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quinta-feira, 26 de maio de 2011

OS PRINCÍPIOS EM TEMPO DE CRISE Por Dr. Jorge de Almeida Esteves Juiz de Direito

Os princípios em tempo de 
crise  

Jorge de Almeida Esteves - «Vejo muita gente a clamar por reformas da justiça que mais não visam do que cavar a sepultura da independência dos tribunais, e muitos fazem-no com a melhor das intenções, deixando-se levar por um discurso eufemístico e em tudo semelhante a cantos de sereia. O que muitas dessas pessoas ainda não perceberam é que, quando a tarefa ficar concluída, os primeiros a cair nela vão ser elas próprias, pois nessa altura já não terão juízes independentes para defender os seus direitos, porque é para isso mesmo que a independência existe».


OS PRINCÍPIOS EM TEMPO DE CRISE
Por Dr. Jorge de Almeida Esteves
Juiz de Direito


A palavra crise desde há muito que faz parte do léxico dos portugueses e tornou-se hoje em dia algo que é praticamente dominante. Mas importa apurar de que crise ou crises estamos a falar.

Temos a crise da justiça, de que já há muito se fala, sendo especialmente referida como uma crise de eficácia, de excessiva morosidade. Já D. Pedro I se preocupava com os atrasos na justiça e também Filipe I, II de Espanha, começou a governar Portugal, uma das primeiras coisas de que se apercebeu foi de que a justiça funcionava mal, tendo nomeado uma comissão para reformar a justiça, da qual saiu, em 1591, a Ley da Reformaçom da Justiça (pela qual foi criado este Tribunal da Relação). A sempre falada crise da justiça já vem de longa data, mas agora tornou-se, também ela, mais premente com o completo fracasso das reformas da acção executiva.

Depois temos a crise económico-financeira que estalou em 2008 com a falência de um dos mais importantes bancos de investimento americano, o Lehman Brothers, e que arrastou para a bancarrota, por decorrência directa, países como a Islândia e a Irlanda.

Depois temos a crise económica portuguesa que, pelo que tem vindo a lume, não tem em grande parte que ver com a crise económico-financeira de 2008. Todos os especialistas que analisaram e comentaram a situação económica do país são unânimes em considerar que essa situação económica é essencialmente imputável ao excessivo despesismo com gastos supérfluos, a má gestão, às derrapagens económico-financeiras das grandes obras públicas, às parcerias público-privadas, a graves erros políticos relativos à não adopção atempada das medidas necessárias para correcção do deficit. Mais do que à crise económica internacional, a situação económica do país é imputável à actuação dos órgãos políticos.

Estas crises têm a ver com os princípios relativos ao Poder Judicial?

Alguma parte das crises é imputável a esses princípios?

Os princípios impedem que as crises se resolvam?

Vejamos alguns dos princípios que constam da Magna Carta dos Juízes aprovada em 2010 pelo Conselho Consultivo de Juízes do Conselho da Europa:

1- O poder judicial constitui um dos três poderes do Estado democrático. A sua missão é garantir a existência de um estado de direito e assegurar a boa aplicação do direito de uma forma imparcial, justa, equitativa e eficaz.

2- A independência e a imparcialidade são duas condições prévias indispensáveis ao bom funcionamento da justiça

3- A independência do juiz deve ser estatutária, funcional e financeira

4- O Estado deve assegurar os meios humanos, materiais e financeiros necessários ao bom funcionamento da justiça. O juiz deve beneficiar de uma remuneração e de um sistema de reforma apropriados e garantidos por lei que o salvaguarde de toda e qualquer influência indevida.

5- O poder judicial deve participar em todas as decisões que afectem o exercício das funções judiciárias (organização judiciária, leis de processo).

Quando Silvio Berlusconi ataca os juízes e pretende alterar as leis que limitam a sua competência, tendo especialmente em vista a sua concreta situação processual, está a tentar resolver alguma das crises acima referidas?

Quando o presidente do Equador, Rafael Correa, leva a efeito um referendo com vista a reformar o sistema de justiça, em que uma das alterações é o poder de nomear 3 dos 5 membros que compõem a comissão que nomeia os juízes para o Supremo Tribunal, está a tentar debelar alguma crise?

Quando, nos Estados Unidos, são defendidas propostas no sentido de os juízes federais passarem também a ser eleitos e poderem ser objecto de pedidos de "impeachment" por causa das decisões que proferem, como forma de os pressionar a não decidirem contra certos interesses instalados, e ainda de o Congresso poder anular por maioria decisões do Supremo Tribunal, têm em vista enfrentar alguma das crises?

Os juízes existem desde que o Homem começou a viver organizado em sociedade. O conflito é algo de natural na sociedade e é necessário que existam juízes para os resolver. Uma sociedade que se organizasse sem juízes e, naturalmente, sem tribunais, seria uma sociedade condenada a regressar aos tempos da justiça privada, em que os mais fortes imporiam a sua vontade a toda a sociedade. Os tribunais são o último reduto dos mais fracos. Os fortes não necessitam dela pois têm a força para impor a sua vontade.

Inicialmente a administração da justiça era algo que incumbia ao Rei, que, por isso, nomeava os juízes. Os juízes eram, assim, totalmente dependentes do Rei, o que era o mesmo que dizer que eram dependentes do poder político. Ora, o princípio da separação de poderes, por um lado, e o princípio da independência dos tribunais, por outro lado, tiveram a sua génese exactamente na limitação do poder do Rei. Este, inicialmente, concentrava em si todo o poder. Para o limitar, separaram-se os poderes do Estado e a cada poder passou a corresponder um órgão próprio: o poder executivo cabia ao Rei e ao seu Governo, o legislativo à Assembleia eleita pelo povo e o poder judicial aos Tribunais. Mas a separação de poderes não basta para limitar o poder do Rei. Era também necessário que os poderes do Estado fossem independentes uns dos outros, não só para poderem exercer as suas funções, mas também para exercerem um controle recíproco sobre os outros poderes do Estado. Ora, a função jurisdicional do Estado, sendo aquela à qual incumbia a resolução dos conflitos de interesses que surgissem na sociedade, assim como a violação da legalidade, sendo por isso o principal baluarte do Estado de Direito, era onde se fazia sentir com mais premência a necessidade de independência. Thomas Jefferson, na declaração de independência dos Estados Unidos, para defender que os Tribunais teriam que ser independentes dos restantes poderes do Estado, argumentou com o facto de o Rei Jorge III, ao nomear os juízes, fazia com que eles ficassem unicamente dependentes da sua vontade e por isso, se queriam continuar a exercer a sua função, não podiam, por receio, decidir contra a Coroa ou até mesmo contra o Parlamento. Daí que Thomas Jefferson considerasse a independência dos Tribunais como algo de essencial para a organização política de qualquer sociedade e essa independência manifestava-se acima de tudo na independência face ao poder político.

Sendo os juízes essenciais para a organização política de qualquer sociedade, é óbvio que certas alterações, como aquelas que acima exemplificativamente se referiram, pretendem apenas o regresso à situação em que os juízes eram dependentes da vontade do Rei, passando agora, numa versão mais moderna, a serem dependentes dos poderes político-sociais e económicos instalados.

O que incomoda a esses poderes é a existência de juízes que agem de forma independente, isenta, imparcial, e que o fazem em obediência à lei, que é igual para todos. O que interessaria aos poderes político-sociais e económicos instalados era que os juízes fossem, no que a eles respeita, inócuos, não incomodativos, tal qual como o eram no tempo do Rei.

A justiça e os juízes não estão acima de qualquer crítica. Não é isso que a independência significa. Pode-se e deve-se exercer o direito de crítica. Aliás, a justiça e a actividade dos juízes em particular, é a que está mais sujeita ao escrutínio externo, quer por via das partes, quer por via dos recursos, quer por via dos Conselhos Superiores, quer também por via da comunicação social. E a crítica é também importante para que o sistema funcione melhor, sugerindo-se práticas e alterações para essa melhoria.

Mas não podemos usar o argumento da maior eficiência da justiça, que é necessária sem dúvida, para mexer em aspectos fundamentais dos princípios que devem reger este poder do Estado.

Ajuda resolver a crise, seja a da justiça, seja a económica, a alteração das regras de acesso às Relações e ao Supremo Tribunal? Ou a exigência de mestrados e doutoramentos para o concurso aos tribunais especializados equiparados a círculo? Porque se desvaloriza e menospreza o juiz de carreira, criando um sistema em que será quase impossível a progressão? Porque se pretende alterar as regras de composição do CSM, passando este Conselho a ser composto maioritariamente por membros indicados pelo poder político? E, noutro âmbito, podemos colocar no mesmo plano as reduções salariais da função pública e as reduções salariais dos juízes? A independência económica dos juízes é ou não importante para garantir a sua independência?

Os princípios em nada influem com a crise. Antes pelo contrário. A crise resultou exactamente da falta de princípios, quer jurídicos, quer éticos, quer de justiça social. Temos de ter uma justiça eficaz, é certo, e isso é importante para sairmos da crise e todos nós estamos animados do espírito de dar o nosso contributo para uma justiça mais célere e mais eficaz. Mas se não tivermos uma justiça independente, para além de tal significar o fim do Estado de Direito, a sociedade estará desprotegida, nomeadamente contra a criminalidade que mais mina os fundamentos sócio-económicos do Estado e que é a corrupção e a lavagem de dinheiro.

Acresce que quanto aos princípios que regem o Poder Judicial, nomeadamente o da independência, nunca se ouviu quem quer que fosse clamar contra esse princípio, dizendo que ele está ultrapassado, que não responde às necessidades actuais da vida em sociedade, que deve ser alterado.

Muito antes pelo contrário, ouvimos sempre a proclamação da defesa da independência por parte dos responsáveis políticos. Mas depois a prática é a que se vê: criação de orgânicas judiciárias que prevêem a existência de hierarquias internas entre os juízes, reduções acentuadas do respectivo vencimento que colocam em risco a independência económica, desvalorização do juiz de carreira, controle do órgão de gestão e disciplina por parte do poder político. E falam destas medidas como se isso em nada afectasse a independência do poder judicial e até como forma de responder à crise da justiça e à crise económica.

Vejo muita gente a clamar por reformas da justiça que mais não visam do que cavar a sepultura da independência dos tribunais, e muitos fazem-no com a melhor das intenções, deixando-se levar por um discurso eufemístico e em tudo semelhante a cantos de sereia. O que muitas dessas pessoas ainda não perceberam é que, quando a tarefa ficar concluída, os primeiros a cair nela vão ser elas próprias, pois nessa altura já não terão juízes independentes para defender os seus direitos, porque é para isso mesmo que a independência existe.



Jorge de Almeida Esteves
Presidente do Fórum Permanente Justiça Independente

(Intervenção na Conferência realizada no Porto, em 20.05.2011 - justicaindependente.net)


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