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sábado, 26 de janeiro de 2013

O DESASTRE ORTOGRÁFICO



O DESASTRE ORTOGRÁFICO (Miguel Sousa Tavares - EXPRESSO, 19 de Janeiro de 2013)

Em 1990, quando oito países da CPLP assinaram o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, eu era director da revista “Grande Reportagem” e assinei, conjuntamente com Vicente Jorge Silva, então director do “Público“, e Miguel Esteves Cardoso, então director de “O Independente”, uma declaração, publicada nos respectivos meios, comprometendo-nos a não aplicar o dito acordo nas nossas páginas. Passados vinte e três anos, não mudei de opinião relativamente ao AO: fundamentalmente, continuo a não aceitar o facto consumado de um acordo saído do nada, a pedido de ninguém, não negociado nem explicado aos principais utilizadores da língua — autores, professores, editores, jornalistas — e imposto a dez milhões de portugueses por uma comissão de sábios da Academia das Letras do Brasil e da Academia das Ciências de Portugal.
Sempre temi a ociosidade dos sábios e a tendência leviana dos governantes para legislarem a pedido das modas intelectuais. Mas nunca pensei que uma nação que tinha levado a sua língua às cinco partidas do mundo, chegando a ser a língua franca nos mares do sudoeste asiático até ao dealbar do século XIX, fosse capaz de voluntariamente, e invocando vagos interesses geocomerciais, propor a sua submissão às regras em uso num país onde levámos a língua que o unificou. Por outro lado, não fui sensível ao argumento de que as grafias mudam (sem ser naturalmente) e ao exemplo, tantas vezes esgrimido, do ‘ph’ reduzido a ‘f’ pelo AO de 1945 (que o Brasil nunca aplicou, como também não aplicou o anterior, de 1931…). Não alcanço que extraordinário progresso se consumou ao deixar de se escrever “pharmácia”, a troco da “farmácia”, e acho seguramente intrigante que idêntico progresso não tenha contagiado, por exemplo, franceses e ingleses. que continuam a escrever a mesma palavra com ph. Também nunca me convenceu o argumento de que o AO facilitaria a penetração da literatura portuguesa nos PALOP e no Brasil, impossível de alcançar sem ele.
Quanto aos PALOP, basta o facto da recusa de Angola e Moçambique de, até hoje, ratificarem o AO, preferindo escrever no português que lhes levámos, para desmentir essa pretensa vantagem; e, quanto ao Brasil, perdoem-me a imodéstia de invocar o meu testemunho pessoal de quatro livros lá editados, todos com a referência de que “por vontade do autor, manteve-se a grafia usada em Portugal” — e sem que isso tenha prejudicado de alguma forma a sua edição, divulgação e venda.
Oito países falantes de português assinaram o AO de 1990, mas como, após anos de espera em vão, apenas quatro o tinham ratificado, esses quatro decidiram, em 2008, que eram suficientes para o fazer entrar em vigor. O AO, que entre nós começou a vigorar aos bochechos em 2009, é, assim, e antes de mais, inválido, resultante de umagolpada jurídica não prevista no tratado inicial, que apenas confirmou o voluntarismo idiota e o abuso político com que todo o processo foi conduzido. Porque nunca conseguiu convencer quem devia, o AO foi imposto manu militari, por governantes saloios, desprovidos de coragem para enfrentar os lóbis da “cultura” e convencidos de que a força da lei há-de sempre acabar por triunfar sobre a fraqueza da sem-razão. Surdos a todos os argumentos dos oponentes (entre os quais o país deve uma homenagem de gratidão a Vasco Graça Moura), desdenhosos perante o abaixo-assinado com 130.000 subscritores contra o AO, sem um estremecimento de vergonha perante o editorial do “Jornal de Angola” do Verão passado (que aqui citei na altura), onde se escrevia que, se Portugal não defendia a sua língua, defendê-la-iam eles, os governantes acharam que o mais importante de tudo era não desagradar ao Brasil, a cuja presumida vontade fora dedicado o AO.
Mas eis que na iminência de entrar em vigor plenamente no Brasil, em 1 de Janeiro passado, uma petição com 30.000 assinaturas levou o Congresso a pedir e Dilma Rousseff a aceitar a suspensão da sua entrada em vigor por três anos, para que melhor se medite no diktat dos sábios. E chegámos assim à situação actual, verdadeira parábola sobre o destino da sobranceria: neste momento, há três grafias oficiais da língua portuguesa — a que vigora em Angola, Moçambique, Timor, e que é a anterior ao AO; a grafia brasileira que é a mesma de sempre, resultante do não acatamento de nenhum dos três acordos ortográficos assinados connosco, ao longo de 60 anos; e a de Portugal, que, com excepções ainda autorizadas, é resultante do AO de 1990 — feito, segundo diziam, para “unificar a língua”, agradar aos brasileiros e não perder influência em África! É notável, é brilhante, é mais do que prometia a estupidez humana! Perante este facccccccccto, seria de esperar que os nossos sábios e os arautos dos amanhãs que cantariam no português por eles unificado pintassem a cara de preto e viessem pedir desculpas públicas. Eu dar-lhes-ia como castigo a conversão ao AO do “Grande Sertão, Veredas”, de Guimarães Rosa.
Porque agora, digam-me lá, o que faremos nós, depois de termos obrigado, e quase arruinado, os nossos editores a converterem em português do AO todos os livros editados? Depois de termos tornado obrigatórias no ensino as regras do AO, desde a época passada? Depois de termos convencido prestigiadas instituições, como este jornal, a submeterem-se ao Conselho de Ministros? Vamos, como legalmente previsto, tornar o AO universalmente obrigatório para todos a partir de 2015, vergando de vez os lusitanos que ainda resistem, sem saber se os brasileiros farão o mesmo no ano seguinte? Vamos correr o risco de ficar a escrever numa grafia em que mais nenhum país falante da nossa língua escreverá? Vamos oferecer um banco aos angolanos e a TAP aos brasileiros, em troca de eles se renderem e terem pena da nossa solidão? Vamos acolher a Guiné Equatorial na CPLP contra a jura de ratificarem o AO? Vamos exigir aos ilustres embaixadores aposentados da CPLP o mesmo destemor a defender o AO de que deram mostras a enfrentar o governo de narcotraficantes da Guiné-Bissau? Ou vamos conformarmo-nos a ter uma geração de pais que escreve de uma maneira e uma de filhos que escreve de outra maneira?
Porque uma coisa é garantida: a arrogância dos poderosos não conhece arrependimento. Eles jamais voltarão atrás, reconhecendo que se enganaram, que se precipitaram, que foram atrás de vozes de sereias, que se esqueceram de que há coisas que nenhum país independente cede sem estremecer: o território, o património, a paisagem, a língua. Trataram isto como coisa menor, como facto herdado e consumado, de ministro em ministro, de governo em governo, de parlamento em parlamento, de Presidente em Presidente. Partiram do princípio de que os portugueses comem tudo, desde que bem embrulhado em frases grandiloquentes, com a assinatura dos influentes e a cumplicidade dos prudentes. Mas, dêem agora as voltas que quiserem dar aos acordos que assinaram e à língua que lhes cabia defender e não trair, cobriram-se de ridículo. Está escrito nos livros de História: um pais que se humilha para agradar a terceiros, arrisca-se a nada recolher em troca, nem a gratidão dos outros nem o respeito dos seus. Apenas lhe resta o ridículo. Oxalá ele chegasse para matar de vez o triste Acordo Ortográfico!



Miguel Sousa Tavares - EXPRESSO, 19 de Janeiro de 2013


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De facto, a evolução linguística, nunca deveria ser imposta por Lei.
Nem ninguém será dona dela, simplesmente por a falar à mais tempo, nem mesmo os seus originários falantes, outro facto.
Os brasileiros, sentem tanto o português como sua língua, como os Angolanos ou Moçambicanos, assim como os outros lusófonos.
Não se vê nada parecido em relação às línguas inglesa, francesa ou castelhana. Só mesmo na língua portuguesa, os seus falantes europeus, a tentam por razões geopolíticas, "vender" a sua língua, com o pressuposto de ganhos económicos num mercado mais abrangente da lusofonia, em especial, o do brasileiro.
Algo que devia ser no mínimo referendado, para que a população toda, pudesse ser auscultada, e não só os "especialistas" na matéria, visto a língua, ter um grau intrinsecamente cultural e identitário com o seu povo, e por isso obrigatória, a sua legitimidade directa por essa via, qualquer tipo de Acordo Ortográfico, ainda mais nesta era da informação, em que a esmagadora maioria das pessoas já não é analfabeta nem iletrada.
A legitimidade legal, foi sumariamente posta em causa, pela "facada mortal" do adiamento do Brasil da entrada em vigor do AO, espelhando a fraqueza do projecto, e a perseverança daquele país, que talvez por ter maior número de falantes e ambicionar hegemonia linguística, poder ser detentor de "abrasileirar" nos ajustes que achar conveniente do seu ponto de vista ao Acordo, que pelos vistos também duvidam do anunciado carácter de unicidade.
Pessoalmente, lamento a precipitação dos governantes portugueses ao imporem aos seus nacionais, uma mudança de cariz linguístico-cultural tão profundamente importante, como se tratasse de algo facilmente transmutável por decreto, e simplesmente obedecida na imperceptibilidade dos seus directos interessados. 
No entanto, não desisto de sonhar que o grande património, por nós herdado, quiça o único que nos resta da nossa grandeza histórica, a língua portuguesa, continue a ser falada e entendida, de forma consensual pelos quase trezentos milhões de falantes espalhados pelo mundo todo, sendo uma verdadeira língua global!

TITO COLAÇO
26-01-2013

2 comentários:

Pedro Coimbra disse...

Como tinha prometido, aqui estou eu em visita.
Afinal venho encontrar um blogue de um jurista (também sou) que se revolta com o "aborto ortográfico".
Visitei, gostei, e vou ficar por aqui.

Elias disse...

Obrigado Pedro, pela sua visita, e como vê temos a mesma convicção sobre essa questão, que parece estar ainda longe de ser despoletada a solução onde predomine o bom-senso...
Confesso que não tenho tido muito tempo para "postar" como queria neste espaço, mas congratula-me o facto de alguém dar uma vista de olhos, por estes pensamentos em voz alta.
Também fico atento aos seus posts.

Obrigado mais uma vez e um Abraço,

TITO COLAÇO

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