Sail
on the wings of destiny...
Em
“O Banqueiro Anarquista” de Fernando Pessoa, dois amigos numa mesa de um
restaurante debatem a situação social de um deles, onde diz que paradoxalmente,
tornou-se banqueiro porque é politicamente anarquista.
I
got something on my mind
As I'm heading out tonight
There are so many different
Lives in the city
A man lies shaking in the street
With nothing on his feet
A girl looks the other way, without pity
Same sidewalk, still worlds apart
In the name of love
A thousand years of ageless history
Past your eyes, will it ever change?
And forever more
Now we are here to live the mystery
And we sail on the wings of destiny
Somewhere another child is born
Into a broken home
Oh this life can be so cold
When you're lonely
Without a soft and warm embrace
And a loving smiling face
It's hard to carry on
If we could only remember...
Do you still care?
In the name of love
A thousand years of ageless history
Past your eyes, nothing will change
And forever more
Now we are her to live the mystery
And we sail on the wings of destiny
Now we need love more than ever
But compassion is so hard to find
I wish we all cold reach for unity
In the name of love
In the name of humanity
Brothers, sisters don't you know
It's where we ought to be
In the name of love
A thousand years of ageless history
Past your eyes, now it seems to change
And forever more
Now we are here to live the mystery
And we sail on the wings of destiny...
As I'm heading out tonight
There are so many different
Lives in the city
A man lies shaking in the street
With nothing on his feet
A girl looks the other way, without pity
Same sidewalk, still worlds apart
In the name of love
A thousand years of ageless history
Past your eyes, will it ever change?
And forever more
Now we are here to live the mystery
And we sail on the wings of destiny
Somewhere another child is born
Into a broken home
Oh this life can be so cold
When you're lonely
Without a soft and warm embrace
And a loving smiling face
It's hard to carry on
If we could only remember...
Do you still care?
In the name of love
A thousand years of ageless history
Past your eyes, nothing will change
And forever more
Now we are her to live the mystery
And we sail on the wings of destiny
Now we need love more than ever
But compassion is so hard to find
I wish we all cold reach for unity
In the name of love
In the name of humanity
Brothers, sisters don't you know
It's where we ought to be
In the name of love
A thousand years of ageless history
Past your eyes, now it seems to change
And forever more
Now we are here to live the mystery
And we sail on the wings of destiny...
The Poodles
“Wings of destiny”
O banqueiro anarquista
Tínhamos acabado de
jantar. Defronte de mim o meu amigo, o banqueiro, grande comerciante e
açambarcador notável, fumava como quem não pensa. A conversa, que fora
amortecendo, jazia morta entre nós. Procurei reanimá-la, ao acaso, servindo-me
de uma ideia que me passou pela meditação. Voltei-me para ele, sorrindo.
— É verdade:
disseram-me há dias que você em tempos foi anarquista…
— Fui, não: fui e
sou. Não mudei a esse respeito.
Sou anarquista.
— Essa é boa! Você
anarquista! Em que é que você é anarquista?... Só se você dá à palavra sentido
diferente...
— Do vulgar? Não;
não dou. Emprego a palavra no sentido vulgar.
— Quer você dizer,
então, que é anarquista exactamente no mesmo sentido em que são anarquistas
esses tipos das organizações operárias? Então entre você e esses tipos da bomba
e dos sindicatos não há diferença nenhuma?
— Diferença,
diferença, há... Evidentemente que há diferença. Mas não é a que você julga.
Você duvida talvez que as minhas teorias sociais sejam iguais às deles?...
— Ah, já percebo!
Você, quanto às teorias, é anarquista; quanto à prática.. .
— Quanto à prática
sou tão anarquista como quanto às teorias. E quanto à prática sou mais, sou
muito mais anarquista que esses tipos que você citou. Toda a minha vida o
mostra.
— Hem?!
— Toda a minha vida
o mostra, filho. Você é que nunca deu a estas coisas uma atenção lúcida. Por
isso lhe parece que estou dizendo uma asneira, ou então que estou brincando
consigo.
— Ó homem, eu não
percebo nada!... A não ser..., a não ser que você julgue a sua vida dissolvente
e anti-social e dê esse sentido ao anarquismo...
— Já lhe disse que
não — isto é, já lhe disse que não dou à palavra anarquismo um sentido
diferente do vulgar.
— Está bem...
Continuo sem perceber... Ó homem, você quer me dizer que não há diferença entre
as suas teorias verdadeiramente anarquistas e a prática da sua vida — a prática
da sua vida como ela é agora? Você quer que eu acredite que você tem uma vida
exactamente igual à dos tipos que vulgarmente são anarquistas?
— Não; não é isso.
O que quero dizer é que entre as minhas teorias e a prática da minha vida não
há divergência nenhuma, mas uma conformidade absoluta. Lá que não tenho uma
vida como a dos tipos dos sindicatos e das bombas — isso é verdade. Mas é a
vida deles que está fora do anarquismo, fora dos ideais deles. A minha não. Em
mim — sim, em mim, banqueiro, grande comerciante, açambarcador se você quiser
—, em mim a teoria e a prática do anarquismo estão conjuntas e ambas certas.
Você comparou-me a esses parvos dos sindicatos e das bombas para indicar que
sou diferente deles. Sou, mas a diferença é esta: eles (sim, eles e não eu) são
anarquistas só na teoria; eu sou-o na teoria e na prática. Eles são anarquistas
e estúpidos, eu anarquista e inteligente. Isto é, meu velho, eu é que sou o
verdadeiro anarquista. Eles — os dos sindicatos e das bombas (eu também lá
estive e saí de lá exactamente pelo meu verdadeiro anarquismo) — eles são o
lixo do anarquismo, os fêmeas da grande doutrina libertária.
— Essa nem ao diabo
a ouviram! Isso é espantoso! Mas como conci1ia você a sua vida — quero dizer a
sua vida bancária e comercial — com as teorias anarquistas? Como o concilia
você, se diz que por teorias anarquistas entende exactamente o que os
anarquistas vulgares entendem? E você, ainda por cima, me diz que é diferente
deles por ser mais anarquista do que eles — não é verdade?
— Exactamente.
— Não percebo nada.
— Mas você tem
empenho em perceber?
— Todo o empenho.
Ele tirou da boca o
charuto, que se apagara; reacendeu-o lentamente; fitou o fósforo que se
extinguia; depô-lo ao de leve ao cinzeiro; depois, erguendo a cabeça, um
momento abaixada, disse;
— Oiça. Eu nasci do
povo e na classe operária da cidade. De bom não herdei, como pode imaginar, nem
a condição, nem as circunstâncias. Apenas me aconteceu ter uma inteligência
naturalmente lúcida e uma vontade um tanto ou quanto forte. Mas esses eram dons
naturais, que o meu baixo nascimento me não podia tirar.
«Fui operário,
trabalhei, vivi uma vida apertada; fui, em resumo, o que a maioria da gente é
naquele meio. Não digo que absolutamente passasse fome, mas andei lá perto. De
resto, podia tê-la passado, que isso não alterava nada do que se seguiu, ou do
que lhe vou expor, nem do que foi a minha vida, nem do que ela é agora.
«Fui um operário
vulgar, em suma; como todos, trabalhava porque tinha que trabalhar, e
trabalhava o menos possível. O que eu era, era inteligente. Sempre que podia,
lia coisas, discutia coisas e, como não era tolo, nasceu-me uma grande
insatisfação e uma grande revolta contra o meu destino e contra as condições
sociais que o faziam assim. Já lhe disse que, em boa verdade, o meu destino
podia ter sido pior do que era; mas naquela altura parecia-me que eu era um
ente a quem a Sorte tinha feito todas as injustiças juntas, e que se tinha
servido das convenções sociais para mas fazer. Isto era aí pelos meus vinte
anos — vinte e um o máximo — que foi quando me tornei anarquista.
Parou um momento.
Voltou-se um pouco mais para mim. Continuou, inclinando-se mais um pouco.
— Fui sempre mais
ou menos lúcido. Sentia-me revoltado. Quis perceber a minha revolta. Tornei-me
anarquista consciente e convicto — o anarquista consciente e convicto que hoje
sou.
— E a teoria, que
você tem hoje, é a mesma que tinha nessa altura?
— A mesma. A teoria
anarquista, a verdadeira teoria, é só uma. Tenho a que sempre tive, desde que
me tornei anarquista. Você já vai ver... Ia eu dizendo que, como era lúcido por
natureza, me tornei anarquista consciente. Ora o que é um anarquista? É um
revoltado contra a injustiça de nascermos desiguais socialmente — no
fundo é só isto. E daí resulta, como é de ver, a revolta contra as convenções
sociais que tornam essa desigualdade possível. O que lhe estou indicando agora
é o caminho psicológico, isto é, como é que a gente se torna anarquista; já vamos
à parte teórica do assunto. Por agora, compreenda você bem qual seria a revolta
de um tipo inteligente nas minhas circunstâncias. O que é que ele vê pelo
mundo? Um nasce filho de um milionário, protegido desde o berço contra aqueles
infortúnios — e não são poucos — que o dinheiro pode evitar ou atenuar; outro
nasce miserável, a ser, quando criança, uma boca a mais numa família onde as
bocas são de sobra para o comer que pode haver. Um nasce conde ou marquês, e
tem por isso a consideração de toda a gente, faça ele o que fizer; outro nasce
assim como eu, e tem que andar direitinho como um prumo para ser ao menos
tratado como gente. Uns nascem em tais condições que podem estudar, viajar,
instruir-se — tornar-se (pode-se dizer) mais inteligentes que outros que
naturalmente o são mais. E assim por adiante, e em tudo...
»As injustiças da
Natureza, vá: não as podemos evitar. Agora as da sociedade e das suas
convenções — essas, por que não evitá-las? Aceito — não tenho mesmo outro
remédio — que um homem seja superior a mim por o que a Natureza lhe deu — o
talento, a força, a energia; não aceito que ele seja meu superior por
qualidades postiças, com que não saiu do ventre da mãe, mas que lhe aconteceram
por bambúrrio logo que ele apareceu cá fora — a riqueza, a posição social, a
vida facilitada, etc. Foi da revolta que lhe estou figurando por estas
considerações que nasceu o meu anarquismo de então — o anarquismo que, já lhe
disse, mantenho hoje sem alteração nenhuma.
Parou outra vez um
momento, como a pensar como prosseguiria. Fumou e soprou o fumo lentamente,
para o lado oposto ao meu. Voltou-se, e ia a prosseguir. Eu, porém
interrompi-o.
— Uma pergunta, por
curiosidade... Por que é que você se tornou propriamente anarquista? Você podia
ter-se tornado socialista, ou qualquer outra coisa avançada que não fosse tão
longe. Tudo isso estava dentro da sua revolta... Deduzo do que você disse que
por anarquismo você entende (e acho que está bem como definição do anarquismo)
a revolta contra todas as convenções e fórmulas sociais e o desejo e esforço
para a abolição de todas...
— Isso mesmo.
— Por que escolheu
você essa fórmula extrema e não se decidiu por qualquer das outras... das
intermédias?...
— Eu lhe digo. Eu
meditei tudo isso. É claro que nos folhetos que eu lia via todas essas teorias.
Escolhi a teoria anarquista — a teoria extrema, como você muito bem diz — pelas
razões que lhe vou dizer em duas palavras.
Fitou um momento
coisa nenhuma. Depois voltou-se para mim.
— O mal verdadeiro,
o único mal, são as convenções e as ficções sociais, que se sobrepõem às
realidades naturais — tudo, desde a famí1ia ao dinheiro, desde a religião ao
Estado. A gente nasce homem ou mulher — quero dizer, nasce para ser, em adulto,
homem ou mulher; não nasce, em boa justiça natural, nem para ser marido, nem
para ser rico ou pobre, como também não nasce para ser católico ou protestante,
ou português ou inglês. E todas estas coisas em virtude das ficções sociais.
Ora essas ficções sociais são más porquê? Porque são ficções, porque não
são naturais. Tão mau é o dinheiro como o Estado, a constituição da
faml1ia como as religiões. Se houvesse outras, que não fossem estas, seriam
igualmente más, porque também seriam ficções, porque também se
sobreporiam e estorvariam as realidades naturais. Ora qualquer sistema que não
seja o puro sistema anarquista, que quer a abolição todas as ficções e de cada
uma delas completamente, é uma ficção também. Empregar todo o nosso
desejo, todo o nosso esforço toda a nossa inteligência para implantar, ou
contribuir para implantar, uma ficção social em vez de outra, é um absurdo,
quando não seja mesmo um crime, porque é fazer uma perturbação social com
o fim expresso de deixar tudo na mesma. Se achamos injustas as ficções
sociais, porque esmagam e oprimem o que é natural no homem, para que empregar o
nosso esforço em substituir-lhes outras ficções, se o podemos empregar para as
destruir a todas?
«Isto parece-me que
é concludente. Mas suponhamos que o não é; suponhamos que nos objectam que isto
tudo estará muito certo, mas que o sistema anarquista não é realizável na
prática. Vamos lá a examinar essa parte do problema.
«Por que é que o
sistema anarquista não seria realizável? Nós partimos, todos os avançados, do
princípio, não só de que o actual sistema é injusto, mas de que há vantagem,
porque há justiça, em substituí-lo por outro mais justo. Se não pensamos assim,
não somos avançados, mas burgueses. Ora de onde vem esse critério
de justiça? Do que é natural e verdadeiro, em oposição às
ficções sociais e às mentiras da convenção. Ora o que é natural é o que é
inteiramente natural, não o que é metade, ou um quarto, ou um oitavo de
natural. Muito bem. Ora, de duas coisas, uma: ou o natural é realizável
socialmente ou não é, em outras palavras, ou a sociedade pode ser natural, ou a
sociedade é essencialmente ficção e não pode ser natural de maneira nenhuma. Se
a sociedade pode ser natural, então pode haver a sociedade anarquista, ou
livre, e deve haver, porque é ela a sociedade inteiramente natural. Se a
sociedade não pode ser natural, se (por qualquer razão que não importa) tem por
força que ser ficção, então do mal o menos; façamo-la dentro dessa ficção
inevitável, o mais natural possível, para que seja, por isso mesmo, o mais
justo possível. Qual é a ficção mais natural? Nenhuma é natural em si, porque é
ficção; a mais natural, neste nosso caso, será aquela que pareça mais
natural, que se sinta como mais natural. Qual é a que parece mais
natural, ou que sintamos mais natural? É aquela a que estamos habituados. (Você
compreende: o que é natural é o que é do instinto; é o que, não sendo instinto,
se parece em tudo como o instinto é o hábito. Fumar não é natural, não é uma
necessidade do instinto; mas se nos habituarmos a fumar, passa a ser-nos
natural, passa a ser sentido como uma necessidade do instinto.) Ora qual é a
nossa ficção social que constitui um hábito nosso? É o actual sistema, o
sistema burguês. Temos pois, em boa lógica, que ou achamos possível a sociedade
natural, e seremos defensores do anarquismo; ou não a julgamos possível, e
seremos defensores do regime burguês. Não há hipótese intermédia. Percebeu?...
— Sim, senhor; isso
é concludente.
— Ainda não é bem
concludente... Ainda há uma outra objecção, do mesmo género, a liquidar... Pode
concordar-se que o sistema anarquista é realizável, mas pode duvidar-se que ele
seja realizável de chofre — isto é, que se possa passar da sociedade
burguesa para a sociedade livre sem haver um ou mais estados ou regimes
intermédios. Quem fizer esta objecção aceita como boa, e como realizável, a
sociedade anarquista mas palpita-lhe que tem que haver um estado qualquer de
transição entre a sociedade burguesa e ela.
«Ora muito bem.
Suponhamos que assim é. O que é esse estado intermédio? O nosso fim é a
sociedade anarquista, ou livre; esse estado intermédio só pode ser, portanto,
um estado de preparação da humanidade para a sociedade livre. Essa preparação
ou é material, ou é simplesmente mental; isto é, ou é uma série de realizações
materiais ou sociais que vão adaptando a humanidade à sociedade livre, ou é
simples propaganda gradualmente crescente e influente, que a vai
preparando mentalmente a desejá-la ou a aceitá-la.
«Vamos ao primeiro
caso, a adaptação gradual e material da humanidade à sociedade livre. É
impossível- é mais que impossível: é absurdo. Não há adaptação material senão a
uma coisa que já há.Nenhum de nós se pode adaptar materialmente ao meio
social do século vinte e três, mesmo que saiba o que ele será; e não se pode
adaptar materialmente porque o século vinte e três e o seu meio social não
existem materialmente ainda. Assim, chegamos à conclusão que, na
passagem da sociedade burguesa para a sociedade livre, a única parte que pode
haver de adaptação, de evolução ou de transição é mental, é a gradual
adaptação dos espíritos à ideia da sociedade livre... Em todo o caso, no campo
da adaptação material, ainda há uma hipótese...
— Irra com tanta
hipótese! . ..
— Ó filho, o homem
lúcido tem que examinar todas as objecções possíveis e de as refutar, antes de
se poder dizer seguro da doutrina. E, de mais a mais, isto tudo é em resposta a
uma pergunta, que você me fez...
— Está bem .
— No campo da
adaptação material, dizia eu, há em todo o caso uma outra hipótese. E a da
ditadura revolucionária.
— Da ditadura
revolucionária como?
— Como eu lhe
expliquei, não pode haver adaptação material a uma coisa que não existe,
materialmente, ainda. Mas se, por um movimento brusco, se fizer a revolução
social, fica implantada já, não a sociedade livre (porque para essa não pode a
humanidade ter ainda preparação), mas uma ditadura daqueles que querem
implantar a sociedade livre. Mas existe já, ainda que em esboço ou em começo,
existe já materialmente qualquer coisa da sociedade livre. Há já
portanto uma coisa material, a que a humanidade se adapte. É este o argumento
com que as bestas que defendem a «ditadura do proletariado» a defenderiam se
fossem capazes de argumentar ou de pensar. O argumento, é claro, não é deles: é
meu. Ponho-o, como objecção, a mim mesmo. E, como lhe vou mostrar..., é falso.
«Um regime
revolucionário, enquanto existe, e seja qual for o fim a que visa ou a ideia
que o conduz, é materialmente só uma coisa — um regime
revolucionário. Ora um regime revolucionário quer dizer uma ditadura de guerra,
ou nas verdadeiras palavras, um regime militar despótico, porque o estado de
guerra é imposto à sociedade por uma parte dela — aquela parte que assumiu
revolucionariamente o poder. O que é que resulta? Resulta que quem se adaptar a
esse regime, como a única coisa que ele ématerialmente, imediatamente, é
um regime militar despótico, adapta-se a um regime militar despótico. A ideia,
que conduziu os revolucionários, o fim, a que visaram, desapareceu por completo
da realidadesocial, que é ocupada exclusivamente pelo fenómeno guerreiro.
De modo que o que sai de uma ditadura revolucionária — e tanto mais
completamente sairá, quanto mais tempo essa ditadura durar — é uma sociedade
guerreira de tipo ditatorial, isto é, um despotismo militar. Nem mesmo podia
ser outra coisa. E foi sempre assim. Eu não sei muita história, mas o que sei
acerta com isto; nem podia deixar de acertar. O que saiu das agitações de Roma?
O império romano e o seu despotismo militar. O que saiu da Revolução Francesa?
Napoleão e o seu despotismo militar. E você verá o que sai da Revolução
Russa... Qualquer coisa que vai atrasar dezenas de anos a realização da
sociedade livre... Também o que era de esperar de um povo de analfabetos e de
místicos?...
«Enfim, isto já
está fora da conversa... Você percebeu o meu argumento?
— Percebi perfeitamente.
— Você compreende
portanto que eu cheguei a esta conclusão: fim: a sociedade anarquista, a
sociedade livre; meio: a passagem, sem transição, da sociedade
burguesa para a sociedade livre. Esta passagem seria preparada e tornada
possível por uma propaganda intensa, completa, absorvente, de modo a predispor
todos os espíritos e enfraquecer todas as resistências. É claro que por
«propaganda» não entendo só a pela palavra escrita e falada: entendo tudo,
acção indirecta ou directa, quanto pode predispor para a sociedade livre e
enfraquecer a resistência à sua vinda. Assim, não tendo quase resistências
nenhumas que vencer, a revolução social, quando viesse, seria rápida, fácil, e
não teria que estabelecer nenhuma ditadura revolucionária, por não ter contra
quem aplicá-la. Se isto não pode ser assim, é que o anarquismo é irrealizável;
e, se o anarquismo é irrealizável, só é defensável e justa, como já lhe provei,
a sociedade burguesa.
«Ora aí tem você
por que e como eu me tomei anarquista, e por que e como rejeitei, como falsas e
antinaturais, as outras doutrinas sociais de menor ousadia.
«E pronto... Vamos
lá a continuar a minha história.
Fez explodir um
fósforo, e acendeu lentamente o charuto. Concentrou-se, e daí a pouco
prosseguiu.
— Havia vários outros
rapazes com as mesmas opiniões que eu. A maioria era de operários, mas havia um
ou outro que o não era; o que todos éramos era pobres, e, que me lembre, não
éramos muito estúpidos. A gente tinha uma certa vontade de se instruir, de
saber coisas, e ao mesmo tempo uma vontade de propaganda, de espalhar as nossas
ideias. Queríamos para nós e para os outros — para a humanidade inteira — uma
sociedade nova, livre destes preconceitos todos, que fazem os homens desiguais
artificialmente e lhes impõem inferioridades, sofrimentos, estreitezas, que a
Natureza lhes não tinha imposto! Por mim, o que eu lia confirmava-me nestas
opiniões. Em livros libertários baratos — os que havia ao tempo, e eram já
bastantes — li quase tudo. Fui a conferências e comícios dos propagandistas do
tempo. Cada livro e cada discurso me convencia mais da certeza e da justiça das
minhas ideias. O que eu pensava então — repito-lhe, meu amigo — é o que penso
hoje; a única diferença é que então pensava-o só, e hoje penso-o e pratico-o.
— Pois sim; isto,
até onde vai, está muito bem. Está muito certo que você se tornasse anarquista
assim, e vejo perfeitamente que você era anarquista. Não preciso mais provas
disso. O que eu quero saber é como é que daí saiu o banqueiro..., como é que
saiu daí sem contradição... Isto é, mais ou menos já calculo...
— Não, não calcula
nada... Eu sei o que você quer dizer... você baseia-se nos argumentos que me
acaba de ouvir, e julga que eu achei o anarquismo irrealizável e por isso, como
lhe disse, só defensável e justa a sociedade burguesa — não é?
— Sim, calculei que
fosse mais ou menos isso...
— Mas como o podia
ser, se desde o princípio da conversa lhe tenho dito e repetido
que souanarquista, que não só o fui mas o continuo sendo? Se eu me tivesse
tomado banqueiro e comerciante pela razão que você julga, eu não era
anarquista, era burguês.
— Sim, você tem
razão... Mas então com os diabos...? Vá lá, vá dizendo...
— Como lhe disse,
eu era, fui sempre mais ou menos lúcido, e também um homem de acção. Essas são
qualidades naturais; não mas puseram no berço (se é que eu tive berço), eu é
que as levei para lá. Pois bem. Sendo anarquista, eu achava insuportável ser
anarquista só passivamente, só para ir ouvir discurso e falar nisso com os
amigos. Não: era preciso fazer qualquer coisa! Era preciso trabalhar e lutar
pela causa dos oprimidos e das vítimas das convenções sociais! Decidi meter
ombros a isso, conforme pudesse. Pus-me a pensar como é que eu poderia ser útil
à causa literária. Pus-me a traçar o meu plano de acção.
«O que quer o
anarquista? A liberdade — a liberdade para si e para os outros, para a
humanidade inteira. Quer estar livre da influência ou da pressão das ficções
sociais; quer ser livre tal qual nasceu e apareceu no mundo, que é como em
justiça deve ser; e quer essa liberdade para si e para todas os mais. Nem todos
podem ser iguais perante a Natureza: uns nascem altos, outros baixos, uns
fortes, outros fracos, uns mais inteligentes, outros menos... Mas todos podem
ser iguais daí em diante; só as ficções sociais o evitam. Essas ficções sociais
é que era preciso destruir.
«Era preciso
destruí-las... Mas não me escapou uma coisa, era preciso destruí-las mas
em proveito da liberdade, e tendo sempre em vista a criação da sociedade
livre. Porque isso de destruir as ficções sociais tanto pode ser para criar
liberdade, ou preparar o caminho da liberdade, como para estabelecer outras
ficções sociais diferentes, igualmente más porque igualmente ficções. Aqui é
que era preciso cuidado. Era preciso acertar com um processo de acção, qualquer
que fosse a sua violência ou a sua não violência (porque contra as injustiças
sociais tudo era legítimo), pelo qual se contribuísse para destruir as ficções
sociais sem, ao mesmo tempo, estorvar a criação da liberdade futura, criando já
mesmo, caso fosse possível, alguma coisa da liberdade futura.
«É claro que esta
liberdade, que deve haver cuidado em não estorvar, é a liberdade
futura e, no presente, a liberdade dos oprimidos pelas ficções
sociais. Claro está que não temos que olhar a não estorvar a «liberdade»
dos poderosos, dos bem-situados, de todos que representam as ficções sociais e
têm vantagem nelas. Essa não é liberdade; é a liberdade de tiranizar, que é o
contrário da liberdade. Essa, pelo contrário, é o que mais devíamos pensar em
estorvar e em combater. Parece-me que isto está claro...
— Está claríssimo.
Continue...
— Para quem quer o
anarquista a liberdade? Para a humanidade inteira. Qual é a maneira de
conseguir a liberdade para a humanidade inteira? Destruir por completo todas as
ficções sociais? Já lhe antecipei a explicação, quando, por causa da sua
pergunta, discuti os outros sistemas avançados e lhe expliquei como e porque
era anarquista... Você lembra-se da minha conclusão?...
— Lembro...
–– ... Uma
revolução social súbita, brusca, esmagadora, fazendo a sociedade passar, de um
salto, do regime burguês para a sociedade livre. Esta revolução social
preparada por um trabalho intenso e contínuo, de acção directa e indirecta,
tendente a dispor todos os espíritos para a vinda da sociedade livre, e a
enfraquecer até ao estado comatoso todas as resistencias da burguesia. Escuso
de lhe repetir as razões que levam inevitavelmente a esta conclusão, adentro do
anarquismo; já lhas expus e você já as percebeu.
— Sim.
— Essa revolução
seria preferivelmente mundial, simultânea em todos os pontos, ou os pontos
importantes do mundo; ou, não sendo assim, partindo rapidamente de uns para
outros, mas, em todo o caso, em cada ponto, isto é, em cada nação, fulminante e
completa.
«Muito bem. O que
poderia eu fazer para esse fim? Só por mim, não a poderia fazer a
ela, à revolução mundial, nem mesmo poderia fazer a revolução completa na parte
referente ao país onde estava. O que eu podia era trabalhar, na inteira medida
do meu esforço, para fazer a preparação para essa revolução. Já lhe expliquei
como: combatendo, por todos os meios acessíveis, as ficções sociais, não
estorvando nunca ao fazer esse combate ou a propaganda da sociedade livre, nem
a liberdade futura, nem a liberdade presente dos oprimidos; criando já, sendo
possível, qualquer coisa da futura liberdade.
Puxou fumo; fez uma
leve pausa; recomeçou.
— Ora aqui, meu
amigo, pus eu a minha lucidez em acção. Trabalhar para o futuro, está bem,
pensei eu; trabalhar para os outros terem liberdade, está certo. Mas então eu?
eu não sou ninguém? Se eu fosse cristão, trabalhava alegremente pelo futuro dos
outros, porque lá tinha a minha recompensa no céu- mas também, se eu fosse
cristão, não era anarquista, porque então as tais desigualdades sociais não
tinham importância na nossa curta vida: eram só condições da nossa provação, e
lá seriam compensadas na vida eterna. Mas eu não era cristão, como não sou, e
perguntava-me: mas por quem é que eu me vou sacrificar nisto tudo? Mais
ainda: porque é que eu me vou sacrificar?
«Vieram-me momentos
de descrença; e você compreende que era justificada... Sou materialista,
pensava eu; não tenho mais vida que esta; para que hei-de ralar-me com
propagandas e desigualdades sociais, e outras histórias, quando posso gozar e
entreter-me muito mais se não me preocupar com isso? Quem tem só esta vida,
quem não crê na vida eterna, quem não admite lei senão a Natureza, quem se opõe
ao Estado porque ele não é natural, ao casamento porque ele não é natural, ao
dinheiro porque ele não é natural, a todas as ficções sociais porque elas não
são naturais, por que carga de água é que defende o altruísmo e o sacrifício
pelos outros, ou pela humanidade, se o altruísmo e o sacrifício também não são
naturais? Sim, a mesma lógica que me mostra que um homem não nasce para
ser casado, ou para ser português, ou para ser rico ou pobre, mostra-me também
que ele não nasce para ser solidário, que ele não nasce senão para
ser ele próprio, e portanto o contrário de altruísta e solidário, e portanto
exclusivamente egoísta.
«Eu discuti a
situação comigo mesmo. Repara tu, dizia eu para mim, que nascemos pertencentes
à espécie humana, e que temos o dever de ser solidários com todos os homens.
Mas a ideia de «dever» era natural? De onde é que vinha esta ideia de «dever?
Se esta ideia de dever me obrigava a sacrificar o meu bem-estar, a minha
comodidade, o meu instinto de conservação e outros meus instintos naturais, em
que divergia a acção dessa ideia da acção de qualquer ficção social, que produz
em nós exactamente o mesmo efeito?
«Esta ideia de
dever, isto de solidariedade humana, só podia considerar-se natural se
trouxesse consigo uma compensação egoísta, porque então, embora em
princípio contrariasse o egoísmo natural, se dava a esse egoísmo uma compensação,
sempre, no fim de contas, o não contrariava. Sacrificar um prazer, simplesmente
sacrificá-lo, não é natural; sacrificar um prazer a outro, é que já está dentro
da Natureza: é, entre duas coisas naturais que se não podem ter ambas, escolher
uma, o que está bem. Ora que compensação egoísta, ou natural, podia dar-me a
dedicação à causa da sociedade livre e da futura felicidade humana? Só a
consciência do dever cumprido, do esforço para um fim bom; e nenhuma destas
coisas é um prazer em si, mas um prazer, se o é, nascido de uma ficção, como
pode ser o prazer de ter nascido em uma boa posição social.
«Confesso-lhe, meu
velho, que me vieram momentos de descrença... Senti-me desleal à minha
doutrina, traidor a ela... Mas em breve passei sobre tudo isto. A ideia de
justiça cá estava, dentro de mim, pensei eu. Eu sentia-a natural. Eu sentia que
havia um dever superior à preocupação só cá do meu destino. E fui para diante
na minha intenção.
— Não me parece que
essa decisão revelasse uma grande lucidez da sua parte... Você não resolveu a
dificuldade... Você foi para diante por um impulso absolutamente sentimental...
— Sem dúvida. Mas o
que lhe estou contando agora é a história de como eu me tornei anarquista, e de
como o continuei sendo, e continuo. Vou-lhe expondo lealmente as hesitações e
as dificuldades que tive, e como as venci. Concordo que, naquele momento, venci
a dificuldade lógica com o sentimento, e não com o raciocínio. Mas você há-de
ver que, mais tarde, quando cheguei à plena compreensão da doutrina anarquista,
esta dificuldade, até então logicamente sem resposta, teve a sua solução
completa e absoluta.
— É curioso...
— É... Agora
deixe-me continuar na minha história. Tive esta dificuldade, e resolvi-a, se
bem que mal, como lhe disse. Logo a seguir, e na linha dos meus pensamentos,
surgiu-me outra dificuldade que também me atrapalhou bastante.
«Está bem — vamos
lá — que estivesse disposto a sacrificar-me, sem recompensa nenhuma
propriamente pessoal, isto é, sem recompensa nenhuma
verdadeiramente natural. Mas suponhamos que a sociedade futura não
dava em nada do que eu esperava, que nunca havia a sociedade livre, a que diabo
é que eu, nesse caso, me estava sacrificando? Sacrificar-me a uma ideia sem
recompensa pessoal, sem eu ganhar nada com o meu esforço por essa ideia, vá;
mas sacrificar-me sem ao menos ter a certeza de que aquilo, para que eu
trabalhava, existiria um dia, sem que a própria ideia ganhasse com o meu
esforço — isso era um pouco mais forte... Desde já lhe digo que resolvi a
dificuldade pelo mesmo processo sentimental por que resolvi a outra; mas
advirto-o também que, no mesmo modo que a outra, resolvi esta pela lógica,
automaticamente, quando cheguei ao estado plenamente consciente do meu
anarquismo... Você depois verá... Na altura do que lhe estou contando, saí-me
do apuro com uma ou duas frases ocas. «Eu fazia o meu dever para com o futuro;
o futuro que fizesse o seu para comigo»... Isto, ou coisa que o valha...
«Expus esta
conclusão, ou, antes, estas conclusões, aos camaradas, e eles concordaram todos
comigo; concordaram todos que era preciso ir prà frente e fazer tudo pela
sociedade livre. É verdade que um ou outro, dos mais inteligentes, ficaram um
pouco abalados com a exposição, não porque concordassem, mas porque nunca
tinham visto as coisas assim claras, nem os bicos que estas coisas têm... Mas
enfim, concordaram todos... Iríamos todos trabalhar pela grande revolução
social, pela sociedade livre, quer o futuro nos justificasse, quer não!
Formámos um grupo, entre gente certa, e começámos uma grande propaganda —
grande, é claro, dentro dos limites do que podíamos fazer. Durante
bastante tempo, no meio de dificuldades, embrulhadas, e por vezes perseguições,
lá fomos trabalhando pelo ideal anarquista.
O banqueiro,
chegado aqui, fez uma pausa um pouco longa. Não acendeu o charuto, que estava
outra vez apagado. De repente teve um leve sorriso, e, com o ar de quem chega
ao ponto importante, fitou-me com mais insistência e prosseguiu, clarificando
mais a voz e acentuando mais as palavras.
— Nesta altura,
disse ele, apareceu uma coisa nova. «Nesta altura» é modo de dizer. Quero dizer
que, depois de alguns meses desta propaganda, comecei a reparar numa nova
complicação, e esta é que era a mais séria de todas, esta é que era séria a
valer…
«V. recorda-se, não
é verdade? daquilo em que eu, por um raciocínio rigoroso, assentei que devia
ser o processo de acção dos anarquistas… Um processo, ou processos, quaisquer
pelo qual se contribuísse para destruir as ficções sociais sem, ao mesmo tempo,
estorvar a criação da liberdade futura, sem, portanto, estorvar em coisa
nenhuma a pouca liberdade dos actuais oprimidos pelas ficções sociais; um
processo que, sendo possível, criasse já alguma coisa da liberdade futura…
«Pois bem: uma vez
assente este critério, nunca mais deixei de o ter presente… Ora, na altura da
nossa propaganda em que lhe estou falando, descobri uma coisa. No grupo da
propaganda — não éramos muitos; éramos uns quarenta, salvo erro — dava-se este
caso: criava-se tirania.
— Criava-se
tirania?… Criava-se tirania como?
— Da seguinte
maneira… Uns mandavam em outros e levavam-nos para onde queriam; uns
impunham-se a outros e obrigavam-nos a ser o que eles queriam; uns arrastavam
outros por manhas e
por artes para onde eles queriam. Não digo que fizessem isto em coisas graves;
mesmo, não havia coisas graves ali em que o fizessem. Mas o facto é que isto
acontecia sempre e todos os dias, e dava-se não só em assuntos relacionados com
a propaganda, como fora deles, em assuntos vulgares da vida. Uns iam insensivelmente
para chefes, outros insensivelmente para subordinados. Uns eram chefes por
imposição; outros eram chefes por manha. No facto mais simples isto se via. Por
exemplo: dois dos rapazes iam juntos por uma rua fora; chegavam ao fim da rua,
e um tinha que ir para a direita e outro para a esquerda; cada um tinha
conveniência em ir para seu lado. Mas o que ia para a esquerda dizia para o
outro, «venha v. comigo por aqui»; o outro respondia, e era verdade, «Homem,
não posso; tenho que ir por ali» por esta ou aquela razão… Mas afinal, contra
sua vontade e sua conveniência, lá ia com o outro para a esquerda… Isto era uma
vez por persuasão, outra vez por simples insistência, uma terceira vez por um
outro motivo qualquer assim… Isto é, nunca era por uma razão lógica; havia
sempre nesta imposição e nesta subordinação qualquer coisa de espontâneo, de
como que instintivo… E como neste caso simples, em todos os outros casos; desde
os menos até aos mais importantes… V. vê bem o caso?
— Vejo. Mas que
diabo há de estranho nisso? Isso é
tudo quanto há de
mais natural!…
— Será. Já vamos a
isso. O que lhe peço que note é que é exactamente o contrário da doutrina
anarquista. Repare bem que isto se passava num grupo pequeno, num grupo sem
influência nem importância, num grupo a quem não estava confiada a solução de
nenhuma questão grave ou a decisão sobre qualquer assunto de vulto. E repare
que se
passava num grupo
de gente que se unira especialmente para fazer o que pudesse para o fim
anarquista — isto é, para combater, tanto quanto possível, as ficções sociais,
e criar, tanto quanto possível, a liberdade futura. V. Reparou bem nestes dois
pontos?
— Reparei.
— Veja agora bem o
que isso representa… Um grupo pequeno, de gente sincera (garanto-lhe que era
sincera!), estabelecido e unido expressamente para trabalhar pela causa da
liberdade, tinha, no fim de uns meses, conseguido só uma coisa de positivo e
concreto — a criação entre si de tirania. E repare que tirania… Não era
uma tirania derivada da acção das ficções sociais, que, embora lamentável,
seria desculpável, até certo ponto, ainda que menos em nós, que combatíamos
essas ficções, que em outras pessoas; mas enfim, vivíamos em meio de uma
sociedade baseada nessas ficções e não era inteiramente culpa nossa se não
pudéssemos de todo fugir à sua acção. Mas não era isso. Os que mandavam nos
outros, ou os levavam para onde queriam, não faziam isso pela força do
dinheiro, ou da posição social, ou de qualquer autoridade de natureza fictícia,
que se arrogassem; faziam-no por uma acção de qualquer espécie fora das ficções
sociais. Quer dizer, esta tirania era, relativamente às ficções
sociais, uma tirania nova. E era uma tirania exercida sobre gente
essencialmente oprimida já pelas ficções sociais. Era, ainda por cima, tirania
exercida entre si por gente cujo intuito sincero não era senão destruir tirania
e criar liberdade.
«Agora ponha o caso
num grupo muito maior, muito mais influente, tratando já de questões
importantes e de decisões de carácter fundamental. Ponha esse grupo a encaminhar
os seus esforços, como o nosso, para a formação de uma sociedade livre. E agora
diga-me se através desse carregamento de tiranias entrecruzadas v. entrevê
qualquer sociedade futura que se pareça com uma sociedade livre ou com uma
humanidade digna de si própria…
— Sim: isso é muito
curioso…
— É curioso, não
é?… E olhe que há pontos secundários também muito curiosos… Por exemplo: a
tirania do auxílio…
— A quê?
— A tirania do
auxílio. Havia entre nós quem, em vez de mandar nos outros, em vez de se impor
aos outros, pelo contrário os auxiliava em tudo quanto podia. Parece o
contrário, não é verdade? Pois olhe que é o mesmo. É a mesma tirania nova. É do
mesmo modo ir contra os princípios anarquistas.
— Essa é boa! Em
quê?
— Auxiliar alguém,
meu amigo, é tomar alguém por incapaz; se esse alguém não é incapaz, é ou
fazê-lo tal, ou supô-lo tal, e isto é, no primeiro caso uma tirania, e no
segundo um desprezo. Num caso cerceia-se a liberdade de outrem; no outro caso
parte-se, pelo menos inconscientemente, do princípio de que outrem é
desprezível e indigno
ou incapaz de
liberdade.
«Voltemos ao nosso
caso… V. vê bem que este ponto era gravíssimo. Vá que trabalhássemos pela
sociedade futura sem esperarmos que ela nos agradecesse, ou arriscando-nos,
mesmo, a que ela nunca viesse. Tudo isso, vá. Mas o que era de mais era
estarmos trabalhando para um futuro de liberdade e não fazermos, de positivo,
mais que criar tirania, e não só tirania, mas tirania nova, e tirania exercida
por nós, os oprimidos, uns sobre os outros. Ora isto é que não podia ser…
«Pus-me a pensar.
Aqui havia um erro, um desvio qualquer. Os nossos intuitos eram bons; as nossas
doutrinas pareciam certas; seriam errados os nossos processos? Com certeza que
deveriam ser. Mas onde diabo estava o erro? Pus-me a pensar nisso e ia dando em
doido. Um dia, de repente, como acontece sempre nestas coisas, dei com a
solução. Foi o grande dia das minhas teorias anarquistas; o dia em que
descobri, por assim dizer, a técnica do anarquismo.
Olhou-me um momento
sem me olhar. Depois continuou, no mesmo tom.
— Pensei assim…
Temos aqui uma tirania nova, uma tirania que não é derivada das ficções
sociais. Então de onde é ela derivada? Será derivada das qualidades naturais?
Se é, adeus sociedade livre! Se uma sociedade onde estão em operação apenas as
qualidades naturais dos homens — aquelas qualidades com que eles nascem, que
devem só à Natureza, e sobre as quais não temos poder nenhum —, se uma
sociedade onde estão em operação apenas essas qualidades é um amontoado de tiranias,
quem é que vai mexer o dedo mínimo para contribuir para a vinda dessa
sociedade? Tirania por tirania, fique a que está, que ao menos é aquela a que
estamos habituados, e que por isso fatalmente sentimos menos que sentiríamos
uma tirania nova, e com o carácter terrível de todas as coisas tirânicas que
são directamente da Natureza — o não haver revolta possível contra ela, como
não há revolução contra ter que morrer, ou contra nascer baixo quando se
preferia ter nascido alto. Mesmo, eu já lhe provei que, se por qualquer razão
não é realizável a sociedade anarquista, então deve existir, por ser mais
natural que qualquer outra salvo aquela, a sociedade burguesa.
«Mas seria esta
tirania, que nascia assim entre nós, realmente derivada das qualidades
naturais? Ora o que são as qualidades naturais? São o grau de inteligência, de
imaginação, de vontade, etc., com que cada um nasce — isto no campo mental, é
claro, porque as qualidades naturais físicas não vêm para o caso. Ora um tipo
que, sem ser por uma razão derivada das ficções sociais, manda noutro, por
força que o faz por lhe ser superior em uma ou outra das qualidades naturais.
Domina-o pelo emprego das suas qualidades naturais. Mas há uma coisa a ver:
esse emprego das qualidades naturais será legítimo, isto é,
será natural ?
«Ora qual é o
emprego natural das nossas qualidades naturais? O servir os fins naturais da
nossa personalidade. Ora dominar alguém será um fim natural da nossa
personalidade? Pode sê-lo; há um caso em que pode sê-lo: é quando esse alguém está
para nós num lugar de inimigo. Para o anarquista, é claro, quem está no lugar
de inimigo, é qualquer representante das ficções sociais e da sua tirania; mais
ninguém, porque todos os outros homens são homens como ele e camaradas
naturais. Ora, v. bem vê, o caso da tirania que tínhamos estado criando entre
nós não era este; a tirania, que tínhamos estado criando, era exercida sobre
homens como nós, camaradas naturais, e, mais ainda, sobre homens duas vezes
nossos camaradas, porque o eram também pela comunhão no mesmo ideal. Conclusão:
esta nossa tirania, se não era derivada das ficções sociais, também não era
derivada das qualidades naturais; era derivada duma aplicação errada, duma
perversão, das qualidades naturais. E essa perversão, de onde é que provinha?
«Tinha que provir
de uma de duas coisas: ou de o homem ser naturalmente mau, e portanto todas as
qualidades naturais serem naturalmente pervertidas; ou de uma perversão
resultante da longa permanência da humanidade numa atmosfera de ficções
sociais, todas elas criadoras de tirania, e tendente, portanto, a tornar já
instintivamente tirânico o uso mais natural das qualidades mais naturais. Ora,
destas duas hipóteses, qual é que seria a verdadeira? De um modo satisfatório —
isto é, rigorosamente lógico ou científico — era impossível determinar. O
raciocínio não pode entrar com o problema, porque ele é de ordem histórica, ou
científica, e depende do conhecimento de factos. Por seu lado, a ciência
também nos não ajuda, porque, por mais longe que recuemos na história,
encontramos sempre o homem vivendo sob um ou outro sistema de tirania social, e
portanto sempre num estado que nos não permite averiguar como é o homem quando
vive em circunstâncias pura e inteiramente naturais. Não havendo maneira de
determinar ao certo, temos que pender para o lado da maior probabilidade; e a
maior probabilidade está na segunda hipótese. É mais natural supor que a
longuíssima permanência da humanidade em ficções sociais criadoras de tirania
faça cada homem nascer já com as suas qualidades naturais pervertidas no
sentido de tiranizar espontaneamente, mesmo em quem não pretenda tiranizar, do
que supor que qualidades naturais podem ser naturalmente pervertidas, o que, de
certo modo, representa uma contradição. Por isso o pensador decide-se, como eu
me decidi, com uma quase absoluta segurança, pela segunda hipótese.
«Temos, pois, que
uma coisa é evidente… No estado social presente não é possível um grupo de
homens, por bem intencionados que estejam todos, por preocupados que estejam todos
só em combater as ficções sociais e em trabalhar pela liberdade, trabalharem
juntos sem que espontaneamente criem entre si tirania, sem criar entre si uma
tirania nova, suplementar à das ficções sociais, sem destruir na prática tudo
quanto querem na teoria, sem involuntariamente estorvar o mais possível o
próprio intuito que querem promover. O que há a fazer? É muito simples… É
trabalharmos todos para o mesmo fim, mas separados.
— Separados?!
— Sim. V. não
seguiu o meu argumento?
— Segui.
— E não acha lógica,
não acha fatal esta conclusão?
— Acho, sim, acho…
O que não vejo bem é como isso…
— Já vou
esclarecer… Disse eu: trabalharmos todos para o mesmo fim, mas separados.
Trabalhando todos para o mesmo fim anarquista, cada um contribui com o seu
esforço para a destruição das ficções sociais, que é para onde o dirige, e para
a criação da sociedade livre do futuro; e trabalhando separados não
podemos, de modo nenhum, criar tirania nova, porque nenhum tem acção sobre
outro, e não pode portanto, nem, dominando-o, diminuir-lhe a liberdade, nem,
auxiliando-o, apagar-lha.
«Trabalhando assim
separados e para o mesmo fim anarquista, temos as duas vantagens — a do esforço
conjunto, e a da não-criação de tirania nova. Continuamos unidos, porque o
estamos moralmente e trabalhamos do mesmo modo para o mesmo fim; continuamos
anarquistas, porque cada um trabalha para a sociedade livre; mas deixamos de
ser traidores, voluntários ou involuntários, à nossa causa, deixamos mesmo de
poder sê-lo, porque nos colocamos, pelo trabalho anarquista isolado, fora da
influência deletéria das ficções sociais, no seu reflexo hereditário sobre as
qualidades que a Natureza deu.
«É claro que toda
esta táctica se aplica ao que eu chamei o período de preparação para
a revolução social. Arruinadas as defesas burguesas, e reduzida a sociedade
inteira ao estado de aceitação das doutrinas anarquistas, faltando só fazer a
revolução social, então, para o golpe final, é que não pode continuar a acção
separada. Mas, nessa altura, já a sociedade livre estará virtualmente chegada;
já as coisas serão de outra maneira. A táctica a que me refiro só diz respeito
à acção anarquista em meio da sociedade burguesa, como agora, como no grupo a
que eu pertencia.
«Era esse — até que
enfim! — o verdadeiro processo anarquista. Juntos, nada valíamos, que
importasse, e, ainda por cima, nos tiranizávamos, e nos estorvávamos uns aos
outros e às nossas teorias. Separados, pouco também conseguiríamos, mas ao
menos não estorvávamos a liberdade, não criávamos tirania nova; o que
conseguíamos, pouco que fosse, era realmente conseguido, sem desvantagem nem
perda. E, de mais a mais, trabalhando assim separados, aprendíamos a confiar
mais em nós-mesmos, a não nos encostarmos uns aos outros, a tornarmo-nos mais
livres já, a prepararmo-nos, tanto pessoalmente, como aos outros pelo nosso
exemplo, para o futuro.
«Fiquei radiante
com esta descoberta. Fui logo expô-la aos meus camaradas… Foi uma das poucas
vezes em que fui estúpido na minha vida. Imagine v. que eu estava tão cheio da
minha descoberta que esperava que eles concordassem!…
— Não concordaram,
é claro…
— Repontaram, meu
amigo, repontaram todos! Uns mais, outros menos, tudo protestou!… Não era
isso!… Isso não podia ser!… Mas ninguém dizia o que era ou o que é que havia de
ser. Argumentei e argumentei, e, em resposta aos meus argumentos, não obtive
senão frases, lixo, coisas como essas que os ministros respondem nas câmaras
quando não têm resposta nenhuma… Então é que eu vi com que bestas e com que
cobardões estava metido! Desmascararam-se. Aquela corja tinha nascido para
escravos. Queriam ser anarquistas à custa alheia. Queriam a liberdade, logo que
fossem os outros que lha arranjassem, logo que lhes fosse dada como um rei dá
um título! Quase todos eles são assim, os grandes lacaios!
— E v., escamou-se?
— Se me escamei!
Enfureci-me! Pus-me aos coices. Dei por paus e por pedras. Quase que me peguei
com dois ou três deles. E acabei por me vir embora. Isolei-me. Veio-me um nojo
àquela carneirada toda, que v. não imagina! Quase que descri do anarquismo.
Quase que decidi não me importar mais com tudo aquilo. Mas, passados uns dias,
voltei a mim. Pensei que o ideal anarquista estava acima destas quesílias. Eles
não queriam ser anarquistas? Sê-lo-ia eu. Eles queriam só brincar aos libertários?
Não estava eu para brincar num caso desses. Eles não tinham força para combater
senão encostados uns aos outros, e criando, entre si, um simulacro novo da
tirania que diziam querer combater? Pois que o fizessem, os parvos, se não
serviam para mais. Eu é que não ia ser burguês por tão pouco.
«Estava
estabelecido que, no verdadeiro anarquismo, cada um tem que, por suas próprias
forças, criar liberdade e combater as ficções sociais. Pois por minhas próprias
forças eu ia criar liberdade e combater as ficções sociais. Ninguém queria
seguir-me no verdadeiro caminho anarquista? Seguiria eupor ele. Iria eu
só, com os meus recursos, com a minha fé, desacompanhado até do apoio mental
dos que tinham sido meus camaradas, contra as ficções sociais inteiras. Não
digo que fosse um belo gesto, nem um gesto heróico. Foi simplesmente um gesto
natural. Se o caminho tinha que ser seguido por cada um separadamente, eu não
precisava de mais ninguém para o seguir. Bastava o meu ideal. Foi baseado
nestes princípios e nestas circunstâncias que decidi, por mim só, combater as
ficções sociais.
Suspendeu um pouco
o discurso, que se lhe tornara quente e fluido. Retomou-o de ali a pouco, com a
voz já mais sossegada.
— É um estado de
guerra, pensei eu, entre mim e as ficções sociais. Muito bem. O que posso eu
fazer contra as ficções sociais? Trabalho sozinho, para não poder, de modo
nenhum, criar qualquer tirania. Como posso eu colaborar sozinho na preparação
da revolução social, na preparação da humanidade para a sociedade livre? Tenho
que escolher um de dois processos, dos dois processos que há; caso, é claro,
não possa servir-me de ambos. Os dois processos são a acção indirecta, isto é,
a propaganda, e a acção directa, de qualquer espécie.
«Pensei primeiro
na acção indirecta, isto é, na propaganda. Que propaganda poderia eu
fazer só por mim? À parte esta propaganda que sempre se vai fazendo em
conversa, com este ou aquele, ao acaso e servindo-nos de todas as
oportunidades, o que eu queria saber era se a acção indirecta era um caminho
por onde eu pudesse encaminhar a minha actividade de anarquista energicamente,
isto é, de modo a produzir resultados sensíveis. Vi logo que não podia ser. Não
sou orador e não sou escritor. Quero dizer: sou capaz de falar em público, se
for preciso, e sou capaz de escrever um artigo de jornal; mas o que eu queria
averiguar era se o meu feitio natural indicava que, especializando-me na acção
indirecta, de qualquer das duas espécies ou em ambas, eu poderia obter
resultados mais positivos para a ideia anarquista que especializando
os meus esforços em qualquer outro sentido. Ora a acção é sempre mais
proveitosa que a propaganda, excepto para os indivíduos cujo feitio os indica
essencialmente como propagandistas — os grandes oradores, capazes de electrizar
multidões e arrastá-las atrás de si, ou os grandes escritores, capazes de
fascinar e convencer com os seus livros. Não me parece que eu seja muito
vaidoso, mas, se o sou, não me dá, pelo menos, para me envaidecer daquelas
qualidades que não tenho. E, como lhe disse, nunca me deu pra me julgar orador
ou escritor. Por isso abandonei a ideia da acção indirecta como caminho a dar à
minha actividade de anarquista. Por exclusão de partes, era forçado a escolher
a acção directa, isto é, o esforço aplicado à prática da vida, à vida real. Não
era a inteligência, mas a acção. Muito bem. Assim seria.
«Tinha eu pois que
aplicar à vida prática o processo fundamental de acção anarquista que eu já
tinha esclarecido — combater as ficções sociais sem criar tirania nova, criando
já, caso fosse possível, qualquer coisa da liberdade futura. Ora como diabo se
faz isso na prática?
«Ora o que é
combater na prática? Combater na prática é a guerra, é uma guerra,
pelo menos. Como é que se faz guerra às ficções sociais? Antes de mais nada, como
é que se faz guerra? Como é que se vence o inimigo em qualquer guerra? De uma
de duas maneiras: ou matando-o, isto é, destruindo-o; ou aprisionando-o, isto
é, subjugando-o, reduzindo-o à inactividade. Destruir as ficções
sociais não podia eu fazer; destruir as ficções sociais só o podia
fazer a revolução social. Até ali, as ficções sociais podiam estar abaladas,
cambaleando, por um fio; mas destruídas, só o estariam com a vinda da
sociedade livre e a queda positiva da sociedade burguesa. O mais que eu poderia
fazer nesse sentido era destruir — destruir no sentido físico de matar — um ou
outro membro das classes representativas da sociedade burguesa. Estudei o caso,
e vi que era asneira. Suponha v. que eu matava um ou dois, ou uma dúzia de
representantes da tirania das ficções sociais… O resultado? As ficções sociais
ficavam mais abaladas? Não ficavam. As ficções sociais não são como uma
situação política que pode depender de um pequeno número de homens, de um só
homem por vezes. O que há de mau nas ficções sociais são elas, no seu conjunto,
e não os indivíduos que as representam senão por serem representantes delas.
Depois, um atentado de ordem social produz sempre uma reacção; não só tudo fica
na mesma, mas, as mais das vezes, piora. E, ainda por cima, suponha, como é
natural, que, depois de um atentado, eu era caçado; era caçado e liquidado, de
uma maneira ou outra. E suponha que eu tinha dado cabo de uma dúzia de
capitalistas. Em que vinha isso tudo dar, em resumo? Com a minha liquidação,
ainda que não por morte, mas por simples prisão ou degredo, a causa anarquista
perdia um elemento de combate; e os doze capitalistas, que eu teria estendido,
não eram doze elementos que a sociedade burguesa tinha perdido, porque os
elementos componentes da sociedade burguesa não são elementos de combate, mas
elementos puramente passivos, pois que o «combate» está, não nos membros da
sociedade burguesa, mas no conjunto de ficções sociais, em que essa sociedade
assenta. Ora as ficções sociais não são gente, em quem se possa dar tiros… V.
compreende bem? Não era como o soldado de um exército que mata doze soldados de
um exército contrário; era como um soldado que mata doze civis da nação do
outro exército. É matar estupidamente, porque não se elimina combatente nenhum…
Eu não podia portanto pensar em destruir, nem no todo nem em nenhuma
parte, as ficções sociais. Tinha então que subjugá-las, que vencê-las
subjugando-as, reduzindo-as à inactividade.
Apontou para mim o
indicador direito súbito.
— Foi o que eu fiz!
Retirou logo o
gesto, e continuou.
— Procurei ver qual
era a primeira, a mais importante, das ficções sociais. Seria a essa que me
cumpria, mais que a nenhuma outra, tentar subjugar, tentar reduzir à
inactividade. A mais importante, da nossa época pelo menos, é o dinheiro. Como
subjugar o dinheiro, ou, em palavras mais precisas, a força, ou a tirania do
dinheiro? Tornando-me livre da sua influência, da sua força, superior portanto
à sua influência, reduzindo-o à inactividade pelo que me dizia respeito a mim.
Pelo que me dizia respeito a mim, compreende v.?, porque eu é
que o combatia; se fosse reduzi-lo à inactividade pelo que respeita a toda a
gente, isso não seria já subjugá-lo, mas destruí-lo, porque seria acabar
de todo com a ficção dinheiro. Ora eu já lhe provei que qualquer ficção social
só pode ser «destruída» pela revolução social, arrastada com as outras na queda
da sociedade burguesa.
«Como podia eu
tornar-me superior à força do dinheiro? O processo mais simples era afastar-me
da esfera da sua influência, isto é, da civilização; ir para um campo comer
raízes e beber água das nascentes; andar nu e viver como um animal. Mas isto,
mesmo que não houvesse dificuldade em fazê-lo, não era combater uma ficção
social; não era mesmo combater: era fugir. Realmente, quem se esquiva a travar
um combate não é derrotado nele. Mas moralmente é derrotado, porque não se
bateu. O processo tinha que ser outro — um processo de combate e não de fuga.
Como subjugar o dinheiro, combatendo-o? Como furtar-me à sua influência e
tirania, não evitando o seu encontro? O processo era só um — adquiri-lo,
adquiri-lo em quantidade bastante para lhe não sentir a influência; e em quanto
mais quantidade o adquirisse, tanto mais livre eu estaria dessa influência. Foi
quando vi isto claramente, com toda a força da minha convicção de anarquista, e
toda a minha lógica de homem lúcido, que entrei na fase actual — a comercial e
bancária, meu amigo — do meu anarquismo.
Descansou um
momento da violência, novamente crescente, do seu entusiasmo pela sua exposição.
Depois continuou, ainda com um certo calor, a sua narrativa.
— Ora v. lembra-se
daquelas duas dificuldades lógicas que eu lhe disse que me haviam surgido no
princípio da minha carreira de anarquista consciente?… E v. lembra-se de eu lhe
dizer que naquela altura as resolvi artificialmente, pelo sentimento e não pela
lógica? Isto é, v. mesmo notou, e muito bem, que eu não as tinha resolvido pela
lógica…
— Lembro-me, sim…
— E v. lembra-se de
eu lhe dizer que mais tarde, quando acertei por fim com o verdadeiro processo
anarquista, as resolvi então de vez, isto é, pela lógica?
— Sim.
— Ora veja como
ficaram resolvidas… As dificuldades eram estas: não
é natural trabalhar por qualquer coisa, seja o que for, sem uma
compensação natural, isto é, egoísta; e não é natural dar o
nosso esforço a qualquer fim sem ter a compensação de saber que esse fim
se atinge. As duas dificuldades eram estas; ora repare como ficam resolvidas
pelo processo de trabalho anarquista que o meu raciocínio me levou a descobrir
como sendo o único verdadeiro… O processo dá em resultado eu
enriquecer; portanto, compensação egoísta. O processo visa ao
conseguimento da liberdade; ora eu, tornando-me superior à força do dinheiro,
isto é, libertando- me dela, consigo liberdade. Consigo liberdade só para
mim, é certo; mas é que como já lhe provei, a liberdade para todos só pode vir
com a destruição das ficções sociais, pela revolução social, e eu, só por mim,
não posso fazer a revolução social. O ponto concreto é este: viso liberdade,
consigo liberdade: consigo a liberdade que posso, porque, é claro, não posso
conseguir a que não posso… E veja v.: à parte o raciocínio que determina este
processo anarquista como o único verdadeiro, o facto que ele resolve
automaticamente as dificuldades lógicas, que se podem opor a qualquer processo
anarquista, mais prova que ele é o verdadeiro.
«Pois foi este o
processo que eu segui. Meti ombros à empresa de subjugar a ficção dinheiro,
enriquecendo. Consegui. Levou um certo tempo, porque a luta foi grande, mas
consegui. Escuso de lhe contar o que foi e o que tem sido a minha vida
comercial e bancária. Podia ser interessante, em certos pontos sobretudo, mas
já não pertence ao assunto. Trabalhei, lutei, ganhei dinheiro; trabalhei mais,
lutei mais, ganhei mais dinheiro; ganhei muito dinheiro por fim. Não olhei a
processos — confesso-lhe, meu amigo, que não olhei a processos; empreguei tudo
quanto há — o açambarcamento, o sofisma financeiro, a própria concorrência
desleal. O quê?! Eu combatia as ficções sociais, imorais e antinaturais por
excelência, e havia de olhar a processos?! Eu trabalhava pela liberdade, e
havia de olhar às armas com que combatia a tirania?! O anarquista estúpido, que
atira bombas e dá tiros, bem sabe que mata, e bem sabe
que as suas
doutrinas não incluem a pena de morte. Ataca uma imoralidade com um crime,
porque acha que essa imoralidade vale um crime para se destruir. Ele é estúpido
quanto ao processo, porque, como já lhe mostrei, esse processo é errado e
contraproducente como processo anarquista; agora quanto
à moral do processo ele é inteligente. Ora o meu processo estava
certo, e eu servia-me legitimamente, como anarquista, de todos os meios para
enriquecer. Hoje realizei o meu limitado sonho de anarquista prático e lúcido.
Sou livre. Faço o que quero, dentro, é claro, do que é possível fazer. O meu
lema de anarquista era a liberdade; pois bem, tenho a liberdade, a liberdade
que, por enquanto, na nossa sociedade imperfeita, é possível ter. Quis combater
as forças sociais; combati-as, e, o que é mais, venci-as.
— Alto lá! alto lá!
disse eu. Isso estará tudo muito bem, mas há uma coisa que v. não viu. As
condições do seu processo eram, como v. provou, não só criar liberdade, mas
também não criar tirania. Ora v. criou tirania. V. como açambarcador, como
banqueiro, como financeiro sem escrúpulos — v. desculpe, mas v. é que o disse,
— v. criou
tirania. V. criou
tanta tirania como qualquer outro representante das ficções sociais, que v. diz
que combate.
— Não, meu velho,
v. engana-se. Eu não criei tirania. A tirania, que pode ter resultado da minha
acção de combate contra as ficções sociais, é uma tirania que não parte de mim,
que portanto eu não criei;está nas ficções sociais, eu não a juntei a elas.
Essa tirania é a própria tirania das ficções sociais; e eu não podia, nem
me propus, destruir as ficções sociais. Pela centésima vez lhe
repito: só a revolução social pode destruir as ficções sociais; antes
disso, a acção anarquista perfeita, como a minha, só pode subjugaras
ficções sociais, subjugá-las em relação só ao anarquista que põe esse processo
em prática, porque esse processo não permite uma mais larga sujeição dessas
ficções. Não é de não criar tirania que se trata: é de não criar tirania
nova, tirania onde não estava. Os anarquistas, trabalhando em conjunto,
influenciando-se uns aos outros como eu lhe disse, criam entre si, fora e
à parte das ficções sociais, uma tirania; essa é que é uma tirania
nova. Essa, eu não a criei. Não a podia mesmo criar, pelas próprias
condições do meu processo. Não, meu amigo; eu só criei liberdade.
Libertei um. Libertei-me a mim. É que o meu processo, que é, como lhe
provei, o único verdadeiro processo anarquista, me não permitiu libertar mais.
O que pude libertar, libertei.
— Está bem…
Concordo… Mas olhe que, por esse argumento, a gente quase que é levada a crer
que nenhum representante das ficções sociais exerce tirania…
— E não exerce. A
tirania é das ficções sociais e não dos homens que as incarnam; esses são, por
assim dizer, os meios de que as ficções se servem para tiranizar,
como a faca é o meio de que se pode servir o assassino. E v. decerto não julga
que abolindo as facas abole os assassinos… Olhe… Destrua v.todos os
capitalistas do mundo, mas sem destruir o capital… No dia seguinte o
capital, já nas mãos de outros, continuará, por meio desses, a sua
tirania. Destrua, não os capitalistas, mas o capital; quantos capitalistas
ficam?… Vê?…
— Sim; v. tem
razão.
— Ó filho, o
máximo, o máximo, o máximo que v. me pode acusar de fazer é de aumentar um
pouco, — muito, muito pouco — a tirania das ficções sociais. O argumento é
absurdo, porque como já lhe disse, a tirania que eu não devia criar, e não
criei, é outra. Mas tem mais um ponto fraco: é que, pelo mesmo raciocínio, v.
pode acusar um general, que trava combate pelo seu país, de causar ao seu país
o prejuízo do número de homens do seu próprio exército que teve de
sacrificar para vencer. Quem vai à guerra, dá e leva. Consiga-se o principal; o
resto…
— Está muito bem…
Mas olhe lá outra coisa… O verdadeiro anarquista quer a liberdade não só para
si, mas também para os outros… Parece-me que quer a liberdade para a humanidade
inteira…
— Sem dúvida. Mas
eu já lhe disse que, pelo processo que descobri que era o único processo
anarquista, cada um tem de libertar-se a si-próprio. Eu libertei-me a mim; fiz
o meu dever simultaneamente para comigo e para com a liberdade. Porque é que os
outros, os meus camaradas, não fizeram o mesmo? Eu não os impedi. Esse é que
teria sido o crime, se eu os tivesse impedido. Mas eu nem sequer os impedi ocultando-lhes
o verdadeiro processo anarquista; logo que descobri o processo, disse-o
claramente a todos. O próprio processo me impedia de fazer mais. Que mais podia
fazer? Compeli-los a seguir o caminho? Mesmo que o pudesse fazer, não o faria,
porque seria tirar-lhes a liberdade, e isso era contra os meus princípios
anarquistas. Auxiliá-los? Também não podia ser, pela mesma razão. Eu nunca
ajudei, nem ajudo, ninguém, porque isso, sendo diminuir a liberdade alheia, é
também contra os meus princípios. V. o que me está censurando é eu não ser mais
gente que uma pessoa só. Porque me censura o cumprimento do meu dever de
libertar, até onde eu o podia cumprir? Porque não os censura antes a eles por
não terem cumprido o deles?
— Pois sim, homem.
Mas esses homens não fizeram o que v. fez, naturalmente, porque eram menos
inteligentes que v., ou menos fortes de vontade, ou…
— Ah, meu amigo:
essas são já as desigualdades naturais, e não as sociais… Com essas é que o
anarquismo não tem nada. O grau de inteligência ou de vontade de um indivíduo é
com ele e com a Natureza; as próprias ficções sociais não põem pr’aí nem prego
nem estopa. Há qualidades naturais, como eu já lhe disse, que se pode presumir
que sejam pervertidas pela longa permanência da humanidade entre ficções
sociais; mas a perversão não está no grau da qualidade, que é
absolutamente dado pela Natureza, mas na aplicação da qualidade. Ora
uma questão de estupidez ou de falta de vontade não tem que ver com a aplicação
dessas qualidades, mas só com o grau delas. Por isso lhe digo: essas são já
absolutamente as desigualdades naturais, e sobre essas ninguém tem poder
nenhum, nem há modificação social que a modifique, como não me pode tornar a
mim alto ou a v. baixo…
«A não ser… A não
ser que, no caso desses tipos, a perversão hereditária das qualidades naturais
vá tão longe que atinja o próprio fundo do temperamento… Sim, que um tipo nasça
para escravo, nasça naturalmente escravo, e portanto incapaz de qualquer
esforço no sentido de se libertar… Mas nesse caso…, nesse caso…, que tem ele
que ver com a sociedade livre, ou com a liberdade?… Se um homem nasceu para
escravo, a liberdade, sendo contrária à sua índole, será para ele uma tirania.
Houve uma pequena
pausa. De repente ri alto.
— Realmente, disse
eu, v. é anarquista. Em todo o caso, dá vontade de rir, mesmo depois de o ter
ouvido, comparar o que v. é com o que são os anarquistas que pr’aí há…
— Meu amigo, eu já
lho disse, já lho provei, e agora repito-lho… A diferença é só esta: eles são
anarquistas só teóricos, eu sou teórico e prático; eles são anarquistas
místicos, e eu científico; eles são anarquistas que se agacham, eu sou um
anarquista que combate e liberta… Em uma palavra: eles são pseudo-anarquistas,
e eu sou anarquista.
E levantámo-nos da
mesa.
Lisboa, Janeiro de
1922.
P.S. [V = Você = You]
Fernando Pessoa
“Ficção e Teatro”
Sail
on the wings of destiny...
Beating drums through the night
Flaming lights in the sky
Marching feet, fisted hands
For a cause I don’t understand
Hiding low and pray it will pass
Maybe there’ll be day at last
Where the children used to play
Lies broken glass and fields of clay
All the good that is gone
In this life that we’re given
My absolution seems not enough
‘cause still the tender turns to tough
In desperation we try
To understand why
And the destruction that you bring
Don’t you know…? Will never solve a thing
No truth, no religion
No oath you are given
No knowledge of history
Can seem to reveal our mystery
No faith and no writing
No law and no fighting
No decree and no hidden sign
Can make us deny
We are one and love is all
Tell me when your task is done
Show me now the victory won
Will rock and stone start to sing?
Bleeding wounds heal again?
Oh… In desperation we try
To understand why
And the destruction that you bring
Don’t you know…? Will never solve a thing
Flaming lights in the sky
Marching feet, fisted hands
For a cause I don’t understand
Hiding low and pray it will pass
Maybe there’ll be day at last
Where the children used to play
Lies broken glass and fields of clay
All the good that is gone
In this life that we’re given
My absolution seems not enough
‘cause still the tender turns to tough
In desperation we try
To understand why
And the destruction that you bring
Don’t you know…? Will never solve a thing
No truth, no religion
No oath you are given
No knowledge of history
Can seem to reveal our mystery
No faith and no writing
No law and no fighting
No decree and no hidden sign
Can make us deny
We are one and love is all
Tell me when your task is done
Show me now the victory won
Will rock and stone start to sing?
Bleeding wounds heal again?
Oh… In desperation we try
To understand why
And the destruction that you bring
Don’t you know…? Will never solve a thing
THE POODLES
“Love Is All”
Tito Colaço
VI _ II _ MMXV
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