Páginas

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Não é menos Estado, mas sim melhor Estado!


Ocupar o comum


Para os defensores do neoliberalismo, não faz mal acabar com serviços e actividades reconhecidamente eficientes, de qualidade e utilidade social, desde que estejam reunidas pelo menos uma destas condições: que seja um modo de transferir para a esfera do privado recursos que antes pertenciam ao público, promovendo oportunidades de negócio; que seja um modo de eliminar do campo das experiências dos cidadãos formas de fazer em comum que possam favorecer o seu apego a instituições públicas, a finalidades não-lucrativas, a lógicas cooperativas e participativas.


É nesta engenharia de reconfiguração da sociedade que se enquadram o anunciado encerramento da Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, ou o despejo da Es.Col.A. da Fontinha, no Porto. Por muito que a violência demolidora da vida em sociedade a que estamos a assistir o possa sugerir, o que está em causa não é, para o projecto neoliberal, acabar com o Estado, mas antes desviá-lo das suas funções sociais e redimensioná-lo à medida da avidez de mercados instáveis e de interesses privados. Não está também em causa acabar com toda e qualquer iniciativa de cidadãos que se mobilizem autonomamente para intervir na sociedade, mas tão-somente a daqueles que o fazem, até em regime de voluntariado, associando a supressão das falhas dos poderes públicos a propostas transformadoras das comunidades que não sejam redutíveis aos valores do pensamento único, à forma económica da troca mercantil e do lucro, ao formato de gestão do «empreendedorismo social».


O neoliberalismo nada tem contra haver Estado suficiente para parcerias público-privadas desastrosas para o erário público; para tráficos de influências e garantias de proveitosas carreiras; para salvamentos de bancos nacionais impostos por um sistema financeiro internacional que confisca a democracia; para sistemas educativos que formem elites ou para sistemas de saúde que se ocupem dos doentes que não são rentáveis para a medicina privada. O neoliberalismo nada tem contra haver na sociedade autonomia suficiente canalizada para o assistencialismo ou a caridade, desde que essa acção não questione intelectualmente, nem abale através de práticas, o imobilismo trágico das desigualdades socioeconómicas e a irracionalidade de um modelo económico iníquo.


Valores, práticas e finalidades são o que distingue os projectos em confronto nas sociedades. São eles que separam, por um lado, os que concebem uma comunidade como organização em que se afere, de acordo com modalidades democráticas e participadas, quais os bens comuns a prosseguir; e, por outro, os que nela vêem um somatório de interesses individuais e privados em que os mecanismos da competição farão emergir os mais fortes e, supletivamente, obrigarão a encontrar as formas de assistência aos mais fracos que eternizarão a rigidez dos lugares sociais. É neste antagonismo quanto a valores, práticas e finalidades que reside o essencial das escolhas de sociedade. Tudo o mais diz respeito aos actores que dão corpo a essas escolhas e às alianças e contágios entre as diferentes esferas em que os actores se movem; no quadro das relações de força em cada momento existentes, essas alianças e contágios podem ser potenciados ou impedidos.


Se os efeitos que se quer alcançar forem a densificação da democracia, a restauração dos serviços públicos e do Estado social e a reconstrução de comunidades de bem-estar, será que mantém utilidade e capacidade explicativa uma grelha de análise que encerre nos vértices de um triângulo três pólos que não se sobrepõem nem têm afinidades a aproximá-los ou separá-los? Com efeito, a imagem que nos habita tende a ser a de um triângulo − mesmo que o possamos ver equilátero, isósceles ou escaleno. Ele representa três sectores da sociedade separados e estanques: o público, o privado e o terceiro sector (ou economia social). A mesma figura geométrica ressurge se pensarmos em termos de três esferas de actividade traduzidas no Estado, no mercado e na actividade cooperativa ou solidária. Dada a correlação de forças, esta imagem tem estado revestida por uma capa de naturalidade e fixidez, quando ela traduz uma visão que não é neutral, mas política. E tem servido, sobretudo, para permitir que ocorram longe da visibilidade do debate público todas as formas de disputa e de captura que o poder, cada vez mais forte, dos mercados (isto é, dos interesses privados que estes representam) tem vindo a operar em relação aos sectores público e cooperativo.


Há por isso vantagem em encontrar arranjos e parcerias alternativas que estilhacem estas lógicas que se encontram em acção e que, mantendo a noção de que todos estes três pólos são construções em aberto, desloque a aliança estratégica para o lado do público e do cooperativo. As modalidades dessa redefinição de alianças podem ir da simples cedência de espaços públicos até outras mais entrosadas, como por exemplo a extensão dos âmbitos de actividade em que se ensaiam formas económicas não-mercantis e em que se beneficia mutuamente de economias de escala.


A constituição desta aliança, mais ou menos formal, fará com que o campo do público e da cidadania tenha mais condições para disputar ao privado o conjunto de valores, práticas e finalidades que projecta para a sociedade. Talvez seja dos contágios entre racionalidades de serviço público, participação democrática, organização cooperativa, não desbaratamento de recursos com a exploração e o lucro, e prossecução de objectivos de sustentabilidade ecológica e de bem-estar social que possam vir a surgir alianças duradouras entre o Estado e as organizações de cidadãos − movimentos, associativismo, economia social − que fortaleçam ambos em detrimento dos interesses privados. 

Ocupar este espaço do comum é uma forma de romper com o consenso neoliberal assente no pensamento único, na prática única. É, certamente, uma forma de reapropriação do futuro.



Le Monde diplomatique - edição portuguesa
por Sandra Monteirosexta-feira 4 de Maio de 2012




:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::


Não é menos Estado, mas sim melhor Estado 

Recomendo leitura:

Economia e Política: Uma Abordagem Dialética da Escolha Pública - Uma abordagem dialética da escolha pública


Ao texto publicado no "Le Monde Diplomatique" supra-mencionado, teço o seguinte comentário ou seguintes considerações:

Coloca-se antes demais, não uma questão ideológica, mas a da teoria da escolha pública que ao longo das últimas décadas, a colocou como principal crítica teórica de outra corrente (essa essencialmente económica) que fundamenta a intervenção do Estado na economia — a economia do bem-estar (welfare economics).

Enquanto esta se centrava na análise dos «fracassos de mercado» que justificavam a intervenção correctora do Estado, a teoria da 
escolha pública veio clarificar os «fracassos do governo» e os limites da intervenção desse mesmo Estado.

Naturalmente a public choice foi aproveitada ideologicamente por todos aqueles que defendem uma menor intervenção 
do Estado na economia, em particular pelos neoliberais. Contudo, a teoria da escolha pública não deve ser confundida com o pensamento neoliberal. A pergunta é ambígua, pois a teoria da escolha pública é um programa de investigação (no sentido utilizado por Lakatos) e o neoliberalismo é uma ideologia.
A teoria da escolha pública é usualmente definida como a aplicação do método económico a problemas que geralmente são estudados no âmbito da ciência política: grupos de interesse, sistemas eleitorais, partidos políticos e a constituição, entre outros. Este método é aquele que tem sido utilizado com algum sucesso na microeconomia: o individualismo metodológico.

Este método assenta, em primeiro lugar, em que a unidade base de análise é o indivíduo, ou seja, que só este é sujeito de acções individuais ou colectivas e só ele tem preferências, valores, motivações. Neste sentido, grupos, organizações ou instituições privadas ou públicas são sempre um conjunto de indivíduos, não existindo nenhuma concepção orgânica «acima»
desses indivíduos que seja observável e analisável.

A postura metodológica individualista resulta de que para muitos economistas é a única operacional, ou seja, mesmo que, por hipótese, se aceite a existência de entidades orgânicas supra-individuais com vontade própria (grupos, povos, sociedades), torna-se impossível determinar qual seria essa vontade. A incapacidade de a conhecermos não pode logicamente levar à negação dessas entidades, mas leva muitos economistas a adoptarem a posição de que qualquer análise deve basear-se numa postura metodológica individualista.

A abordagem da teoria da escolha pública é sobretudo processual, cada escolha colectiva, no processo político, é resultado das preferências dos agentes envolvidos na escolha (cidadãos num referendo, autarcas numa câmara municipal, deputados no parlamento) e das regras e procedimentos que permitem passar de preferências diversas de cada indivíduo para uma única escolha 
colectiva.
Um segundo elemento do individualismo metodológico é o postulado de que os indivíduos são instrumentalmente racionais, ou seja, que são capazes de escolher acções apropriadas para os objectivos que pretendem alcançar.

Se se considerasse que certas vezes os indivíduos são racionais e outras irracionais, qualquer análise que se pretendesse fazer previsão seria votada ao fracasso.

Finalmente, existe um terceiro elemento que muitas vezes vem sendo confundido com o de racionalidade, mas que convém distinguir, que é o de os indivíduos serem egoístas, ou seja, cuidarem essencialmente dos seus interesses pessoais.

Egoísmo e racionalidade nas escolhas são os principais atributos do homo oeconomicus.

Da mesma forma que há várias noções de racionalidade, há também diversas formas de entender o postulado motivacional do egoísmo. Uma delas, defendida por Stigler, pode ser posta nos seguintes termos: as pessoas são basicamente egoístas, o que não exclui a possibilidade de poderem ser em certas ocasiões altruístas, mas, quando em
situação de conflito interno entre duas acções que se excluem mutuamente, optarão pela egoísta.

Outra abordagem é defender o egoísmo como motivação fundamental da conduta, baseado numa perspectiva evolucionista de que num ambiente competitivo, os indivíduos adoptando motivações egoístas têm uma maior probabilidade de sucesso (real ou aparente) e isso leva a que indivíduos com outras motivações sintam um efeito de emulação e adoptem atitudes egoístas. Neste caso não se trata de uma perspectiva ontológica (ser egoísta), mas sim do 
resultado de um processo de evolução num determinado ambiente (tornar-se egoísta).
Dito por outras palavras, parece existir uma inconsistência em assumir que os agentes, quando actuam nos mercados privados, são egoístas, mas, quando actuam no «mercado» político, são altruístas e prosseguem o «interesse público». Esta tem sido a posição defendida por Buchanan em vários escritos que sustentam a sua abordagem da política «sem romance», onde defende que é necessário manter os mesmos postulados em relação à conduta humana, independentemente do contexto institucional.

Modelizar os agentes no processo político como egoístas é, na perspectiva de Buchanan, uma atitude de precaução. Ao pensar o sistema político do ponto de vista de que os indivíduos poderão querer utilizar o sistema em proveito próprio, leva a pensar em regras, procedimentos e instituições que evitem os piores abusos de poder e outras tentações políticas.


Neste sentido, o modelo pioneiro da Constituição americana, com a separação de poderes entre o executivo, o legislativo e o sistema judicial e as limitações constitucionais ao poder do executivo, baseou-se precisamente nos checks and balances necessários para que nenhuns indivíduos, numa qualquer instituição, possam estar numa situação de abuso de poder.
A versão «moderna» da democracia é mais simples e pragmática: trata-se apenas de um processo pelo qual certos indivíduos adquirem poder de decidir em nome de outrem através de um processo de competição pelo voto.
Pode-se dizer que está introduzida a ideia de que a democracia, o processo político democrático, pode ser analisado como um mercado competitivo, onde os agentes que nele actuam (políticos, cidadãos, funcionários públicos) têm basicamente motivações egoístas, onde, por exemplo, se assume que os políticos pretendem maximizar os votos.

Este postulado é por vezes criticado na base de que a motivação fundamental dos políticos é servir o «bem comum» e não maximizar votos. Há dois tipos de argumentos para defender o postulado da maximização dos votos. Em primeiro lugar, um político (ou um partido) que queira efectivamente implementar a sua noção de «bem comum» terá, antes de mais, de ser eleito 
e, portanto, deverá maximizar os votos com esse fim. Por outro lado, não há necessariamente contradição entre servir o interesse comum e maximizar votos.


De facto, o objectivo egoísta da maximização de votos está a servir a vontade da maioria (ou da maior minoria) numa forma semelhante à «mão invisível» de Adam Smith, onde o objectivo egoísta de maximização de lucros leva (em mercados competitivos) ao bem-estar colectivo.
Como em qualquer mercado privado, a competição política não é perfeita, mas em todo o caso em democracia existe sempre um certo grau de competição pelo voto do povo.
Este processo competitivo desenvolve-se não só no «mercado» político formal, o do voto nas eleições, como também no mercado
político informal, onde competem grupos de interesse.
A teoria da escolha pública veio clarificar os problemas inerentes à tomada de decisão colectiva e pôr a nú alguns problemas que hoje identificamos como os «fracassos do governo», ou melhor, do sector público e do sistema político: ineficiência da administração pública, ausência de incentivos, problemas com obtenção de informação acerca das preferências dos cidadãos, 
rigidez institucional, permeabilidade à actuação de lobbies, financiamento ilegal de partidos políticos, etc.


Esta visão mais realista do processo político, de certa forma, tem alterado um pouco o ideal democrático, e tem mostrado 
que eventualmente as aspirações desse ideal estavam demasiado elevadas em relação àquilo que o método democrático permite.


Na perspectiva da teoria da escolha pública, trata-se de comparar os «fracassos do governo» com os «fracassos do mercado», ou seja, perceber que, quer o mercado, quer o sector público, são instituições imperfeitas de afectar os recursos, e como tal o objectivo da análise é desenvolver uma análise institucional comparada, para que se consiga diminuir e clarificar estas imperfeições.
É preciso não confundir a teoria da escolha pública com a vulgarização neoliberal, que, naturalmente, utilizou os argumentos desenvolvidos no âmbito da teoria para reforçar a sua posição ideológica de apoiar o desenvolvimento dos mercados, com cada vez menos restrições de qualquer natureza, e ao mesmo tempo defender a redução da intervenção do Estado na economia.

O reducionismo ideológico é precisamente a redução, com um objectivo de persuasão política, de problemas que são por natureza pluridimensionais a uma única dimensão. Essa única dimensão é geralmente identificada, no espaço ideológico unidimensional, com a oposição: mais Estado versus mais mercado, e esta última opção é geralmente defendida pelos autores neoliberais.

É natural que, no contexto redutor desta oposição ideológica, os argumentos desenvolvidos no âmbito da teoria da escolha pública tenham sido utilizados pelos defensores de um maior papel para os mercados. Contudo, da mesma maneira que é falacioso o argumento (utilizado pelos economistas do bem-estar) de que a existência de «fracassos de mercado» leva logicamente a concluir que a intervenção governamental é necessária e superior, também é falacioso o argumento de que os «fracassos do governo»
indicam, por si só, que o alargamento dos mercados terá efeitos benéficos.

Qualquer generalização é abusiva e a tarefa, eventualmente árdua, da análise institucional comparada é precisamente a de estudar, caso a caso, as vantagens e as limitações de cada arranjo institucional.

Aquilo que a teoria da escolha pública aponta não é para menos Estado, mas sim para melhor Estado, sendo um aspecto amplamente consensual.
Facilmente entendível, a dificuldade crescente que um governo tem (qualquer que ele seja) em implementar as políticas que considera as mais correctas para o país e sobretudo as reformas que são necessárias (na educação, na saúde, na segurança social, no sistema fiscal, etc) serem implementadas mesmo que por via de um recurso de ajuda financeira internacional, obrigando a perdas de soberania nessas mesmas políticas nacionais, visando colmatar políticas reestruturativas, muitas das quais, medidas impopulares, das que não captam votos, por isso, tendo sido evitadas por sucessivos governos.

Para além das consequências imediatas na relativa incapacidade de resolver certos problemas, existe um outro problema sério: a desconfiança crescente que muitos cidadãos vão tendo em relação à capacidade das instituições democráticas, em resolver os seus problemas, por outras palavras, um certo descrédito na democracia, que se manifesta, entre outros factos, no alheamento crescente do exercício da cidadania, e simultaneamente em crescentes radicalicazações, notoriamente elucidativos pelos recentes acontecimentos nalguns países da União Europeia.


TITO COLAÇO
17.05.12

0 comentários:

Enviar um comentário