Portugal - continua sem ter estratégia de prevenção e combate à corrupção
Há leis, mas os meios são poucos e são geridos de forma desconexa. Não há, assim, uma gestão global do combate à corrupção perceptível pelo país. Um diagnóstico feito por especialistas que apontam caminhos.
A noção do quanto é prejudicial para a sociedade portuguesa o adiar da elaboração de uma estratégia de prevenção e combate da corrupção em Portugal e a constatação de que ela é inexistente são traços comuns na análise que é feita da situação do combate à corrupção por figuras diversas ouvidas pelo PÚBLICO, como o presidente do Conselho de Prevenção da Corrupção, Guilherme d’01iveira Martins, a directora do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, Cândida Almeida, o presidente da Transparência e Integridade Associação Cívica, Luís de Sousa, o ex-ministro das Obras Públicas e ex-deputado João Cravinho e o deputado do PSD, presidente da comissão de Assuntos Constitucionais e antigo director da Polícia Judiciária, Fernando Negrão.
“Não há, nem houve nunca, uma estratégia de combate à corrupção”, garante Luís de Sousa, para quem o assunto tem sido conduzido de forma ziguezagueante. “Vão-se fazendo alterações legais e organizacionais, de acordo com o cumprimento de compromissos internacionais”, garante o responsável pela Transparência Internacional.
O próprio Guilherme d’Oliveira Martins reconhece a inexistência de estratégia, ao responder às perguntas do PÚBLICO por correio electrónico. O presidente do Conselho de Prevenção da Corrupção afirma que é, “de facto, necessário definir uma estratégia global na qual a prevenção tem de desempenhar um papel relevante”. Guilherme d’Oliveira Martins defende que “as recomendações do Greco [grupo de trabalho formado por alguns Estados contra a corrupção] deverão ser seguidas com cada vez maior exigência”. E avança mesmo que é necessário ter em conta questões como “os paraísos fiscais”, um problema que “tem de ser seguido com grande atenção, em especial no tocante à tributação, que deve ser agravada para desincentivar claramente a utilização de movimentos para off-shores”.
Por outro lado, Guilherme d’Oliveira Martins sustenta que “a corrupção combate-se, antes de mais, pela prevenção” e este é “o combate prioritário uma vez que é indispensável reduzir drasticamente a desconfiança e a suspeição, bem como a complacência dos cidadãos relativamente ao fenómeno, a começar na pequena dimensão”.
O presidente do Conselho de Prevenção da Corrupção vaticina mesmo que “a transparência, a colegialidade, a responsabilidade a revelação dos conflitos de interesses e a celeridade da justiça são fundamentais”, por isso, “o Conselho de Prevenção da Corrupção tem consciência de que é preciso reforçar a divulgação da sua acção, no sentido de sensibilizar mais e melhor os cidadãos para a prevenção da corrupção”.
A noção de como a acção de combate e prevenção têm sido aleatória e sem eficácia é salientada pelo deputado do PSD e presidente da comissão de Assuntos Constitucionais, Fernando Negrão, que, no passado, dirigiu a PJ e que na última legislatura integrou “um grupo de trabalho sobre o assunto constituído na Assembleia e presidido por Vera Jardim”. Negrão é brutal na avaliação deste
grupo, que apresenta como exemplo da situação: “Chamamos os agentes todos do processo, os académicos, etc. A pergunta era: ‘Digam, o que é preciso?’ A resposta foi sempre que não são precisas leis, mas meios, técnicos de investigação e magistrados. Mas a acção do grupo de trabalho foi inconsequente. Pergunto-me: Para que serviu?”
Sem rodeios, o presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais afirma que o que é preciso “é de mais organização”. E, interpelando o poder político, que o próprio integra, Negrão sustenta: “O poder político tem que ter uma estratégia para o combate à corrupção e tem que levar isso à discussão com o Ministério Público. Isso tem que ser definido, para não haver avanços e recuos. A sistemática imagem de que não há acusações, de sucessivos arquivamentos, traz a descredibilização do sistema. E isso é o que facilita as teias da corrupção. Claro que há quem jogue com a descredibilização do sistema judicial, para se libertar do sistema penal.” Para concluir: “É preciso gente que saiba organizar e, se for preciso o Governo meter mais dinheiro, metê-lo.”
Tribunais especializados
Uma visão fria da situação é também a de João Cravinho, que acusa: “Há falta de meios, mas é deliberado, pois isso possibilita a prescrição, os erros do processo, os esquecimentos.” Este antigo ministro, que investigou e fechou a Junta Autónoma de Estradas por corrupção, explica que “o crime de colarinho branco é internacional e altamente especializado”, por isso “a investigação está especializada na polícia nos magistrados”. Mas quando chegam a tribunal os processos “são julgado por um juiz generalista”. E Cravinho questiona: “Por que não há tribunais especializados na corrupção, por exemplo, nos distritos em que há Relação?”
Cravinho considera ainda que muita da complacência existente se deve ao facto de que, quando foi o 25 de Abril, apenas o PCP tinha implantação nacional e os “outros partidos, o CDS o PSD e o PS, formaram-se a partir do acesso aos bens do Estado”. Falando ainda dos problemas que os partidos políticos vivem e que são, na sua opinião, uma das razões porque não há estratégia de combate à corrupção, Cravinho garante: “Se não houvesse corrupção no financiamento dos partidos, tinha de ser inventada. A política hoje em dia é muitíssimo cara.” E remata: “O financiamento dos partidos foi agenciado por indivíduos que hoje são ricos.” Fernando Negrão também aponta caminhos. “No sistema judicial não pode haver protagonismos e há pessoas que se eternizam nos lugares”, aponta, acrescentando, que o sistema fica minado por “guerras de protagonismos, questões de liderança, problemas cooperativos”. Outra questão que destaca é a de que “os investigadores viram figuras públicas e tornam-se intocáveis e depois não se pode fazer perguntas”. Ora, conclui: “Nós não podemos deixar de fazer perguntas”.
Só nove processos
Cândida Almeida, responsável pelo DCIAP, lembra, em defesa do trabalho que tem sido feito no combate à corrupção, que uma coisa é “a percepção da corrupção, e outra é a realidade”. Assim como que não se pode misturar corrupção enquanto crime com corrupção sociológica. E garante: “Se falamos de corrupção do ponto de vista sociológico temos muita, há fraude fiscal, abuso de poder, peculato, administração danosa e participação danosa em negócio, tráfico de influências”, mas isso, frisa, “não é a figura penal própria de corrupção”.
E quanto a isso, jura, não há queixas com provas. “No site que criámos há um ano houve 1500 denúncias. A grande maioria é pedidos de auxílio ou denúncias por inveja, do tipo, investiguem porque ele tem dois carros”, relata, explicando ainda que “das 1500 denúncias houve 90 averiguações preventivas com um mínimo de indícios e só nove passaram a processo”. Havendo, a “nível nacional, cerca de 600 investigações por ano”.
“Queimar a terra”
Mas a directora do DCIAP admite que “os meios não são os necessários, os magistrados são insuficientes”. Pormenorizando, explica que “o DCIAP tem 13 magistrados procuradores para a criminalidade altamente especializada, mais 12 procuradores adjuntos que coadjuvam”. E conclui: “Não há investigadores que cheguem. A ministra já disse que vai investir na investigação criminal. Precisamos de equipas multidisciplinares a trabalhar.”
A falta de estratégia “não é inocente”, acusa Luís de Sousa. O presidente da TIAC considera que, “no fundo, esta situação pode significar que há uma estratégia, que é a de minar os instrumentos legislativos e judiciais, para que não sejam eficazes”. E avança com exemplos: “No crime de vantagem indevida, cabe aos magistrados decidir o que cai sob a alçada da questão cultural, isto é permitir tudo.” Ou seja, para Luís de Sousa, esta atitude de “queimar a terra, é uma estratégia sim, mas de minar o combate à corrupção”.
Prosseguindo, o presidente da TIAC questiona: “No financiamento dos partidos foram deixados alçapões na lei, para quê? Por que não se regulou ainda as incompatibilidades nos gabinetes ministeriais? O Parlamento pelo menos tem uma Comissão de Ética, um Estatuto de Deputado. Ao nível ministerial e de gabinetes, isso não existe. Há apenas o voto e a sanção criminal, no meio não há nada.” E conclui que “há desleixo a tratar uma matéria que é sensível”, perguntando: “Fala-se de responsabilizar os políticos, então os responsáveis pela fiscalização? O Conselho de Prevenção da Corrupção não funciona. Ocupa o espaço e isso dificulta o debate posterior sobre alternativas. Aliás, todo o sistema nacional de integridade não funciona, se calhar é altura das pessoas porem os cargos à disposição.”
Público
04 Dezembro 2011