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sábado, 21 de junho de 2014

Cogitemus...



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      Cogitemus...      







  O maior triunfo do homem  


O maior triunfo do homem é quando se convence de que o ridículo é uma coisa sua que existe só para os outros, e, mesmo, sempre que outros queiram. 
Ele então deixa de importar-se com o ridículo, que, como não está em si, ele não pode matar. 
Três coisas tem o homem superior que ensinar-se a esquecer para que possa gozar no perfeito silêncio a sua superioridade, o ridículo, o trabalho e a dedicação. 
Como não se dedica a ninguém, também nada exige da dedicação alheia. 
Sóbrio, casto, frugal, tocando o menos possível na vida, tanto para não se incomodar como para não aproximar as coisas de mais, a ponto de destruir nelas a capacidade de serem sonhadas, ele isola-se por conveniência do orgulho e da desilusão. 
Aprende a sentir tudo sem o sentir directamente, porque sentir directamente é submeter-se à acção da coisa sentida. 
Vive nas dores e nas alegrias alheias, Whitman olímpico, Proteu da compreensão, sem partilhar de vivê-las realmente. 
Pode, a seu talante, embarcar ou ficar nas partidas de navios e pode ficar e embarcar ao mesmo tempo, porque não embarca nem fica. Esteve com todos em todas as sensações de todas as horas da sua vida. Assistiu, olhando pelos olhos e pelos corações dos protagonistas, a todas as tragédias da terra. Com os que renunciaram, renunciou. Caiu em todas as batalhas, ficando vencedor delas. 
Venceu a sua alegria e a sua dor, vencendo toda a alegria e toda a dor do mundo. 
Ele lembra-se da sua própria voz ter gritado, de entre o povo judeu que se aglomerara: "Nós queremos antes Barrabás". 
E no momento em que pensou como o tinha sido, o nome de Barrabás lembrava-lhe já que Barrabás era ele, e Cristo também, que o povo não pedira. 
Quando voltou a querer lembrar-se que homem do povo havia sido, viu que tinha sido todos eles. Se olhava ligeiramente para cima sentia em sonho na sua fronte de mulher os cabelos negros de Maria. Sentia seios. Como eles desviaram a ideia para o instinto sexual, ele chorou de repente e sabia que era a Madalena. 
Estendia as mãos mas lembrou-se de quando Pilatos as lavara da responsabilidade, e o seu vulto aprumava-se, governador romano, na sonhada toga que lhe roçava de leve a sensação ideal da própria pele. 
Cerrava os olhos, os próprios olhos do sonho, com o cansaço múltiplo d'aquilo tudo, e num último reflexo, antes da apatia, os estandartes do fim d'aquilo tudo, passam, com águias no cimo, num crepúsculo com montes verdes ao fundo. 
O cansaço de tanta sensação dispersa trazia-lhe uma depressão, e a depressão trazia-lhe os sentimentos depressivos, e entre eles, no limite do cansaço, o da piedade mole e chorosa pelos outros, canto de ama, cantando à noite, quando o pobre que não tinha ninguém encontra Nossa Senhora na estrada vestida de pastora, que o leva pela mão para o céu. 
A infância lembrada abriu a porta a Cristo que entra pela sua sensação de todas as lágrimas a chorar. 


 Fernando Pessoa 
"Inéditos"

















   Exercitar a vontade naquilo que podemos ter de melhor   


Ponho-me a pensar na quantidade dos que exercitam o físico, e na escassez dos que ginasticam a inteligência, na afluência que têm os gratuitos espectáculos desportivos, e na ausência de público durante as manifestações culturais, enfim, na debilidade mental desses atletas de quem admiramos as espáduas musculadas. 
E penso sobreutdo nisto: se o corpo pode, à força de treino, atingir um grau de resistência tal que permite ao atleta suportar a um tempo os murros e pontapés de vários adversários, que o torna apto a aguentar um dia inteiro sob um sol abrasador, numa arena escaldante, todo coberto de sangue, não será mais fácil ainda dar à alma uma tal robustez que a torne capaz de resistir sem ceder aos golpes da fortuna, capaz de erguer-se de novo ainda que derrubada e espezinhada?! 
De facto, enquanto o corpo, para se tornar vigoroso, depende de muitos factores materiais, a alma encontra em si mesma tudo quanto necessita para se robustecer, alimentar, exercitar. 
Os atletas precisam de grande quantidade de comida e bebida, de muitos unguentos, sobretudo de um treino intensivo: tu, para atingires a virtude, não precisarás de despender um tostão em equipamento! Aquilo que pode fazer de ti um homem de bem existe dentro de ti. 
Para seres um homem de bem só precisas de uma coisa: a vontade.
Em que poderás exercitar melhor a tua vontade do que no esforço para te libertares da servidão que oprime o género humano, essa servidão a que até os escravos do mais baixo estrato, nascidos, por assim dizer, no meio do lixo, tentam por todos os meios eximir-se? 
O escravo gasta todas as economias que fez à custa de passar fome para comprar a sua alforria, e tu, que te julgas de nascimento livre, não estás disposto a gastar um centavo para garantires a verdadeira liberdade?! 
Escusas de olhar para o cofre, que esta liberdade não se compra. 
Por isso te digo que a "liberdade" a que se referem os registos públicos é uma palavra vã, pois nem os compradores nem os vendedores da alforria a possuem. 
O bem que é a liberdade terás tu de dá-lo a ti mesmo, de o reclamar a ti mesmo! Liberta-te, para começar, do medo da morte (já que a ideia da morte nos oprime como um jugo), depois do medo da pobreza. 
Para te convenceres de que a pobreza não é em si um mal bastar-te-á comparares o rosto dos pobres com o dos ricos. 
Um pobre ri com mais frequência e convicção, nenhuma preocupação o aflige profundamente, mesmo que algum cuidado se insinue nele depressa passará como nuvem ligeira. 
Em contrapartida, aqueles a quem o vulgo chama "afortunados" exibem uma boa disposição fingida, carregada, contaminada de tristeza, e tanto mais lamentável quanto, muitas vezes, nem sequer podem mostrar-se abertamente infelizes, antes se vêem forçados, entre desgostos que lhes roem o coração, a representarem a comédia da felicidade! 


  Séneca  
"Cartas a Lucílio"





















TITO COLAÇO
XXI ___ VI ___ MMXIV







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