo verdadeiramente «ortográfico», isto é, num normativo que seja preservador e respeitador da essência grafémica da língua escrita e que não guilhotine nem liquide os constituintes “genómicos” ou “adeânicos” das raízes lexicais que integram as bases genealógico-genéticas eruditas, provenientes do latim e do grego, porque são o suporte ou sustentáculo do património lexical mais rigoroso e mais denso das principais línguas românicas, património que também é transversal ao inglês e ao próprio alemão.

– 6 –
Cabe sublinhar que essas bases ou matrizes clássicas eram escrupulosamente respeitadas e preservadas pelo anterior acordo ortográfico de 1945 até aos limites da consensualidade possível que, àquela data, foi exemplarmente construída pelos filólogos e linguistas das duas delegações negociais: a portuguesa e a brasileira…

– 7 –
Deve salientar-se, ainda e a propósito, que este acordo de 1945 (apesar de se afastar [à semelhança, por exemplo, da língua espanhola...] do modelo ortográfico mais rigorosamente etimologista e tradicional dos «ph», dos «th» e dos «y», que esteve em vigor até 1911 e que foi seguido pacificamente, até então, por Portugal e pelo Brasil…), era, efectivamente (dentro dos limites da perfeição possível…), um normativo bem elaborado, obra de prestigiados filólogos e académicos portugueses e brasileiros, de que se destacam dois grandes nomes de referência: Rebelo Gonçalves, do lado de Portugal, e Sá Nunes, do lado do Brasil.

– 8 –
E a questão que, à partida, se coloca é a seguinte: o acordo ortográfico de 1945 (revelador de uma sintonia fundamental com o espanhol e demais línguas românicas…) alguma vez dificultou o processo de alfabetização escolar e de aprendizagem da escrita e da leitura, alguma vez impediu o pluralismo e a polifonia das pronúncias mais diversas em Portugal, no Brasil, em toda a CPLP e na diáspora, alguma vez travou o normal curso da “evolução” da língua portuguesa ou obstaculizou a sua projecção e dignificação no mundo ou o alargamento dos mercados e o respectivo dinamismo negocial, argumentos estes de que se servem os devotos defensores do “pronúncio-cêntrico” actual acordo, de modo acrítico, sofístico e demagógico?[3]…

– 9 –
Importa, igualmente, interrogarmo-nos quanto às razões que terão impedido a não realização do prometido «debate aprofundado», a não publicação do previsto «Vocabulário ortográfico da língua portuguesa», questionarmo-nos, em suma, sobre o porquê da marginalização, silenciamento ou ostracismo de pareceres e estudos tão importantes, tão consistentes e tão bem fundamentados como são, entre outros, os dos Profs. Óscar Lopes, Maria Helena Mira Mateus, Ivo de Castro, Inês Duarte, António Emiliano, Maria Filomena Gonçalves, etc…, etc…[4]

– 10 –
Do mesmo modo, se afigura pertinente desmascarar a ostentatória postura de quantos citam, como ornamento de uma pretensa cultura poético-literária, o famoso exergo pessoano — «Minha pátria é a língua portuguesa» —, exergo esse, usurado de modo amnésico, se não mesmo ignaro, quando esquecem ou desconhecem que, logo a seguir a essa tão vulgarizada como trivializada fórmula, o seu heterónimo autor textual, Bernardo Soares, inscreveu, nesse mesmo andamento sintáctico, afirmações relacionadas com a expressão escrita da língua portuguesa e com a questão da «ortografia», carregadas de tão fino simbolismo como são as seguintes:

«As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas (…). Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal (…). Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto (…) a página mal escrita (…), a ortografia sem ípsilon (…). Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha»[5].

– 11 –
Mas estas palavras, não só põem em inquestionável e mais do que justificado relevo o “modo escrito” da língua, mas também estão em clara e flagrante sintonia com a lapidar argumentação que Fernando Pessoa[6] desenvolveu no contexto do seu lúcido e frontal combate contra o acordo ortográfico de 1911, acordo, também ele «pronúncio-cêntrico», que, como sabemos, «liquidou», sem apelo nem agravo, a tradicional grafia etimológica do «ph» de «pharmacia», do «th» de «theatro» e do «y» de «lagryma»[7], afastando, assim, a grafia do português da grafia do inglês, que era a outra sua predilecta língua de criação poético-literária, com a qual estava estreitamente familiarizado desde a infância:

«… O problema da ortografia é o da palavra escrita, nada tendo essencialmente que ver com a palavra falada (…). A tradição cultural, quanto à palavra escrita, é a tradição etimológica (…). A nossa ortografia, quando, lentamente, se foi fixando, fixou-se numa ortografia etimológica, baseada, é claro, no latim. (…) Como a pronúncia da palavra é só da palavra falada, e se produz por sílabas, a palavra escrita nada tem com a pronúncia dela. (…) A letra e não a sílaba é a «unidade» na palavra escrita».

– 12 –
Mas, ainda no que diz respeito ao acordo ortográfico de 1945, o Brasil, como se sabe, também o subscreveu e ratificou, tendo então sido expressamente reconhecida a sua qualidade técnico-científica e filológica[8].

– 13 –
Há, porém, um irrasurável dado de facto que não tem sido tido na devida conta e que é o seguinte: o modelo de referência da prática ortográfica em todo o mundo, mesmo com o seu tradicional conservadorismo etimológico, continua a ser, queiramos ou não, a língua escrita inglesa, não só porque é a língua de maior implantação mas também, e sobretudo, porque é a «língua franca» da grande comunicação e divulgação científica e sapiencial à escala planetária: basta pensar no que se passa com a respectiva produção bibliográfica especializada em todo o mundo e com a Internet!…

– 14 –
E face ao argumento de que «as línguas são realidades vivas que evoluem» (argumento invocado, de modo tão trivial quanto acrítico, pelos devotos defensores do actual acordo para o justificarem a qualquer preço…), será que a pervivência dessa “grafia etimológico-tradicional” no inglês, no francês e no alemão tem impedido o normal curso da evolução destas línguas?… Não deveria haver maior rigor intelectual quando se recorre a este tipo de argumentação?…

– 15 –
Depois (e focalizando-nos agora no plano mais estritamente histórico-linguístico…), é ou não é verdade que a língua inglesa, não sendo considerada propriamente uma língua românica ou neo-latina, preserva intactamente as bases genealógico-genéticas greco-latinas, clássico-eruditas, que representam a fonte de mais de 80% das terminologias especializadas?…

– 16 –
O que significa que é o “paradigma” genealógico-genético, filológico-etimológico (que, enquanto filólogo, tento defender com fundamentos e com argumentos de natureza epistemológica, filológica, linguística e pedagógica e não, de ordem subjectivista, sentimental ou meramente opinativa…), o que significa, repito, que é esse “paradigma” aquele que melhor pode garantir não só as duas vias de formação lexical — a via popular e a via erudita —, mas também a proximidade inter-lexical e sémio-discursivo-textual do português com o inglês e com as principais línguas românicas (comparar a Base VI do anterior acordo ortográfico /1945 com a Base IV do actual acordo ortográfico /1990).

– 17 –
Não é por acaso, portanto, que o inglês é, hoje, reconhecidamente, o grande «sucessor» ou «herdeiro» do latim e do grego em todo o mundo, línguas que, apesar de catalogadas de «mortas», continuam a ser a fonte do maior número das raízes lexicais das terminologias científicas e especializadas e a alimentar os processos de «neologia», de «léxico-génese» e, mais especificamente, de «término-poiese», raízes, em suma, que são reconhecidas e consagradas pelas organizações internacionais de legitimação e normalização terminográfica.

– 18 –
Assim sendo, também não é por qualquer capricho de tipo «clubístico» ou de conservadorismo «tradicionalista» ou «anti-evolução», que luto, sobretudo, contra a Base IV do actual AO/1990. E quando digo que os Políticos e Académicos de Portugal e do nosso estimado Brasil deviam repensar tudo isto, não por é menos consideração por eles que o digo. Devo confessar, a propósito, que, além de familiares meus, tenho, em vários dos seus estados, inúmeros amigos que são professores universitários e investigadores, inclusivamente, na área da «Tele-medicina» e da «Tele-saúde», de cujo movimento internacional tenho o privilégio de ser membro honorário…

– 19 –
A minha preocupação nuclear decorre, portanto, do facto de entender que a Língua Portuguesa, pela sua universalidade e implantação intercontinental, justifica situar-se, cada vez mais, «na linha da frente», entre as principais línguas de comunicação e divulgação científica, tecnológica e sapiencial especializada. Mas, com esta «orto-orali-grafia» ou «orto-pronúncio-grafia», receio bem que alguma vez consiga chegar a conquistar também, como aliás bem merecia, o “estatuto” internacional de «língua franca» da Ciência e do Saber!…

– 20 –
Por isso é que, nessa perspectiva, a questão das terminologias se afigura crucialmente decisiva e não creio que os países de língua inglesa (Inglaterra, EUA, Canadá, Austrália, África do Sul, etc.), onde estão implantadas as melhores universidades do mundo, vão alterar a sua ortografia de raiz e tradição clássica filológico-etimológica para uma ortografia orali-fónica e anti-genealógica.

– 21 –
Os académicos e universitários e os dirigentes políticos destes países, porque são lúcidos e prudentes, sabem bem que constitui uma «regra de ouro» inalterável e irrevogável (como é próprio da «escrita» científica e sapiencial mais elaborada, mais estruturada, mais consistente e mais responsável) garantir e promover a precisão, o rigor, a segurança, a estabilidade, a mono-referencialidade, a univocidade e a intercomunicabilidade conceptual, lexical e terminológica entre as comunidades científicas de todo o mundo[9],…

– 22 –
Este entendimento traduz uma convergente sintonia com a perspectiva que subjaz aos processos de término-poiese e de término-grafia, tal como ressalta das seguintes e autorizadas palavras de uma das mais prestigiadas especialistas na matéria, María Teresa Cabré[10]:

«Para la terminología, considerada (…) en su proyección como sistema de comunicación entre especialistas, la grafía de las unidades léxicas tiene una importancia capital, ya que los procesos de normalización no actúan sobre la pronunciación de los términos, sino precisamente sobre su forma escrita»[11].

– 23 –
Entre as principais estratégias[12] de aprendizagem do vocabulário em geral, mas, sobretudo, do vocabulário de maior relevância cognitiva e densidade semântica, situa-se a “análise morfémica”[13] como imprescindível técnica de “decomposição recomposição” e interiorização inteligente e racionalmente ancorada, através da tomada de consciência do significado e do valor dos três fundamentais constituintes da estrutura significante de um lexema: a raiz, os prefixos e os sufixos…

– 24 –
Ora a raiz das palavras tem em tudo isto uma importância determinante: um só exemplo (em representação dos milhares que, em análoga consonância, poderiam, igualmente, ser aqui convocados…) bastará, a meu ver, para o demonstrar e justificar. Vejamos, então, o que se passa com a palavra ‘espectroscopia’:

– 25 –
Nos textos científicos e técnicos, não é indiferente escrever ‘espectroscopia’ ou ‘espetroscopia’ (a primeira com «c» antes do «t», a segunda sem esse «c»): é que, em inglês (como, aliás, em espanhol, em francês e em alemão), «escreve-se», conservando o «c» da raiz, ou seja, ‘spectroscopy’ (em inglês), ‘espectroscopía’ (em espanhol), ‘spectroscopie’ (em francês), ‘Spektroskopie’ (em alemão). E o mesmo se passa com a escrita dos demais termos da mesma família de ‘espectroscopia’. Se não, vejamos:

Em inglês: specter spectral spectre spectrogram spectrograph spectrographic spectrography spectrometer spectroscope spectroscopic spectroscopical spectroscopy spectrum…

Em espanhol: espectral espectro espectrógrafo espectrograma espectroscópico espectrografico espectrografía espectroscopía espectroscopio…

Em francês: spectre spectroscopie spectrographe spectrographie spectromètre spectrométrie spectroscope spectroscopie…

Em alemão: spektrale Spektrograf Spektrometer Spektroskop Spektroskopie Spektrum…

Em português (pelo anterior acordo de 1945): espectral espectro espectrógrafo espectrograma espectroscópico espectrográfico espectrografia espectroscopia espectroscópio…

Em português (pelo actual acordo de 1990): espetral espetro espetrógrafo espetrograma espetroscópico espetrográfico espetrografia espetroscopia espetroscópio…

– 26 –
O problema que, agora, se nos coloca, ao nível da intercomunicabilidade lexicológica e da normalização terminográfica, é o seguinte: por que motivo é que se escreve dessa maneira naquelas tão importantes e influenciadoras línguas, conservando a letra «c» antes do «t» (que é, importa sublinhá-lo, um «c» genómico ou adeânico da raiz da palavra), quando o que seria mais lógico, mais natural e mais “simplificador” era suprimir esse grafema que até nem se pronuncia?!… Ter-se-á ortografado assim, por um mero e caprichoso pretexto de «conservadorismo» anti-evolução e/ou de intransigente obstinação «complicativa» e «dificultativa», ou não terá sido, antes, como já atrás ficou sublinhado, em razão de uma sensata, prudencial e estratégica preocupação epistemológica com a precisão, o rigor, a segurança, a estabilidade, a mono-referencialidade, a univocidade e a intercomunicabilidade conceptual, lexical e terminológica entre as comunidades científicas de todo o mundo?…

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A resposta afigura-se óbvia e clara: mantém-se o grafema «c» da raiz, porque, dessa forma, fica bem patente, sem qualquer margem para dúvida ou ambiguidade, o facto de todos estes termos técnico-científicos serem formados por um comum e isogénico constituinte de base (oriundo do indo-europeu) — «spek- [> spik- ] / spok (> por metátese: skep- / skop-») —, mediatizado pelo latim e pelo grego, ou seja, a raiz latina «spec- / spic- » e a sua cognata grega «scep-/ scop-»[14].

a) A primeira destas duas variantes radiciais — spec-— está presente no verbo latino «specio, -is, -ere, spexi, spectum», que é um vocábulo morfo-semanticamente relacionado com largas dezenas de outros vocábulos portugueses (uns de uso corrente e vulgar; outros, de uso especializado e erudito) pertencentes à mesma família lexical (arúspice aruspicina aruspício aspecto aspectual áuspice auspiciar auspício auspicioso circunspecção circunspecto conspecto conspícuo despeita despeitar despeito despiciência despiciendo despiciente especial especialidade especiaria espécie especificar específico espécime especiosidade especioso espectacular espectáculo espectador espectante espectar espectral espectro espectoscópio especulação especulador especular especulativo espéculo espelho espia espião espiar expectante expectar expectativa expectatório frontispício inspeccionar inspecção inspector insuspeição insuspeito introspecção introspectivo intuspecção perspectiva perspectivar perspectivismo perspicácia perspicaz perspicuidade perspícuo prospecção prospectar prospectivo prospecto prospector respectivo respeitar respeito respeitoso réspice retrospecção retrospectivo retrospector suspeição suspeito suspicácia suspicaz…), sendo que todos estes vocábulos (que ultrapassam a centena…) são portadores do significado “adeânico” fundacional e transversal a todos eles, de «olhar atentamente para, observar bem…».

b) A segunda variante (a raiz grega scep- / scop-, formada por metátese interconsonântica [sp > sc] a partir da supra-referida raiz indo-europeia) está presente em lexemas gregos como episcopéo, epíscopos, sceptikós, scéptomai, skopéo, scopê, scopiá, scopós e é igualmente portadora do significado fundamental de «olhar atentamente para, observar bem…».

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Foi a partir do seu isogénico enraizamento genético-genealógico nessa ancestral matriz morfo-semântica que o termo ‘espectroscopia’ (em inglês: ‘spectroscopy’) foi criado para designar, caracterizar, tipificar e definir, com o indispensável rigor conceptual, «o estudo científico, técnico e tecnológico baseado na observação atenta, pormenorizada e rigorosa das interacções entre a radiação electromagnética e a matéria constituinte de uma dada amostra submetida a análise espectral; estudo que se desenvolve através de um processo operatório, potenciado por específicos e sofisticados recursos técnico-tecnológicos que permitem detectar e observar, com cuidadosa e minudente exigência, os fenómenos de oscilação dos campos magnéticos e eléctricos, de absorção ou emissão de energia radiante, a variação de densidade espectral, etc., foto-cromaticamente gravados ou registados nos espectogramas»[15]; é este tipo de estudo que está na origem de métodos e técnicas de diagnóstico como a «ressonância magnética».

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Repare-se que, em inglês (como aliás também nas outras línguas europeias mencionadas…), são três os “termos-conceito” que ressaltam imediatamente e de forma óbvia e clara, por estarem intimamente relacionados entre si e apresentarem a mesma grafia genético-etimológica clássica (greco-latina) e a mesma estruturante raiz genómica «spec-»: «spectrum», «spectroscope», «spectroscopy» (em português, pelo acordo de 1945: espectro, espectroscópio, espectroscopia)…

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Se quisermos consolidar essa base morfo-semântica comum a estes três termos, podemos recorrer à listagem das dezenas de vocábulos acima inventariados e organizá-los, de modo radicado, reticulado e constelado ou, também, em pódio e em pirâmide. Desse modo, a didáctica do vocabulário (léxico-didáctica) promove, reforçadamente, uma aprendizagem das formas significantes e dos respectivos conteúdos eidético-conceptuais e noemático-semiósicos fundamentais que estão em causa nas terminologias especializadas e no léxico em geral, mas promove-a, de modo inteligente e racional, e não apenas através da simples memorização desprovida de qualquer esteio de racionalidade iluminante…

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Se este tipo de exercício for feito, gradualisticamente (step by step), ao longo de toda a escolaridade (desde o ensino básico até ao ensino universitário inclusive…), acabaremos por compreender e reconhecer melhor o seguinte:

i) «foi a linguagem científica que construiu para nós o vasto edifício teorético do conhecimento moderno» («scientific language has construed for us the vast theoretical edifice of modern knowledge» [Halliday: 2004, 182]);

ii) «a linguagem da ciência é, por sua natureza, uma linguagem na qual as teorias são construídas; as suas características especiais são exactamente aquelas que tornam possível o discurso teorético» («the language of science is, by its nature, a language in which theories are constructed; its special features are exactly those which make theoretical discourse possible» [Halliday: 2004, 207]);

iii) «o discurso científico é uma forma da mais alta energia semiótica» («scientific discourse is a very high-energy form» [Halliday: 2004, 182]) proporcionada pelo sistema linguístico;

iv) «a energia semiótica do sistema linguístico irrompe da léxico-gramática» («the semiotic energy of the system comes from the lexicogrammar» [Halliday: 2004, 54]) e, portanto, «todo o discurso é, por assim dizer, potenciado pela energia léxico-gramatical» («all discourse is powered by grammatical energy, so to speak» [Halliday: 2004, 182]);

v) é na léxico-gramática (e mais focadamente no léxico…) que reside «o coração da linguagem» («the heart of language» [Halliday: 2003, 194]) e «a fonte da sua energia semiótica» («the source of its semiotic energy» [Halliday: 2003, 276]), constituindo, assim, «a casa do poder semiogénico de uma língua» («the semogenic powerhouse of a language» [Halliday: 2003, 248]), poder que transforma o léxico no “centro nevrálgico” da construção de todas as significações e de todos os sentidos, numa palavra, de todo o conhecimento, uma vez que é ele o insubstituível codificador, ordenador, sistematizador e informante noético-noemático e semiósico e, assim, o imprescindível sustentáculo operatório da acção verbo-comunicativa interpretante e expressante[16]…

vi) «criar um termo técnico é, em si mesmo, um processo gramatical» («creating a technical term is itself a gramatical process» [Halliday: 2004, 207]);

vii) para existir enquanto termo, uma forma linguística (uma unidade lexical) tem que designar um conceito integradamente incluído num específico e bem demarcado “domínio de pertença” noético-gnosiológico e sistémico-conceptual (científico, sapiencial, cultural… e.g.: matemática, física, astronomia, geologia, botânica, biologia, zoologia, medicina, direito, filosofia, economia, linguística, engenharias, metalurgia…) e determinado por uma definição [cf. Bessé: 2000, 182-184][17];

viii) «os termos técnicos são uma parte essencial da linguagem científica; sem eles, seria impossível criar um discurso do conhecimento organizado» («tecnical terms are an essential part of scientific language; it would be impossible to create a discourse of organized knowledge without them» [Halliday: 2004, 201]);

ix) «os problemas com a terminologia técnica surgem, por via de regra, não propriamente dos termos técnicos em si, mas das complexas relações que eles mantêm uns com os outros» («the problems with technical terminology usually arise not from the technical terms themselves, but from the complex relationships they have with one another» [Halliday: 2004, 162]);

x) «os termos técnicos não podem ser definidos isoladamente» («technical terms cannot be defined in isolation»), uma vez que «cada um deles é para ser entendido como parte integrante de um quadro de referência mais vasto, sendo, assim, definido em referência a todos os outros» («each one is to be understood as part of a larger framework, and each one is defined by reference to all the others» [Halliday: 2004, 162]) [18];

xi) «ser alfabetizado em ciência — objectivo estratégico dos processos educacionais para a literacia científica… — significa ser capaz de compreender a linguagem técnica que está a ser usada» («to be literate in science means to be able to understand the technical language that is used» [Halliday and Martin: 1993, 168]);

xii) «uma compreensão das raízes das palavras (…) ajuda-nos a todos a dominar quer os termos científicos quer os não-científicos e a tornarmo-nos mais proficientes no uso da linguagem» («an understanding of the roots (…) helps us all master both scientific and nonscientific terms and become more proficient in the use of language»… [Herr: 2008, 3-4]);

xiii) finalmente, «aprender ciência é, no fundo, aprender a linguagem científica» [«learning science is the same thing as learning the langage of science», [Halliday, 2004, 138])[19], pelo que tem pleno cabimento evocar aqui o sugestivo título que a famosa especialista em «Linguagem Científica» — Bertha María Gutiérrez Rodilla —, Professora Catedrática da Faculdade de Medicina da Universidade de Salamanca, escolheu para nomear a sua substanciosa e alumiante obra «La ciencia empieza en la palabra»[20].

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Mas a aprendizagem da linguagem científica conhecerá outra consistência, outra coerência, outra segurança e outra fecundidade, se tiver como orientação e como suporte estratégico-metodológico aquilo que, convergentemente, nos é proposto pelos melhores especialistas[21] em didáctica das línguas e, mais especificamente, em léxico-didáctica: o domínio seguro dos constituintes ou elementos genómicos de todo e qualquer lexema ou termo — a raiz, os prefixos e os sufixos — e a sua articulação transversal, em rede e em constelação, com os lexemas da mesma família morfo-semântica e genética (genealogia da língua…).

Em conclusão:

Depois de tudo isto, poderá ainda parecer aos defensores do “simplismo” e do “facilitismo” pronúncio-cêntrico que a supressão de um “mero grafema” integrado nas sequências «ct» e «pt» (entre outras) da esfíngica Base IV do actual acordo ortográfico (1990) é «uma questão irrelevante e sem importância» que mais parece uma caprichosa implicância (“caturrice”, “embirração”…) do filólogo do que uma muito séria preocupação, por um lado, com uma léxico-didáctica inteligente, coerente, radicada e teorética e metodologicamente sustentada e, pelo outro, com o rigor próprio da conceptualização do conhecimento científico e com a harmonização e sintonização noético-terminológica de todo o ordenamento sapiencial…

Pois bem, pensemos seriamente na situação-conjectura de uma receita médica ou de um relatório clínico (e poderia, igualmente, tratar-se de um acórdão jurídico ou de um projecto de engenharia…) em que apareçam termos técnico-científicos de especialidade médico-farmacológica ortografados segundo a orientação anti-filológica, anti-etimológica e anti-genealógica, consagrada na liquidatária Base IV do atabalhoado, incongruente, desestabilizador e caotizante novo acordo ortográfico!…

Pode acontecer que, em consequência dessa confusionista “desarmonia” de origem ortográfica, um medicamento criteriosamente pensado e seleccionado na esperançosa expectativa de curar o doente, ao ser prescrito e formalizado naquela receita médica, em cumprimento da turbulenta e babélica “dis-ortografia” agora em vigor, se venha a transformar, através da leitura e da interpretação farmacêutica, numa fatídica “cicuta de morte”…

E porque a complexidade ou a lacunaridade dos contextos, por um lado, e o ritmo urgentivo das situações emergenciárias, pelo outro, não são facilmente controláveis ou domináveis, pode muito bem acontecer que um relatório clínico, por causa das confusões ou contaminações terminológicas motivadas por semelhanças homofónicas ou parafónicas do tipo “recepção / receção” (em Teoria da Comunicação: «a recepção da mensagem foi perfeita»), “recessão” (em Economia: «a situação de recessão na Europa mantém-se»), “ressecção / resseção” (em Medicina Cirúrgica: «foi bem conseguida a ressecção do tumor»), venha a induzir terapias gravemente distorcidas, com as inerentes consequências, eventualmente fatais…

É assim que não posso deixar de partilhar memorialmente com todos a “lição” que me foi dado aprender em torno do famosíssimo “efeito borboleta”[22] dos paradigmas meteorológicos, através da sugestiva, esclarecedora e formativa “parábola/alegoria” que plasma, figurativamente, a «dependência sensível das condições iniciais» que, como se sabe, é a designação técnico-científica daquele «efeito» metaforicamente identificado e universalizado pelo cinetismo etológico-alar de tão grácil e alucinado insecto:

«Por um prego, perdeu-se a ferradura;
Por uma ferradura, perdeu-se o cavalo;
Por um cavalo, perdeu-se o cavaleiro;
Por um cavaleiro, perdeu-se a batalha;
Por uma batalha, perdeu-se o reino!»


Só que o «reino» que, nesta fábula (ao mesmo tempo tão simples e tão eloquente…), em crescente gradação se foi perdendo, pode muito bem ser o intransferível, incomparável e maravilhoso reino da nossa própria VIDA!…

Fernando Paulo Baptista

Anotações e referências bibliográficas:
[1] Cf. http://htl2.linguist.jussieu.fr:8080/CGL/.
[2] Cf. Luiz Carlos Cagliari [2002]: no seu estudo «Alfabetização e ortografia» apud: Educar em Revista, n.º 20, 2002, Universidade Federal do Paraná, Paraná, Brasil, pp. 1-16.
[3] À luz deste tipo de argumentação (se isso não fosse humorismo irónico…), até se poderia alegar que o recente negócio da compra, pelos chineses, da parte da EDP acabada de ser privatizada se ficou a dever já às “virtualidades comunicativas” potenciadas pelo novo acordo ortográfico!…
[4] Cf.: Parecer da Associação Portuguesa de Linguística, ass. Inês Duarte (2005); Parecer do Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), ass. Maria Helena Mateus (2005); Parecer do Departamento de Linguística Geral e Românica da Fac. de Letras da U. Lisboa, ass. Ivo Castro (2005); Castro, Ivo, Inês Duarte e Isabel Leiria: A Demanda da Ortografia Portuguesa. Comentários do Acordo Ortográfico de 1986 e subsídios para a compreensão da Questão que se lhe seguiu, Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1987; Maria Filomena Gonçalves: As ideias ortográficas em Portugal de Madureira Feijó a Gonçalves Viana, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2003; António Emiliano: O Fim da Ortografia: comentário razoado dos fundamentos técnicos do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), Lisboa: Guimarães Editores, 2008; «Acordo ortográfico: pareceres ignorados, deveres do Estado e direitos dos cidadãos»; «As contas e os números do Acordo Ortográfico»; cf. também:
http://www.iltec.pt/pdf/wpapers/2006-mhmateus-ortografia_portuguesa.pdf;
http://www.filologia.org.br/pereira/textos/AOLP.pdf; http://www.revistaautor.com/index.php?option=com_content&task=view&id=238&Itemid=1;
http://ciberduvidas.pt/controversias.php?rid=1907.
[5] Cf. Bernardo Soares: Livro do Desassossego [edição de Richard Zenith)] Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, § 259, pp. 254-255.
[6] Cf. Fernando Pessoa: A Língua Portuguesa [edição de Luísa Medeiros], Lisboa, Assírio & Alvim, 1997, págs. 29, 36, 48 e 58.
[7] «Na palavra lagryma, (…) a forma do y é lacrymal; estabelece (…) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio… Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal.» Teixeira de Pascoaes: A Águia.
[8] Veja-se, a propósito, o «Prefácio» da autoria do grande filólogo e académico brasileiro, Ribeiro Couto, ao importantíssimo «Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa», elaborado por Francisco Rebelo Gonçalves (cf. Francisco Rebelo Gonçalves: Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, Coimbra, Atlântida, 1947, págs. IX a XXV).
[9] Cf. Bertha M. Gutiérrez Rodilla: La ciencia empieza en la palabra – Análisis e historia del lenguaje científico, Barcelona, Ediciones Península, 1998, pág. 24: «El rigor con que los conceptos están organizados en una ciencia exige un rigor paralelo en el lenguaje». E, mais explicitamente ainda, na pág. 92: «La falta de precisión dificulta seriamente las funciones que el lenguaje de la ciencia debe desempeñar como instrumento fundamental de comunicación entre todos los que integran la comunidad científica internacional (…). En un texto científico, la falta de precisión (…) resulta un echo negativo, pues la imprecisión terminológica suele ir ligada a la conceptual».
[10] Cf. Maria Teresa Cabré: La Terminología. Teoría, Metodología, Aplicaciones, Barcelona, Editorial Antártida / Empúries, 1993, pp. 170-171; Andreína Adelstein: Unidad Léxica y Valor Especializado: Estado de la Cuestión y Observaciones sobre su Representación, Institut Universitari de Lingüística Aplicada, Universitat Pompeu Fabra, 2004, pp. 30-31. Cf. também: Bertha M. Gutiérrez Rodilla: La ciencia empieza en la palabra — Análisis e historia del lenguaje científico, Ediciones Península, Barcelona, 1998, pp. 88-94. Também Norbert Schmitt (cf. Norbert Schmitt: Vocabulary in Language Teaching, Cambridge, Cambridge University Press, 2000, págs. 45, 50) sublinha, por um lado, que «orthografical (written-form) knowledge (…) is a key component to both vocabulary knowledge and language processing in general» e, pelo outro, que «results from reading research have been particularly instrumental in showing the importance of orthographical word form» e que «the importance of the written form of words is obvious if those words are to be utilized through reading».
[11] Entendimento este, partilhado igualmente por G. Rondeau (cf. G. Rondeau: Introduction à la terminologie, Québec, Gaëtan Morin, 21983, pág. 31), quando afirma: «a forma gráfica dos termos tem, em terminologia, prioridade sobre a fónica. [...] A forma gráfica dos tecnicismos uniformiza-se à escala internacional. [...] A pronunciação não tem, pois, do ponto de vista terminológico, praticamente nenhuma importância» (referenciado por Bertha M. Gutiérrez Rodilla: op. cit., pág. 26); cf. ainda: Richard Alan Strehlow, Sue Ellen Wright: Standardizing terminology for better communication: practice, applied theory, and results, American Society for Testing and Materials, Philadelphia, PA: ASTM, 1993.
[12] e.g.: tipificação de dicionários e respectivos modos e técnicas de utilização, análise dos contextos verbais e situacionais de comunicação, radicações genealógicas, reticulações de cognação, mapeamentos eidéticos e constelações lexicológicas, campos semântico-temáticos / áreas lexicais / famílias de palavras, relações de homonímia, sinonímia, antonímia, paronímia, hiperonímia, hiponímia, meronímia, etc…
Cf.: Norbert Schmitt and Michael McCarthy: Vocabulary: Description, Acquisition and Pedagogy, Cambridge, Cambridge University Press, 1997; I. S. Paul Nation: Learning Vocabulary in Another Language, Cambridge, Cambridge University Press, 2001; Camille Blachowicz, Peter J. Fisher: Teaching vocabulary in all classrooms, Upper Saddle River (New Jersey, USA), Prentice Hall, 2005; Elfrieda H. Hiebert, Michael L. Kamil: Teaching and learning vocabulary: bringing research to practice, Lawrence Erlbaum Associates, Inc., Mahwah (New Jersey/USA), 2005; Donna E. Alvermann, Stephen F. Phelps, Victoria R. Gillis: Content Area Reading and Literacy: Succeeding in Today’s Diverse Classrooms, 5/E, Allyn & Bacon, Boston, 2006; Jeanne McCarten: Teaching Vocabulary – Lessons from the Corpus Lessons for the Classroom; Cambridge, Cambridge University Press, 2007; Timothy Rasinski, Nancy Padak, Rick M. Newton, Evangeline Newton: Greek & Latin Roots: Keys to Building Vocabulary , Huntington Beach (CA /USA), Corinne Burton, Shell Education, 2008; Tara Marie Novak: «Effects of Implementing a Morphemic Analysis Vocabulary Strategy on Student Vocabulary Development and Comprehension in a Secondary Science Classroom», Carroll University Waukesha, Wisconsin, 2011; apud:
http://content-dm.carrollu.edu/cdm/singleitem/collection/edthesis/id/83;
John J. Pikulski and Shane Templeton: Teaching and Developing Vocabulary: Key to Long-Term Reading Success, apud:
http://www.eduplace.com/marketing/nc/pdf/author_pages.pdf
http://www.southampton.liunet.edu/academic/pau/course/webword.htm
http://www.southampton.liunet.edu/academic/pau/course/webroot.htm
http://www.readingrockets.org/article/9943/
http://www.k12reader.com/effective-strategies-for-teaching-vocabulary/
http://eps.schoolspecialty.com/downloads/povs/s-vcr.pdf
[13] http://www.litandlearn.lpb.org/strategies/strat_4morph.pdf; http://reading.uoregon.edu/big_ideas/voc/voc_skills_goals.php
[14] Cf. Robert K. Barnhart (edit.): Chambers Dictionary of Etymology, Edinburg / New York, Chambers Harrap Publishers, 2001, entrada «spy», importando considerar as várias correlações de natureza lexicológica aí estabelecidas com outras línguas: desde o sânscrito, ao islandês, ao norueguês, ao sueco, ao francês e ao alemão…
[15] Cf. Peter M B Walker (edit.): Chambers Dictionary of Science and Technology, Edinburg / New York, Chambers Harrap Publishers, 1999, entrada «spectroscopy»: «the practical side of the study of spectra, including the excitation of the spectrum, its visual or photographic observation, and the precise determination of wavelengths». O “espectro” (ver entrada “spectrum”) é aí definido nos seguintes termos: «arrangement of components of a complex colour or sound in order of frequency or energy, thereby showing distribution of energy or stimulus among the components. A mass spectrum is one showing the distribution in mass, or in mass-to-charge ratio of ionized atoms or molecules. The mass spectrum of an element will show the relative abundances of the isotopes of the element». Repare-se como o sema genómico de «observar ou olhar atentamente, tornar evidente…» está presente nestas definições dicionarizadas: visual, photographic, observation, precise determination, show…
[16] Cf. Fernando Paulo do Carmo Baptista: Nesta nossa doce língua de Camões e de Aquilino, Sernancelhe, edição da CM de Sernancelhe, 2010, p. 59.
[17] Cf. Bruno de Bessé, no seu importante estudo intitulado «Le domaine», apud: Henri Béjoit et Philippe Thoiron [dir.]: Le sens en terminologie, Lyon, Presses Universitaires, de Lyon, 2000, pp. 182-184. Além duma tipologia dos «domínios», Bruno Bessé apresenta uma sua caracterização marcada por grande rigor e clareza, sendo de sublinhar a parte especificamente dedicada aos critérios e processos terminográficos de descrição, classificação, catalogação e taxinomização (pp. 188-190).
[18] No mesmo fundamental sentido concorre o pensamento de Maria Teresa Cabré, quando remete cada um dos termos de um dado campo para o correspondente conceito, integrado na estrutura noético-gnosiológica da respectiva rede conceptual: «El conjunto de los términos de un campo, es decir su terminología, representa la estructura conceptual de esa materia, y cada uno de los términos denomina un concepto de la red estructurada de la materia en cuestión» (cf. Maria Teresa Cabré: Teoría, Metodología, Aplicaciones, Barcelona, Editorial Antártida / Empúries, 1993, p. 167).
[19] Cf. M.A.K. Halliday (2003): On Language and Linguistics, London / New York; M.A.K. Halliday (2004): The Language of Science, London / New York; M.A.K. Halliday and J.R. Martin (1993): Writing Science — Literacy and Discursive Power, London / Washington, The Falmer Press.
Norman Herr (2008): The Sourcebook for Teaching Science, San Francisco, [California /USA], Jossey-Bass.
[20] Bertha M. Gutiérrez Rodilla: La ciencia empieza en la palabra – Análisis e historia del lenguaje científico, Barcelona, Ediciones Península, 1998, obra já citada.
[21] Cf.: http://www.beyond-the-book.com/strategies/strategies_041608.html
Tenha-se na devida conta, a propósito, o esclarecedor excerto retirado do desenvolvimento explicativo do tópico «Systematically Teach the Meaning of Prefixes, Suffixes, and Root Words», constante neste importante link:
«The majority of English words have been created through the combination of morphemic elements, that is, prefixes and suffixes with base words and word roots. If learners understand how this combinatorial process works, they possess one of the most powerful understandings necessary for vocabulary growth (Anderson and Freebody 1981). This understanding of how meaningful elements combine is defined as morphological knowledge because it is based on an understanding of morphemes, the smallest units of meaning in a language. In the intermediate grades and beyond, most new words that students encounter in their reading are morphological derivatives of familiar words (Aronoff 1994). In recent years, research has suggested some promising guidelines for teaching the meanings of prefixes, suffixes, and word roots as well as for the ways in which knowledge of these meaningful word parts may be applied (Templeton 2004). Word roots such as dict, spect, and struct are meaningful parts of words that remain after all prefixes and suffixes have been removed but that usually do not stand by themselves as words: prediction, inspection, construct. In the primary grades students begin to explore the effects of prefixes such as un-, re-, and dis- on base words. In the intermediate grades students continue to explore prefixes and an increasing number of suffixes and their effects on base words: govern (verb) + ment = government (noun). Common Greek and Latin roots begin to be explored, along with the effects of prefixes and suffixes that attach to them (Templeton 1989). These include, for example, chron (“time”, as in chronology), tele (“distant, far” as in television), and fract (“break”, as in fracture). A large proportion of the vocabulary of specific content areas is built on Greek and Latin elements. As this morphological knowledge develops, teachers can model how it may be applied to determining the meanings of unfamiliar words encountered in print».
[22] Cf. James Gleick: Caos, a construção de uma nova ciência, Lisboa, Gradiva, 1989, págs. págs. 33-58, 48-49 e passim.