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quinta-feira, 1 de maio de 2014

Sic transit gloria mundi...

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     Sic transit gloria mundi...     




















 Uma obediência passiva 


O homem, bobo da sua aspiração, sombra chinesa da sua ânsia inútil, segue, revoltado e ignóbil, servo das mesmas leis químicas, no rodar imperturbável da Terra, implacavelmente em torno a um astro amarelo, sem esperança, sem sossego, sem outro conforto que o abafo das suas ilusões da realidade e a realidade das suas ilusões. 
Governa Estados, institui leis, levanta guerras; deixa de si memórias de batalhas, versos, estátuas e edifícios. 
A Terra esfriará sem que isso valha. Estranho a isso, estranho desde a nascença, o soI um dia, se alumiou, deixará de alumiar; se deu vida, dará a si a morte. 
Outros sistemas de astros e de satélites darão porventura novas humanidades; outras espécies de eternidades fingidas alimentarão almas de outra espécie; outras crenças passarão em corredores longínquos da realidade múltipla. 
Cristos outros subirão em vão a novas cruzes. 
Novas seitas secretas terão na mão os segredos da magia ou da Cabala. 
E essa magia será outra, e essa Cabala diferente. 
Só uma obediência passiva, sem revoltas nem sorrisos, tão escrava como a revolta, é o sistema espiritual adequado à exterioridade absoluta da nossa vida serva. 


 Álvaro de Campos 
 "Páginas íntimas e de auto-interpretação'















  Os verdadeiros burros e os falsos loucos  

O mais esperto dos homens é aquele que, pelo menos no meu parecer, espontâneamente, uma vez por mês, no mínimo, se chama a si mesmo asno..., coisa que hoje em dia constitui uma raridade inaudita. 
Outrora dizia-se do burro, pelo menos uma vez por ano, que ele o era, de facto; mas hoje... nada disso. 
E a tal ponto tudo hoje está mudado que, valha-me Deus!, não há maneira certa de distinguirmos o homem de talento do imbecil. Coisa que, naturalmente, obedece a um propósito. 
Acabo de me lembrar, a propósito, de uma anedota espanhola. 
Coisa de dois séculos e meio passados dizia-se em Espanha, quando os Franceses construíram o primeiro manicómio: "Fecharam num lugar à parte todos os seus doidos para nos fazerem acreditar que têm juízo". 
Os Espanhóis têm razão: quando fechamos os outros num manicómio, pretendemos demonstrar que estamos em nosso perfeito juízo. "X endoideceu...; portanto nós temos o nosso juízo no seu lugar". Não; há tempos já que a conclusão não é lícita. 

 Fiodor Dostoievski 
"Diário de um escritor"




























TITO COLAÇO
___ V ___ MMXIV







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