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quarta-feira, 14 de maio de 2014

Amici, ad qui venisti?









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   Amici, ad qui venisti?   

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   Vivemos numa paz de animais domésticos   


Uma cobra de água numa poça do choupal, a gozar o resto destes calores, e umas meninas histéricas aos gritinhos, cheias de saber que o bicho era tão inofensivo como uma folha. 
Por fidelidade a um mandato profundo, o nosso instinto, diante de certos factos, ainda quer reagir. 
Mas logo a razão acode, e o uivo do plasma acaba num cacarejo convencional. 
Todos os tratados e todos os preceptores nos explicaram já quantas espécies de ofídios existem e o soro que neutraliza a mordedura de cada um. 
Herdamos um mundo já quase decifrado, e sabemos de cor as ervas que não devemos comer e as feras que nos não podem devorar. Vivemos numa paz de animais domésticos, vacinados, com os dentes caninos a trincar pastéis de nata, tendo aos pés, submissos, os antigos pesadelos da nossa ignorância. Passamos pela terra como espectros, indo aos jardins zoológicos e botânicos ver, pacata e sabiamente, em jaulas e canteiros, o que já foi perigo e mistério. 
E, por mais que nos custe, não conseguimos captar a alma do brinquedo esventrado. 
O homem selvagem, que teve de escolher tudo, de separar o trigo do joio, de mondar dos seus reflexos o que era manso e o que era bravo, esse é que possuiu verdadeiramente a vida e o mundo. 
Diante duma natureza inteira e una, também ele tinha necessariamente de ser inteiro e uno. 
Sem amigos e sem vizinhos, sozinho contra as árvores e contra as sombras, ele era uma fortaleza em si, tendo na própria pele as ameias. 
Que totalidade a de um ser que não pode confiar senão em si! 
Socialmente, seremos assim (e somos, certamente) mais fáceis de conduzir, mais úteis, mais progressivos. 
Mas, individualmente, a que distância estamos de um homem das cavernas! 
Que tamanho o dele, a caçar bisões, e que pequenez a nossa, a ganhar taças em torneios de tiro aos pombos! 
O nosso gritinho de horror diante de qualquer lesma dá bem a perdição a que chegámos. 
Civilizámo-nos, mas à custa da nossa mais profunda integridade, dispersando-nos nas coisas que fomos desvendando. 
Na cobra de hoje ninguém viu sinceramente veneno ou morte. 
Vimos todos, sim, o manual que aprendemos no liceu. 
E o estremecimento das meninas histéricas, eco delido do uivo profundo de pavor e de incerteza dos nossos antepassados, foi dum ridículo tal que respingou outros aspectos e outros recantos da existência. 
Que espécie de sinceridade profunda, de lealdade incontroversa, haverá, por exemplo, em acreditar em Deus com a bomba atómica na mão? 
É bem que o homem faça todas as experiências, inclusivamente consigo. 
Que liberte a energia das pedras e se liberte também a si de todas as clausuras. Mas os instintos? 
Poderá, na verdade, ele viver desfalcado dessa força que o fechava como um punho e lhe dava uma coesão igual à dos átomos antes de serem bombardeados? 
Pelo caminho que levamos, um dia virá em que tudo em nós será consciência, compreensão e sabedoria. 
Mas nessa mesma hora estaremos desempregados no mundo. 
Todos saberemos resolver a equação da vida na ardósia negra onde dantes eram as trevas da nossa virgindade criadora, mas talvez já não haja vida, então. 



 Miguel Torga 
"Diário (1945)"





























    Sílaba sobre Sílaba    

Aprendo uma gramática de exílio, nas vertentes do silêncio. 
É uma aprendizagem que requer pernas rijas e mão segura, coisas de que já não me posso gabar, mas embora precárias, sempre as minhas mãos foram animais de paciência, e as pernas, essas ainda vão trepando pelos dias sem ajuda de ninguém. 
Sem o desembaraço de muitos, mas tirando partido dos variados acidentes da pedra, que conheço bem, lá vou pondo sílaba sobre sílaba. 
Do nascer ao pôr do sol. 


Eugénio de Andrade
"Poesia e Prosa (1940-1980)"




























TITO COLAÇO
XIV ___ V ___ MMXIV













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