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sexta-feira, 28 de junho de 2013

Liberdade de pensar...








Liberdade de pensar...




Homens de capacidades espirituais e de vistas largas! Admiro o vosso talento e aprecio muito o vosso sentimento humano. Mas reflectistes bem sobre o que fazeis e até onde se chegará com os vossos ataques à razão?
Quereis, sem dúvida, que a liberdade de pensar se mantenha incólume, pois, sem ela depressa acabariam os vossos livres ímpetos de génio. 
Vejamos o que naturalmente se irá passar com essa liberdade de pensamento se um procedimento, tal como o que iniciais, se tomar prevalecente.
À liberdade de pensar contrapõe-se, em primeiro lugar, a coacção civil. Há decerto quem diga: a liberdade de falar ou de escrever pode ser-nos tirada por um poder superior, mas não a liberdade de pensar. Mas quanto e com que correcção pensaríamos nós se, por assim dizer, não pensássemos em comunhão com os outros, aos quais comunicamos os nossos pensamentos e eles nos comunicam os seus! Pode, pois, muito bem dizer-se que o poder exterior, que arrebata aos homens a liberdade de comunicar publicamente os seus pensamentos, lhes rouba também a liberdade de pensar: o único tesouro que, não obstante todos os encargos civis, ainda nos resta e pelo qual apenas se pode criar um meio contra todos os males desta situação.
Em segundo lugar, a liberdade de pensar toma-se também no sentido de que se opõe à pressão sobre a consciência moral; quando, sem qualquer poder em matéria de religião, há cidadãos que se constituem tutores dos outros e, em vez de argumentos, sabem banir todo o exame da razão mediante uma impressão inicial sobre os ânimos, através de fórmulas de fé prescritas e acompanhadas pelo angustiante temor do perigo de uma inquirição pessoal.
Em terceiro lugar, a liberdade de pensamento significa ainda que a razão não se submete a nenhumas outras leis a não ser àquelas que ela a si mesmo dá; e o seu contrário é a máxima de um uso sem lei da razão (para assim, como imagina o génio, ver mais longe do que sob a restrição imposta pelas leis). 
A consequência que daí se tira é naturalmente esta: se a razão não quer submeter-se à lei, que ela a si própria dá, tem de se curvar sob o jugo das leis que um outro lhe dá; pois, sem lei alguma, nada, nem sequer a maior absurdidade, se pode exercer durante muito tempo. Por conseguinte, a consequência inevitável da declarada inexistência de lei no pensamento (a libertação das restrições impostas pela razão) é esta: a liberdade de pensar acaba por se perder e, porque a culpa não é de alguma infelicidade mas de uma verdadeira arrogância, a liberdade, no sentido genuíno da palavra, é confiscada.
O curso das coisas é mais ou menos este: a princípio, o génio compraz-se no seu ímpeto audacioso, porque deitou fora o fio com que a razão habitualmente o dirigia. Logo a seguir, fascina também outros mediante decisões imperiosas e grandes expectativas e parece ter-se sentado doravante num trono, que a vagarosa e pesada razão tão mal adornava, embora o génio continue a usar a linguagem dela. A máxima da invalidade, então aceite, de uma razão supremamente legisladora é aquilo que nós, homens comuns, chamamos o entusiasmo delirante; mas os favoritos da benevolente natureza dão-lhe o nome de iluminação. Como, entretanto, depressa surgirá entre estes uma confusão de linguagem, pois só a razão pode imperar validamente a todos, e agora cada qual segue a sua inspiração, por fim, factos provenientes de inspirações interiores serão confirmados por testemunhos exteriores, e de tradições que de início eram escolhidas e, com o tempo, se tornaram documentos impositivos, surgiu, numa palavra, a total submissão da razão aos factos, isto é, à superstição, porque esta, ao menos, não se pode reduzir a uma forma legal e entrar assim num estado de repouso.
No entanto, porque a razão humana aspira sempre à liberdade, o seu primeiro uso de uma liberdade, de que durante muito tempo se desacostumou, quando rompe as cadeias, degenerará em abuso e confiança temerária na independência do seu poder em relação a toda a limitação, numa convicção do domínio absoluto da razão especulativa, que nada admite a não ser o que se pode justificar por razões objectivas e pela convicção dogmática, negando com audácia tudo o mais. A máxima da independência da razão em relação à sua própria necessidade (renúncia à fé racional) chama-se então incredulidade: não é uma incredulidade histórica, pois não se pode pensar como deliberada, logo, também não como responsável (porque cada qual deve crer num facto que é tão suficientemente comprovado como uma demonstração matemática, quer queira quer não); mas é uma incredulidade racional, um inconveniente estado do espírito humano que priva as leis morais, primeiro, de toda a força de móbil sobre o coração e, com o tempo, até de toda a autoridade, suscitando assim o modo de pensar que se chama livre pensamento, isto é, o princípio de não reconhecer mais nenhum dever. Entra aqui em acção a autoridade, para que os próprios assuntos civis não entrem na maior desordem; e, visto que o meio mais rápido e mais enérgico é para ela o melhor, a autoridade suprime a liberdade de pensar e, tal como às outras actividades, também sujeita esta aos regulamentos do país e assim a liberdade de pensamento, ao querer agir de modo absolutamente independente das leis da razão, acaba por se destruir a si mesma.
Amigos do género humano e do que para ele é mais sagrado!
Aceitai o que, após um exame cuidadoso e honesto, vos parecer mais digno de fé quer sejam factos, quer princípios de razão; somente não impugneis à razão o que dela faz o supremo bem na terra, isto é, o privilégio de ser a derradeira pedra-de-toque da verdade.*
Caso contrário, indignos de tal liberdade, também decerto a perdereis, e esta infelicidade arrasta ainda a outra parte inocente da cabeça que, de outro modo, estaria disposta a servir-se legalmente da sua liberdade e a contribuir assim, de forma conveniente, para a melhoria do mundo.

Pensar por si mesmo significa procurar em si próprio (isto é, na sua própria razão) a suprema pedra de toque da verdade; e a máxima de pensar sempre por si mesmo é a Ilustração (Aufklárung). Não lhe incumbem tantas coisas como imaginam os que situam a ilustração nos conhecimentos; pois ela é antes um princípio negativo no uso da sua faculdade de conhecer e, muitas vezes, quem dispõe de uma riqueza excessiva de conhecimentos é muito menos esclarecido no uso dos mesmos. Servir-se da sua própria razão quer apenas dizer que, em tudo o que se deve aceitar, se faz a si mesmo esta pergunta: será possível transformar em princípio universal do uso da razão aquele pelo qual se admite algo, ou também a regra adoptada do que se admite? Qualquer um pode realizar consigo mesmo semelhante exame e bem depressa verá, neste escrutínio, desaparecer a superstição e o devaneio, mesmo se está muito longe de possuir os conhecimentos para a ambos refutar com razões objectivas. Serve-se, de facto,apenas da máxima da auto-conservação da razão. É, pois, fácil instituir a ilustração em sujeitos individuais por meio da educação; importa apenas começar cedo e habituar os jovens espíritos a esta reflexão. Mas esclarecer uma época é muito enfadonho, pois depara-se com muitos obstáculos exteriores que, em parte, proíbem e, em parte, dificultam aquele tipo de educação.




Excerto de:   
                        "Que singifica orientar-se no pensamento?"
                             (1786)   
       
      Publicado na integra em 1786 no jornal  Berlinische Monatsschrift.


         I. KANT 

   Tradutor:   Artur Morão


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             TITO COLAÇO        
                                                                          28.06.2013             















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