Acabo de ouvir num canal televisivo que uma determinada empresa construtora "rescindiu com 300 colaboradores". Está tudo errado nesta frase. No espírito e na letra. O mundo laboral parece ter sido liofilizado no discurso jornalístico corrente. Como se a palavra trabalho queimasse. Como se trabalhar fosse algo indigno. Como se um trabalhador devesse ocultar esta sua condição numa sociedade - e num continente inteiro, como bem revelam as estatísticas europeias - onde um posto de trabalho é um bem cada vez mais escasso.
Trabalho, palavra bíblica. "Bem basta a cada dia o seu trabalho", diz Jesus no Sermão da Montanha. Reescrita à luz da novilíngua dominante, quem trabalha deixou de ser trabalhador: é "funcionário" ou, de modo ainda mais eufemístico, "colaborador". Pela mesma lógica, não pode ser despedido mas "dispensado". Ou, de modo ainda mais eufemístico, alguma Alta Entidade da corporação empresarial "prescinde" dos seus serviços. Ou da sua colaboração.
Sempre me ensinaram que o discurso jornalístico, para ser eficaz e competente, devia descodificar todo o jargão encriptado, que obscurece a mensagem em vez de a tornar transparente. Nos dias que correm, sucede precisamente ao contrário: o jornalismo abdica demasiadas vezes de clarificar a mensagem, obscurecendo-a por cumplicidade activa com as "fontes" ou por mera preguiça intelectual.
No reino dos eufemismos, não se trabalha: "colabora-se". E ninguém é despedido: há apenas quem "cesse funções" ou veja os seus préstimos "prescindidos" por alguma entidade empregadora em fase de "reestruturação" ou "reavaliação" das potencialidades do mercado. Mas as coisas são o que são, mesmo que as palavras ardilosas procurem camuflar uma realidade nua e crua.
A empresa construtora despediu 300 trabalhadores. Assim mesmo, ponto final. A realidade, só por si, já é suficientemente dura. Não juntemos ao drama do despedimento a injúria de ver esta palavra banida do dicionário jornalístico quando está mais presente que nunca na vida real.
Publicado no Blogue: Delito de Opinião
Por por Pedro Correia
28.05.12
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Em resposta a este texto, oferece-me o seguinte comentário que enderecei ao autor do mesmo, apesar de entender o seu ponto de vista, tendo a minha ousadia de realçar, na minha opinião, o meu delito de opinião, o seguinte:
Não sei qual o problema, da terminologia das palavras que se empregue, quando se sabe o sentido da frase.
Não sei qual o problema, de quem escreve que opte por esta ou aquela palavra, sendo a intenção do significado, o importante.
Não sei qual o problema, de quem lê, quando sabe e entende o que se quis dizer.
O problema é este: muito se fala, fala-se e fartam-se de falar.
Os canais televisivos, as rádios, os blogues,..., há comentadores, comentaristas, especialistas, curiosos, académicos, políticos, e quem seja tudo isto junto, ex-tudo desde ex-políticos, ex-professores, ex-desportistas, ex-qualquer coisa,..., toda a gente, "todo o mundo" como dizem os brasileiros. Fala-se, falam e fartam-se de falar...
É este o problema, fala-se demais.
Não é que a livre expressão esteja mal, não! é o excesso dela. De falar por falar. Todos querem o seu tempo de antena. Todos e ao mesmo tempo.
É este o problema, fala-se muito e faz-se pouco.
Pouco, do que se deveria fazer: fazer-se mais e falar menos.
Não interessa trabalhar muito, muitas horas, pode-se trabalhar menos e melhor.
Não se devia dar importância à forma, mas ao conteúdo, não à estética mas ao interior, da realidade patente, visível a todos excepto a quem estiver enclausurado no seu universo imaginário, precisará de ouvir, de ler, de tanta notícia, de tantos comentários, de tantas pessoas, a toda a hora.
Como se fosse o modo como se diz, mudasse o que existe.
TITO COLAÇO
29.05.12