Páginas

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Crime de ofensa à integridade física

Crime de ofensa à integridade física


I. Crime de ofensa à integridade física. Ofensa no corpo. Lesão da saúde.

CASO nº 1. Ofensa no corpo. Lesão da saúde. Crimes semi - públicos. Queixa.
A faz a limpeza das janelas da casa de B. Às tantas, este aparece na rua, acompanhado da mulher, C, e ambos a discutiram vivamente um com o outro. No calor da discussão, B grita para a mulher das limpezas dizendo-lhe que atire a água do balde para cima de C e que se não acertar será despedida. Com medo que ele a despeça, A atira a água suja do balde para cima de C.
À polícia, que entretanto surgiu, C declarou que compreendia o comportamento de A, nada querendo dela, mas apresentou queixa contra o marido, por ofensas corporais.
Punibilidade de A e B?
A primeira questão é a de determinar se houve uma ofensa no corpo ou na saúde de C. Não se detecta, é evidente, um prejuízo para a substância corporal da vítima. Mas o facto de se atingir outra pessoa com um balde de água suja representará um prejuízo no bem-estar físico de uma forma não insignificante? Uma vez que a A teve que ficar algum tempo com a roupa no corpo, molhada com água suja, e que dessa forma se verifica uma perturbação de funções físicas, parece estar assegurado que o tipo de ilícito do artigo 143º, nº 1, se encontra preenchido.
Já seria diferente, não se podendo falar em maus-tratos corporais, se no verão, em plena praia, alguém atira um jarro de água limpa e à temperatura normal contra outra pessoa.
O crime do artigo 143º, nº 1, consuma-se com qualquer ofensa no corpo ou na saúde. A ofensa no corpo associa-se a um ataque à integridade corporal, que tanto pode consistir no prejuízo ou perda da substância corporal, como no simples corte do cabelo ou da barba. Com frequência, a ofensa corporal constituirá uma lesão, mas pode não se chegar a infligir dor ou sofrimento.
Haverá dano da integridade corporal, por ex., quando o agressor provoca equimoses, arranhadelas, ferimentos, fracturas, mutilações ou outras lesões do mesmo género na vítima. Mas nem o derramamento de sangue (hemorragia) nem a solução de continuidade dos tecidos são indispensáveis à existência de uma ofensa no corpo.
 Uma parte significativa da doutrina não inclui as lesões psíquicas, como as provocadas por medo ou repugnância, entre as ofensas no corpo. Ser alvo de uma cuspidela não representará portanto uma ofensa corporal. Pode porém representar uma injúria. Ainda assim, um choque psíquico pode bastar para provocar um dano físico, dependendo então da intensidade com que se produz, pelo que, para lograr inclusão no correspondente elemento típico, não poderá ser insignificante.
Deste modo, integra uma ofensa no corpo da vítima todo o mau trato através do qual o ofendido é prejudicado no seu bem-estar físico de forma não insignificante.
O conceito de saúde: “bem-estar físico, psíquico e social”. Para a Organização Mundial da Saúde, “a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, que não consiste somente numa ausência de doença ou de enfermidade”. Seria dar azo a um alargamento abusivo acolher uma tal definição nos quadros do direito penal; ela serve, ainda assim, para descrever o contexto ideal ao desenvolvimento optimizado da personalidade. A saúde é, na realidade, a capacidade de o organismo humano funcionar, mas pode preencher-se o ilícito de ofensa à integridade física mesmo que a pessoa atingida não esteja necessariamente de boa saúde. Trata-se, portanto, de uma noção relativa. O critério de base não é um estado de saúde absoluto, mas o estado de saúde em que se encontrava a vítima antes da ofensa. Protege-se, pois, a saúde concreta.
A lesão da saúde consiste em criar ou intensificar uma situação patológica, enquanto desvio das funções corporais normais. É a perturbação do equilíbrio fisiológico ou psicológico da vítima. Tanto pode tratar-se de uma infecção, capaz de criar um estado de doença, como a criação dum estado de embriaguez ou a ministração de uma droga que provoca no organismo uma alteração desfavorável das funções biológicas.
 Nos contágios com o vírus da sida há uma diferença entre o estado de saúde da pessoa infectada e o de outra pessoa não atingida pelo vírus e isso tem certamente um significado patológico. Por outro lado, o desencadear da imunodeficiência fica como que pré-programado, em termos de se poder afirmar uma ofensa à saúde.
De notar que uma ofensa no corpo provoca frequentemente um prejuízo para a saúde. Mesmo as ofensas ao bem-estar passageiras e benignas constituem igualmente lesões corporais simples quando puderem assimilar-se a uma enfermidade, por ex., se acompanhadas de dores importantes, um choque nervoso, dificuldades respiratórias ou uma perda do conhecimento.

No que toca aos elementos subjectivos do crime de ofensa à integridade física simples, é manifesto que A actuou com conhecimento e vontade da realização típica, isto é, dolosamente.
C, todavia, não apresentou queixa contra A. Como o crime tem natureza semi - pública (artigo 143º, nº 2), não tem o Ministério Público legitimidade para o procedimento criminal.
O Código de Processo Penal edita regras especiais para os crimes particulares lato sensu (crimes semipúblicos) em que a legitimidade do Ministério Público para acusar necessita de ser integrada por um requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respectivo direito (em regra, o  ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento criminal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada (artigo 113º do Código Penal e artigo 49º do Código de Processo Penal)
 O direito de queixa é assim uma declaração inequívoca de vontade de proceder contra determinada pessoa (José Damião da Cunha, RPCC 8 (1998), p. 601). Ensina também o Professor Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. 1, p. 121, que o fundamento da existência de crimes particulares reside, por um lado, em que tais infracções não se relacionam com bens jurídicos fundamentais da comunidade de modo tão directo e imediato que aquela sinta, em todas as circunstâncias da lesão.
 Se o ofendido entende não fazer valer a exigência de retribuição, a comunidade considera que assunto não merece ser apreciado em processo penal. Em certas infracções, a promoção processual contra ou sem a vontade do ofendido pode ser inconveniente ou mesmo prejudicial para interesses seus, dignos de toda a consideração, porque estritamente relacionados com a sua esfera íntima ou familiar; perante um tal conflito de interesses juridicamente relevantes o legislador dá prevalência ao interesse particular.
Acontece que o não exercício do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes dentro do prazo de seis meses aproveita aos restantes, nos casos em que estes não puderem ser perseguidos sem queixa (artigo 115º, nº 2), pretendendo-se assim retirar da disponibilidade do ofendido o direito de escolha de um ou mais participantes, com exclusão de outros, visto que o que essencialmente está em causa é a perseguição do crime praticado e não apenas a satisfação de interesses de natureza pessoal (cf. Maia Gonçalves, Código Penal Português anotado, 14ª ed., p. 386; e o acórdão da Relação de Guimarães de 2 de Dezembro de 2002, CJ 2002, tomo V, p. 291).
C, titular dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação (artigo 113º, nº 1), dirigiu a queixa apenas contra o marido, mas indicou A como sendo comparticipante nos factos que integravam o crime de ofensa à integridade física, sem que agora tenhamos que determinar se se trata de autoria ou de cumplicidade. Considerando o princípio da indivisibilidade consagrado no nº 2 do artigo 115º, é inquestionável que o não exercício do direito de queixa contra A aproveita ao B.
Vamos agora supor que C também apresentara queixa contra A —que, apesar de compreender o gesto de A, ainda assim queria que esta respondesse em juízo. Põe-se então o problema de saber se o facto de ter declarado que até compreendia a conduta de A representa uma causa de justificação, concretamente, na forma de consentimento.
 A resposta só poderá ser negativa, uma vez que o consentimento justificante precede necessariamente a conduta típica, como o mostra a circunstância de poder ser livremente revogado até à execução do facto (nº 2 do artigo 38º). Por conseguinte, o crime não se encontra justificado pelo consentimento da ofendida. Também não convergem os pressupostos do artigo 34º. A conservação de um emprego apetecível por parte de A não representa um interesse sensivelmente superior à integridade física de C. Como, por último, não havia por parte de B um perigo actual para a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade de A, a culpa também se não mostra excluída por aplicação dos critérios do artigo 35º (estado de necessidade desculpante).
 A praticou um crime consumado do artigo 143º, nº 1, na pessoa de C.
Mas será A autora ou cúmplice?
Ao atingir as roupas de C com a água do balde podem ter sido provocados danos ligados à utilidade dessas coisas, de acordo com a sua função (o tornar não utilizável coisa alheia). No que respeita às acções típicas, no crime de dano do artigo 212º, nº 1, do Código Penal, o legislador combinou diversas formulações: ao lado da destruição, que envolve o desaparecimento da coisa física, irremediavelmente atingida na sua substância e enquanto coisa capaz de desempenhar uma função; da danificação, que não atingindo o limiar da destruição exprime a diminuição das utilidades, em virtude da sua alteração material, que a coisa concedia; e da desfiguração, com a alteração da imagem exterior da coisa - aparecem também danos ligados à utilidade da coisa de acordo com a sua função (o tornar não utilizável coisa alheia).
 O crime em causa tem igualmente natureza semi - pública, é necessária queixa prévia para que o procedimento criminal possa ser exercido (nº 3 do artigo 212º). De qualquer forma, trata-se de um facto co-punido, em razão do concurso aparente de normas —entre o preceito do artigo 143º, nº 1, e o do artigo 212º, nº 1, só se aplicará o primeiro, recuando o segundo: a pena daquele já engloba o desvalor da utilização dos meios escolhidos para ofender corporalmente.
CASO nº 2 –
 P é professora do ensino básico. Na sala de aulas, P escreve no quadro, de costas viradas para os alunos, com idades que andam pelos dez anos. Às tantas, P dá-se conta do arremesso de uma bola de papel, e volta-se rapidamente, agarrando A por um braço, e aplicando-lhe um tabefe na cara. Na tarde desse mesmo dia, os pais de A fazem queixa contra a professora por crime de ofensa à integridade física e por injúria, informando da sua intenção de se constituírem assistentes. No dia seguinte de manhã, a mãe de A apresenta-se com este na sala de aulas, para ter uma conversa com a professora, e às tantas agarra-lhe o pescoço com ambas as mãos, seguindo-se a queixa desta na polícia. Nas averiguações que se seguiram, provou-se que não fora o aluno A quem atirou a bola de papel à professora.
Ao agarrar A por um braço, aplicando-lhe um tabefe na cara, P pode ter cometido um crime doloso de ofensa à integridade física simples. Como já vimos, o ilícito do artigo 143º, nº 1, consuma-se com qualquer ofensa no corpo ou na saúde. Há dano da integridade corporal, por ex., quando o agressor provoca equimoses, arranhadelas, ferimentos, fracturas, mutilações ou outras lesões do mesmo género na vítima.
 Quem dá uma bofetada noutra pessoa agride-a fisicamente, ofendendo-a no corpo (eventualmente na saúde), mesmo que não ocorram lesões, incapacidade para o trabalho ou, mesmo só, dor.
O direito dos pais corrigirem os filhos deverá ser considerado uma causa de justificação. A legitimação dos pais deduz-se do direito de educar. Cf. os artigos 1877º, 1878º e 1885º do Código Civil.
 Mas não existe uma norma escrita a conferir aos professores um direito de castigo na escola. Hoje em dia, aliás, nega-se um direito de castigo do professor relativamente aos seus alunos, mesmo que este pretenda que à sua actuação preside uma finalidade pedagógica e se guarda uma relação adequada com a falta cometida e a idade do jovem.
Também por isso mesmo se não poderia prevalecer o professor da adequação social da ofensa.
O critério da adequação social. No que toca à adequação social, escreve o Prof. Figueiredo Dias, RPCC 1991, p. 48, “a ideia básica é a de que não pode constituir um ilícito jurídico-penal uma conduta que ab initio e em geral se revela como socialmente aceite e reconhecida”.
Segundo Welzel, ficam excluídas do tipo de ilicito aquelas condutas que embora estejam nele formalmente incluídas se mantêm dentro da ordem social histórica “normal” da comunidade. Welzel menciona como exemplos, entre outras, as ofensas corporais insignificantes, as privações da liberdade irrelevantes, a entrega de presentes aos funcionários por altura do Natal, as condutas meramente indecorosas ou impertinentes nos crimes sexuais.
O critério da adequação social como causa de exclusão da tipicidade da conduta é, para alguns autores, sumamente impreciso e afectaria, por isso, gravemente a segurança jurídica. O mesmo se afirma do chamado princípio da insignificância, formulado por Roxin.
 Ainda sobre cláusulas de adequação social: carnaval, praxe — cortes de cabelo, cf. Maria Paula Ribeiro de Faria, A lesão da integridade física e o direito de educar, com a observação de que “o direito não deve ser completamente permeável em relação às valorações sociais, nomeadamente, não deve sofrer reflexões axiológicas em função das práticas sociais, mas também não pode ter uma relação ostensiva e realista da distância em relação àquilo que se passa na realidade e na vida social”.
No mesmo local, podem ainda encontrar-se elementos sobre o cumprimento das regras do jogo nas competições desportivas; as condutas de agressão íntima (empurrões, beliscões, pisadelas, que não têm dignidade lesiva para merecerem ou justificarem a intervenção penal); e o exercício do direito de correcção.
Também sobre o direito de correcção, Figueiredo Dias, Textos, p. 295: “um direito de correcção do professor sobre os seus alunos que implique a prática, por aquele, de factos criminalmente típicos não parece poder hoje sufragar-se, também entre nós”.
O acto de atirar uma bola de papel não representa, certamente, uma agressão que justifique a adopção de uma acção de defesa, pelo que estará do mesmo modo excluída a legítima defesa (artigo 32º). Pode-se assim assegurar que o comportamento da professora é ilícito, por não se encontrar coberto por qualquer causa de justificação (artigo 31º).
Vamos contudo ver se a punibilidade de P poderá eventualmente ser afastada pela circunstância de esta, no momento de actuar, estar convencida de que tinha um direito ao castigo e que, no caso, estavam reunidos os pressupostos fácticos dessa presumida causa de justificação (hipótese de erro). Detecta-se aqui um erro sobre o tipo permissivo (admissão errónea de uma situação que, a existir, seria de molde a justificar o facto concreto), a resolver de acordo com os critérios do artigo 16º, nºs 1 a 3, excluindo-se o dolo, mas possibilitando a punibilidade do agente por ofensa à integridade física negligente (artigo 148º), tanto mais que, sendo o crime de natureza semipública, houve queixa de quem de direito, os pais do aluno.
O passo seguinte consiste em saber se apertar o pescoço constitui ofensa à integridade física para efeitos de preenchimento do tipo legal fundamental de ofensa à integridade física do artigo 143º, nº 1. Um caso destes foi tratado,  no acórdão da Relação de Lisboa de 19 de Junho de 2001, CJ 2001, ano XXVI, tomo III, p. 150. Aí se recorda que o bem jurídico protegido é a integridade física e que esta pode ser atingida por uma ofensa no corpo ou na saúde independentemente da dor ou sofrimento causados, da gravidade dos efeitos ou da sua duração.
“Por ofensa no corpo deve entender-se toda a perturbação ilícita da integridade corporal morfológica ou do funcionamento normal do organismo ou das suas funções psíquicas, todo o mau trato através do qual a vítima é prejudicada no seu bem estar físico de forma não insignificante. Com efeito, segundo a doutrina, a ofensa no corpo não poderá ser insignificante. Sob o ponto de vista do bem jurídico protegido não será de ter como relevante a agressão e ilícito o comportamento do agente se a lesão é diminuta. (…) O acto de apertar o pescoço de outra pessoa não constitui uma forma de actuação susceptível de se enquadrar numa via de facto e, face ao nosso ordenamento penal, deve ser considerada como ofensa corporal, não sendo de recorrer à figura da adequação social para o excluir, em princípio, do tipo legal fundamental de ofensa à integridade física simples. Entendimento que se mantém na linha definida pela jurisprudência.
CASO nº 3 -  Um corte de cabelo à escovinha.
 A, enquanto B, seu companheiro de quarto, dormia, depois de uma noitada que meteu copos em abundância, conseguiu pacientemente e sem que a vítima de tal se fosse apercebendo, cortar-lhe a farta cabeleira que era o orgulho de B. Quando B acordou e se sentiu “espoliado daquilo que melhor convivia com os seus pensamentos”, foi fazer queixa à esquadra por ofensa voluntária à sua integridade física, o que deixou os polícias muito espantados e perplexos. A defendeu-se, dizendo que ambos eram estudantes universitários e se estava no auge da temporada da praxe académica.
Punibilidade de A?
O acórdão de 18 de Dezembro de 1991, que firmou jurisprudência com carácter obrigatório, afirmou que a Constituição da República reconhece, sem quaisquer limitações ou graduações, o direito à integridade física [artigo 25º, nº 1] e considera-o inviolável, não fazendo sentido que o legislador penal, ao incriminar e fazer punir os actos violadores de tal direito, com vista a assegurar a sua defesa, o fizesse por forma limitada.
CASO nº 4 - Crime de ofensa à integridade física de outra pessoa provocando-lhe perigo para a vida.
A empunhou um pau de cerca de 3,45 m de comprimento e de 6 cm de espessura na parte mais grossa. Aproveitando-se de B estar a olhar para outro lado, desferiu-lhe energicamente uma pancada certeira na cabeça, provocando-lhe uma fractura craniana e um hematoma subdural agudo, com entrada quase imediata em estado de coma, antevendo e querendo provocar no B uma lesão grave, também no seu resultado. Das lesões resultou ainda, e em concreto, perigo para a vida.
O Supremo (acórdão de 17 de Maio de 2000, BMJ 497-150) confirmou a condenação de A pela prática de um crime dos artigos 144º, alínea d), e 146º, nºs 1 e 2, com referência ao artigo 132º, nº 2, alínea f). Escreve-se que o perigo (para a vida) deve ser entendido sempre em concreto, fundado no aparecimento de sinais e sintomas de morte próxima, relacionados directamente com a lesão resultante da ofensa, e não de um perigo de vida considerado em abstracto, designadamente medido através da probabilidade estatística.
O dolo tem que abranger nestes casos não só o crime fundamental, como as consequências que o qualificam, mas basta o dolo eventual. Relativamente à alínea d), citando Paula Ribeiro de Faria, acrescenta-se que se exige o conhecimento das circunstâncias que tornam o comportamento perigoso sob o ponto de vista do bem jurídico protegido (neste caso, a vida), não se tornando necessária a vontade da lesão efectiva do mesmo bem jurídico. Entre tais comportamentos, estão o empurrão pelo qual uma pessoa cai de uma motorizada em movimento, ou, como no caso, o desferir de uma pancada violenta na cabeça da vítima, supondo-se sempre que dessa forma veio a criar-se um perigo concreto.
    Quando A empunhou um pau com mais de 3 metros de comprimento e com ele desferiu uma pancada enérgica na cabeça de B, com as consequências que ficaram assinaladas, é mais que evidente o nexo de causalidade entre o comportamento incriminado, a concreta ofensa à integridade física, e o resultado de perigo para a vida. Em geral admite-se que quem quer uma acção perigosa quer  pôr em perigo, ou pelo menos conforma-se com o resultado que lhe anda associado.

 Outros comportamentos igualmente perigosos sob o ponto de vista da protecção da vida são, por ex., a ministração de um veneno ou a aplicação de outras substâncias, como a água a ferver, no corpo da vítima. Pense-se também na infecção pelo vírus da sida. Mas é sempre necessário, para poder aplicar-se a alínea d) do artigo 144º, tanto um concreto perigo para a vida, como o dolo do sujeito, nos termos anteriormente referidos, o que igualmente afasta um dolo homicida, já que então o caso seria de crime contra a vida, ainda que só tentado.
Recorde-se, de resto, a possibilidade de fazer intervir a qualificação pela especial perversidade decorrente dos conjugados artigos 132º, nº 2, alínea h), 144º e 146º, nºs 1 e 2.
A propósito do perigo concreto: convém destrinçá-lo do chamado perigo abstracto. Comecemos por notar que existem diferentes graus de perigo a que correspondem diversos graus de probabilidade de se lhes seguirem consequências danosas. É por isso que para certas posições constituirá um perigo concreto a situação em que se verifica, de acordo com o curso normal das coisas, a probabilidade, ou um certo grau de possibilidade, de lesão de um  bem jurídico protegido, sem que seja exigido um grau de probabilidade matemática.
Com razão, escreve Pozo, p. 137, que este critério da probabilidade é equivoco e impreciso, tendo sido abandonado pela doutrina, que prefere levar em conta a estrutura das infracções de pôr em perigo, conforme este integre ou não um dos seus elementos constitutivos.
 Nalguns casos, para fazer nascer a pretensão punitiva, basta a prática de uma conduta considerada tipicamente perigosa, segundo a avaliação do legislador, tornando-se inútil o estabelecimento de uma ameaça efectiva a bens jurídicos para cominar uma pena ao infractor, uma vez que o perigo é inerente à sua conduta.
Um preceito desta natureza, de mera actividade, contenta-se com a descrição do desvalor da acção, acrescentando-lhe a consequência (sanção).
O preceito respectivo fica preenchido mesmo que no caso concreto se não verifique uma ameaça para a vida ou para a integridade física de outrem, caso em que a actividade desenvolvida se revela perfeitamente inócua.
    Noutro crime de perigo presumido, como é o do artigo 292º, pune-se a condução de veículo em estado de embriaguez pelos perigos que advêm para os participantes no trânsito de alguém conduzir excedendo os limites toleráveis de álcool no sangue. Os crimes de perigo abstracto são hoje uma realidade indesmentível —as normas que os prevêem são constitucionalmente legítimas, não obstante as observações que por vezes igualmente se adiantam de se punirem factos inofensivos e de se não respeitar a presunção de inocência.
Mas se o legislador prevê a criação de um perigo para determinados bens jurídicos como elemento típico da incriminação, não bastará fazer a prova de que o comportamento do agente é em si mesmo perigoso.
No artigo 291º, nº 1, exige-se que se produza um perigo real para o objecto protegido pelo correspondente tipo; a norma, para além da maneira perigosa de conduzir, nela descrita, exige ainda que se ponha em perigo a vida ou a integridade física de outrem ou bens patrimoniais alheios de valor elevado.
Se simplesmente ficarem expostos a perigo bens patrimoniais alheios que não sejam de valor elevado, a incriminação não se aplica. O juiz deverá comprovar in concreto que a conduta pôs efectivamente em perigo os bens jurídicos em questão, que se verificou realmente um desvalor de resultado. Veja-se, ademais, o crime de violação da obrigação de alimentos (artigo 250º), a exposição ou abandono (artigo 138º) e o incitamento ou ajuda ao suicídio (artigo 135º). Em todos estes casos desenha-se um crime de perigo singular (por oposição a perigo comum): é desde logo evidente que só uma pessoa — a pessoa que é exposta — pode ser posta em perigo, só esta é objecto do perigo.
À noção de perigo comum pode ligar-se um critério quantitativo: o facto ameaça não apenas certas pessoas mas uma comunidade, servindo-se o agente de meios aptos à criação de um perigo colectivo, por ex., desencadeando forças naturais, a água, o fogo, etc.
Perigo comum define-o Welzel como sendo o perigo que tem a ver com a colectividade, consistindo esta na multiplicidade de indivíduos (objectos), mas também na indeterminação da individualidade; é não só o perigo para uma multiplicidade de objectos, sendo indiferente que o seu número seja determinado ou indeterminado, mas também o perigo para um deles, sendo este um objecto indeterminado enquanto parte da colectividade”. É este caracter indeterminado que mais geralmente se associa à definição de crime de perigo comum: objecto do perigo não será um indivíduo preciso, mas uma qualquer pessoa, bastando que uma só se encontre por acaso no círculo de perigo e aí fique exposta à situação crítica.
No nosso Código, boa parte dos crimes de perigo comum e dos crimes contra a segurança das comunicações incluem a criação de um perigo entre os seus elementos típicos, pressupondo o perigo para uma pessoa, enquanto “representante da comunidade”, “o que significa que, independentemente do número de vítimas, existe apenas um crime (que preclude toda a consideração do “real” número de vítimas).  
Assim, haverá um só crime do artigo 291º, nº 1, se o desvalor do evento próprio do crime de condução perigosa como resultado de perigo se mostrar individualizado numa vítima, ou mesmo num conjunto delas, ou num bem.
Se temporal e espacialmente o bem jurídico esteve numa relação imediata de perigo, registando-se um efectivo evento de perigo, será ainda necessário comprovar a existência de um nexo causal entre o comportamento típico do sujeito e esse resultado.
À semelhança do que sucede nos crimes materiais de lesão, o destacamento do evento é uma exigência normativa no âmbito destes crimes, dos crimes materiais de perigo. A imputação objectiva deve obedecer a regras comuns às que vigoram nos crimes materiais de dano: ao relacionamento entre a conduta do agente e a situação perigosa são aplicáveis pelo menos os critérios restritivos da causalidade adequada.

II. Direito penal dos médicos. Ofensas corporais. O artigo 150º. Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários - artigos 156º e 157º.

CASO nº 1 –
 A, portador de características físicas de indivíduo do sexo masculino, "sente-se", porém, de há muito, íntima e profundamente mulher e reage e comporta-se como tal em todos os aspectos da sua vida, aspirando intensamente a ser do sexo feminino. Este desajustamento ou conflitualidade entre o sexo físico e o psicológico cria-lhe distúrbios psíquicos graves, pelos quais se vem sujeitando a tratamento psiquiátrico, e leva-o finalmente a recorrer a B, cirurgião, a fim de conseguir, através de uma reconstrução dos órgãos sexuais externos, uma morfologia semelhante à feminina. Embora com dúvidas sobre se aquela intervenção cirúrgica lhe é permitida por lei, B acede à solicitação de A, condoído com a situação psicológica, moral e até social deste. Quando, com A já anestesiado, se prepara para iniciar a intervenção, C, que discorda dela não obstante ser amigo de A, irrompe pela sala de operações e impede a sua realização.
Direito penal dos médicos. Ofensas corporais. O artigo 150º, nº 1, que não inclui o consentimento do paciente, contém uma cláusula de exclusão da tipicidade. Tratamentos arbitrários.
Actualmente, o regime previsto para as intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos consta do artigo 150º do Código Penal, no contexto das infracções contra a integridade física.
A norma deve ser lida em conjugação com a incriminação autónoma das intervenções e tratamentos médico cirúrgicos arbitrários dos artigos 156º e 157º, inscritos no capítulo dos crimes contra a liberdade pessoal (entre a coacção e o sequestro).
O legislador entendeu que a intervenção cirúrgica — medicamente indicada, realizada por um médico (mas não por um curandeiro ou por um simples leigo, a menos que haja diminuição do risco) com finalidade terapêutica (pelo que não se incluem, por ex., as intervenções puramente cosméticas) e segundo as leges artis  — não preenche o tipo de crime contra a integridade física, independentemente do resultado final: mesmo que agrave o estado de saúde do paciente ou provoque a sua morte (Costa Andrade, p. 450).
A formulação legal, ao dispor que as intervenções médico-cirúrgicas “não se consideram”, nesse contexto, “ofensa à integridade física”, revela o inequívoco propósito de as colocar fora das ofensas corporais.
Bem jurídico protegido, quando se fala de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários, só pode ser a liberdade de dispor do corpo e da própria vida. Estará então em causa a livre decisão sobre a realização ou a permissão de um tratamento, e não a integridade física como tal.
No exercício da sua profissão, o médico está vinculado à autodeterminação do paciente. Este direito de autodeterminação tem que ser simultaneamente protegido e respeitado. Protegido contra intervenções levadas a cabo em contrário da vontade do paciente. Por outro lado, as intervenções consentidas ou mesmo pedidas pelo paciente devem ficar impunes também para o médico; há-de respeitar-se a vontade do paciente como causa de exclusão da punibilidade (C. Andrade, p. 453).
Mas se no artigo 156º se consagra expressamente o primado do princípio da autodeterminação sobre a saúde e mesmo a vida, também daí sai reforçada a fragmentaridade da tutela penal. O legislador decidiu-se, com efeito, pela legitimidade de princípio do tratamento, salvo nos casos em que se pode “concluir com segurança que o consentimento seria recusado”. Para se punir o médico não será bastante poder supor-se razoavelmente (artigo 39º, nº 2) que o consentimento seria recusado, antes terá de se produzir prova que permita concluir com segurança que o consentimento seria recusado (C. Andrade, p. 457).
Nesta área problemática, o legislador optou por definir expressamente os tópicos a que o esclarecimento do médico deve estender-se, enquanto pressuposto de consentimento válido e eficaz.
Além disso, no artigo 157º o legislador respondeu à questão do chamado privilégio terapêutico, já que o médico poderá omitir o esclarecimento sempre que ele implique circunstâncias que a serem conhecidas pelo paciente seriam susceptíveis de lhe provocar perturbações comprometedoras da finalidade visada.
Há porém intervenções médicas que caem fora do círculo da acção médica tal como ficou esquematicamente definida.
São, por exemplo, as realizadas com finalidade cosmética, de investigação científica, para doação de tecidos ou órgãos e esterilização não terapêutica. Essas intervenções médicas são, em princípio, atentatórias da integridade física. Só que a sua eficácia indiciadora da ilicitude pode ser neutralizada por concorrência de causa de justificação bastante. A começar pelo consentimento-justificação, a verificarem-se os seus pressupostos e respeitadas as suas limitações normativas, nomeadamente as decorrentes da cláusula dos bons costumes.
Pois se o regime dos tratamentos arbitrários se circunscreve à acção terapêutica em sentido estrito, então todas as demais formas de intervenção médica que não se reconduzem a este figurino terão forçosamente de suscitar o problema da existência ou não da lesão corporal, susceptível de justificação mediante consentimento (C. Andrade, p. 464).
 O enquadramento do problema que nos é posto obriga à clarificação prévia da pertinência ou não do caso no âmbito das intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos. Cremos que releva desde logo a indicação pela negativa, por falta de convicção e vontade terapêutica. O interessado recorreu ao cirurgião B, a fim de conseguir, através de uma reconstrução dos órgãos sexuais externos, uma morfologia semelhante à feminina. Embora com dúvidas sobre se aquela intervenção cirúrgica lhe é permitida por lei, B acede à solicitação de A, condoído com a situação psicológica, moral e até social deste.
Parece clara aquela falta de convicção e vontade curativa. Afinal, B acedeu por estar condoído com a situação de A... Repare-se que não enjeitamos que num caso como este a instituição médica se confronta com uma situação de crise ou de necessidade espiritual relacionada com a dimensão física. Quando a isso, o texto abunda em pormenores. Todavia, no polo oposto, parece faltar até o esclarecimento bastante que, perante a observância das leges artis a pedido do paciente, faria porventura pender a questão para um campo semelhante ao da acção médica curativa.
A situação estará vocacionada para ser tratada no âmbito das ofensas corporais, excluindo-se a sua integração no artigo 150º. Houve todavia consentimento, para cuja relevância a integridade física se considera livremente disponível (artigo 149º, nº 1). A menos que a ofensa contrarie os bons costumes (nº 2). Ora, não seria difícil concluirmos pela ofensa dos bons costumes, perante todo o quadro fáctico da intervenção médica, digamos que aligeirada, carente de toda a planificação e de colaboração multidisciplinar, e a irreversibilidade e a gravidade da amputação que o médico se propunha levar a cabo.
Perante a decisão tomada e a clara existência de actos de execução — o paciente chegou a ser anestesiado —, parece indiciar-se o ilícito doloso, embora na forma de tentativa (artigo 144º: ofensa à integridade física grave). "Também as operações em caso de transexualismo hão-de, em princípio, cair fora do conceito e do regime das intervenções médico-cirúrgicas, devendo antes ser tratadas como ofensas corporais típicas." Manuel da Costa Andrade, Conimbricense, p. 310.
"A ausência de finalidade terapêutica exclui todo um espectro de intervenções que, embora normalmente realizadas por médico, não têm o "paciente" como seu beneficiário directo (experimentação pura, angiografia, castração, etc.). De igual modo, também a indicação médica afasta os tratamentos e métodos ainda não cientificamente convalidados, bem como os métodos de terapia excêntricos em relação à medicina académica ou institucionalizada (maxime os chamados métodos naturalistas, homeopáticos), etc." Manuel da Costa Andrade, Conimbricense, p. 307.
“O Código Penal português” (1982) “estabelece uma distinção entre as (privilegiadas) Intervenções e Tratamentos Médico-Cirúrgicos, por um lado, e as demais intervenções (cosméticas, experimentais, doações para fins de transplantação, etc.) que contendem com a integridade física. Para as primeiras, definidas por um complexo conjunto de elementos de índole objectiva e subjectiva, prevê-se um regime (artigo 150º, 158º e 159º) em que avultam três notas: não relevam como indiciadores do ilícito típico do crime de Ofensas corporais; só podem ser punidas se praticadas de forma arbitrária (crime contra a liberdade); não estão sujeitas ao limite dos bons costumes. Para as segundas vale a figura do Consentimento (artigos 38º e 149º) com as exigências e limites, maxime os resultantes da cláusula dos bons costumes. Cláusula que tem, segundo o entendimento da doutrina portuguesa dominante, uma compreensão e sentido dependentes das singulares intervenções em causa. Mas que determina, invariavelmente, a ilicitude das acções de que resultem lesões graves e irreversíveis da integridade física.
 Também a doutrina portuguesa se tem dado conta da complexidade da subsunção das concretas manifestações da vida a cada um dos dois regimes arquetipicamente definidos. São, concretamente, consideráveis as dificuldades resultantes da fluidez das fronteiras que separam a acção terapêutica da acção médico-experimental. Já porque todo o acto médico-cirúrgico implica um coeficiente irredutível de experimentação, já porque os limites da medicina académica se encontram em permanente estado de dinamismo e evolução. Daí que, em geral, se propenda para tratar como acção terapêutica aquela experimentação terapêutica considerada, em concreto, necessária e sem alternativa para tentar fazer face a um estado patológico.” Manuel da Costa Andrade, Direito Penal e modernas técnicas biomédicas, RDE 12 (1986), p. 124.
O crime de violação das leges artis: artigo 150º, nº 2.
O nº 2 do artigo 150º "pôs de pé uma incriminação nova: a criação de um perigo "para a vida" ou de "grave ofensa para o corpo ou para a saúde", como consequência de violação das leges artis.
Com a sua consagração, o legislador de 1998 quis assumidamente alargar o arsenal de meios punitivos dos ilícitos imputáveis aos médicos. Para além de responderem por ofensas corporais negligentes (art. 148º) e por Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários (art. 156º), os médicos passariam a responder também por um novo crime, que terá sido pensado como um crime de perigo concreto.
Não se afigura fácil determinar o âmbito de aplicação do preceito. Uma intervenção médico-cirúrgica levada a cabo com violação — e sobretudo com violação dolosa — das leges artis configura uma ofensa corporal típica. Como tal deve ser tratada, tendo, nomeadamente, em conta as possibilidades de justificação a título, v. g., de consentimento. Na medida em que provoca um perigo para a vida o facto é já punido pelo artigo 144º al. d) face ao qual o nº 2 do art. 150º parece emergir como norma subsidiária. Só na parte em que provoca um perigo para o corpo ou para a saúde terá o preceito conteúdo normativo próprio e novo. Neste domínio específico o preceito repõe de algum modo — mas agora exclusivamente para os médicos — o crime de ofensas corporais como dolo de perigo que o art. 144º do Código Penal de 1982 previa como crime comum." Manuel da Costa Andrade, Conimbricense, p. 312.
O artigo 150º, nº 2, pune as intervenções médicas com violação das leges artis que não sejam graves ao ponto de excluir a própria finalidade terapêutica e de impossibilitar a parcial recondução da conduta do agente a uma intervenção médico-cirúrgica, nos termos do artigo 150º, nº 1. Por um lado, o desrespeito das leges artis pode atingir tal gravidade que, na realidade, exclui toda a finalidade terapêutica ou — o que é o mesmo —converte-a num móbil longínquo e enfraquecido, que, inelutavelmente, coabita com um dolo necessário ou eventual de dano ou de perigo para a integridade física ou para a vida do paciente. A favor desta conclusão aponta o próprio art. 150º, nº 2, ao estabelecer que a violação das leges artis deve ser compatível com a finalidade terapêutica. Por outro, a gravidade da inobservância das regras da medicina pode inviabilizar qualquer identificação — ainda que só parcial — da actuação do agente com uma intervenção médico-cirúrgica, impondo antes a sua qualificação em bloco como uma lesão típica da integridade física do doente. Teresa Quintela de Brito, RPCC 12 (2002), p. 379.
CASO nº 2 -  Recusa de médico, omissão de auxílio. Homicídio negligente.
 A, médico, na urgência do hospital em que habitualmente presta serviço, alertado a certa altura para o estado dum doente limitou-se a responder que por ele lhe dava alta, na sequência do que o doente foi levado para a sala de espera onde viria a falecer.
O Supremo (acórdão de 6 de Março de 1991) entendeu ter o A cometido o crime do artigo 138º, nº 1, alínea b), agravado pelo resultado morte, a conjugar com o actual art. 284º.
   Teresa Quintela de Brito -  entende que neste caso é impossível responsabilizar o A por um crime de abandono (como fez o Supremo) por ser necessário um dolo de perigo para a vida da vítima (cf. o artigo 138º, nº 1), ou de recusa de médico (artigo 284º), “por lhe faltar o dolo exigido pelos respectivos tipos, já que carece da consciência do perigo em que e encontrava o paciente”.
O A também não realizou o crime de omissão de auxílio (artigo 200º) por lhe faltar o dolo correspondente. Uma vez que o A afirmou que por ele dava alta àquele paciente, faltava-lhe a consciência do perigo em que este se encontrava. O A, por força do contrato que o liga ao hospital, “tinha o dever jurídico de garante da vida e da integridade física dos pacientes que ocorrem àquele hospital”, cabendo-lhe impedir a sua morte ou uma lesão da saúde. O A “não o fez negligentemente”, apesar de alertado, pelo que terá cometido um crime negligente por omissão (artigo 10º e 137º)..

 

III. Crime de ofensa à integridade física. Homicídio voluntário. Crimes de resultado. Crimes de resultado de dano. Crimes de resultado de perigo. Negligência. Omissão.

CASO nº 1
 A vivia na mesma casa com a sua companheira , B, mas tinham discussões frequentes. Certo dia, por volta das 19 horas, quando A se encontrava já "bem bebido", ambos voltaram a desentender-se e B, com medo do companheiro, acabou por se refugiar na casa de banho. A, porém, seguiu-a e obrigou-a, à força, a meter-se num cubículo, provido de uma porta metálica, que ali servia para guardar objectos de limpeza e onde estava instalado um  aparelho, ligado ao sistema de aquecimento central do prédio, em pleno funcionamento, por ser inverno. Quase se poderia dizer que B ficou emparedada, sem se poder mexer e, pior ainda, com partes do corpo encostadas ao aquecedor. A fechou a porta do cubículo, impedindo B de se libertar, e do exterior pôs o termóstato a 80 graus. Logo a seguir, deitou-se e adormeceu. Como A se encontrava alcoolizado e as coisas se desenrolaram como que num instante, A nem chegou a dar-se conta que com a sua descrita conduta punha a vida de B em perigo. Por volta das 7 horas da manhã seguinte, A levantou-se e foi espreitar B, que continuava imobilizada, no sítio onde A a obrigara a recolher-se. B já não gritava, como fizera nos primeiros momentos em que ficou presa. Por causa do calor libertado pelo aquecedor, B estava já nessa altura ferida de morte. Sem se importar com B, A saiu de casa, certo de que a companheira iria morrer. Foi só por volta das 10 e meia que B foi finalmente tirada da terrível situação em que se encontrava, depois de um vizinho, que de algo se apercebera, ter pedido insistentemente a A que o acompanhasse a casa e o ajudasse a libertar a mulher. B acabou por morrer dois dias depois devido às lesões mortais sofridas no contacto do seu corpo com o aparelho de calefacção.
Punibilidade de A ?
Caminhos para a solução.
Vamos dividir a matéria de facto em duas partes.
Na primeira, apreciaremos o comportamento activo de A na tarde do primeiro dia. O que especialmente haverá aí a destacar é o facto de, encontrando-se A alcoolizado e tudo ter acontecido num curto lapso de tempo, não ter este representado o perigo de a sua actuação poder provocar a morte da mulher/companheira.
Na segunda parte analisaremos o comportamento omissivo de A na manhã do dia seguinte.

O confinamento de B no cubículo.

Crime de homicídio voluntário (artigo 131º)?

A reteve B no cubículo, donde esta não pôde libertar-se, em termos de o contacto do corpo com o sistema de aquecimento a 80 graus centígrados lhe provocar lesões de tal modo graves que a morte acabou sendo inevitável.
 A descrita actuação de A foi a causa directa e necessária da morte de B.
 Verifica-se o nexo de causalidade, mas será de excluir o dolo homicida que ou não pôde ser provado ou não chegou a existir. Certo é que, ao tempo da acção, A não tinha a consciência do risco para a vida de B e das possíveis consequências da sua actuação, faltando assim o elemento intelectual do dolo, pelo que também se não chegará ao seu lado volitivo.

2. Crime de exposição ou abandono (artigo 138º, nºs 1, b), e 3, b) ?

No artigo 138º desenha-se um crime de perigo singular (por oposição a perigo comum): é desde logo evidente que só uma pessoa — a pessoa que é exposta ou abandonada — pode ser posta em perigo, que só esta é objecto do perigo.
Trata-se, porém, de um crime de perigo concreto: com a sua actuação, o agente põe em perigo a vida de outra pessoa.
Na alínea b ), que aqui nos interessa, a estrutura típica assenta numa actividade delineada sobre a violação de deveres específicos e um resultado autónomo que se tem de relacionar com esses deveres ([1]): "Quem colocar em perigo a vida de outra pessoa, abandonando-a sem defesa, sempre que ao agente coubesse o dever de a guardar, vigiar ou assistir...".
No plano subjectivo, tem que haver dolo quanto à situação de exposição ou abandono. O próprio perigo tem de ser objecto do dolo (ou, pelo menos, tem de envolver-se na referência subjectiva do agente), pois é um elemento do tipo de ilícito.
É aqui que se dão divergências doutrinárias de algum vulto. ([2]). No artigo 138º, enquanto crime de perigo concreto, o perigo desempenha a função de “evento”. Trata-se então de um crime de resultado, em que o resultado causado pela acção é a situação de perigo para um concreto bem jurídico, de perigo para a vida de outra pessoa. À semelhança do que sucede nos crimes materiais de lesão, o destacamento do evento é uma exigência normativa no âmbito destes crimes, dos crimes materiais de perigo. A imputação objectiva deve obedecer a regras comuns às que vigoram nos crimes materiais de dano: ao relacionamento entre a conduta do agente e a situação perigosa são aplicáveis pelo menos os critérios restritivos da causalidade adequada. (Cf. Rui Carlos Pereira, O Dolo de Perigo, p. 97) ([3]).
No caso em apreço, a vítima foi colocada em situação de não se poder defender, ficando incapaz de, unicamente com as próprias forças, se proteger dos perigos que ameaçavam a sua vida. Esses perigos resultavam do aquecimento àquela temperatura de 80 graus, a que a mulher, confinada em espaço sobremaneira exíguo, não podia escapar-se, ficando dependente de uma outra pessoa que a ajudasse de fora. Consequência desse abandono é que a vítima foi deixada em perigo de vida. O abandono é de imputar a A, sobre quem impendia um especial dever de assistir B, posto que foi A quem, com a sua conduta anterior (ingerência), a colocou em perigo.
  A norma, como se disse, exige que o perigo se concretize. O perigo concreto caracteriza-se por uma situação crítica aguda que tende para a produção do resultado danoso.
É costume dizer-se que a segurança de um determinado bem jurídico tem de ser tão fortemente afectada que a circunstância de se dar ou não a lesão do bem jurídico depende inteiramente do acaso.
A noção de acaso ficará então envolvida com a impossibilidade de dominar o desenvolvimento do perigo. Na nossa hipótese, porém, tendo-se realizado a lesão da vida (B morreu), também não há dúvida que o perigo para a vida de B se concretizou. Acontece no entanto que o dolo de A tem que incidir não só sobre a situação de abandono, mas igualmente sobre a produção de um perigo para a vida — e só assim é que a sua actuação, para além de ilícita, lhe poderá ser censurada.
Não deixa de ser duvidoso que A tivesse actuado com dolo de perigo. A conhecia certamente as circunstâncias que envolviam a perigosidade da sua actuação, uma vez que conscientemente manipulou o termóstato, que por se situar no exterior do cubículo ficava fora do  alcance da vítima. Sabia, por isso mesmo, que esta ficaria exposta, de forma intensa, aos efeitos do aparelho de calefacção.
 Mas A, como se viu, nem sequer se consciencializou de que daí poderia advir um perigo para a vida de B.  Falta assim, ao nível do agente, a representação da possibilidade próxima da produção dum correspondente dano da vida. Na ausência deste elemento subjectivo, o crime de exposição ou abandono (artigo 138º) não se verifica. Também por isso não é lícito aludir a qualquer agravação da pena pelo evento mortal imputável à situação de risco criada por A.

3. Ofensa à integridade física grave (artigo 144º, d) ?

Com o contacto, impossível de evitar, do corpo de B com o aparelho de calefacção, produziram-se lesões que, como resultado, podem ser objectivamente imputadas à conduta de A (artigo 143º, nº 1). Não haverá porém elementos decisivos no sentido de que, a acompanhar uma séria lesão da capacidade de movimentação de uma parte do corpo (aspecto funcional), B ficou impossibilitada de utilizar o seu corpo, no sentido do artigo 144º, b), última parte.
Mas a questão que especialmente nos interessa é se no caso convergem os elementos, objectivos e subjectivos, do crime de perigo concreto (crime de perigo singular) da correspondente alínea d): "Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a provocar-lhe perigo para a vida...".
Como já se observou, as lesões produzidas podem ser objectivamente imputadas a A. Ignoramos em que altura se terão produzido perturbações de funções orgânicas vitais para B, mas uma coisa é certa: "só existe perigo para a vida quando os sintomas apresentados pelo ofendido, segundo a experiência médica de casos similares, forem susceptíveis de determinar com elevado grau de probabilidade e iminência a sua morte".
Como escreve Paula Ribeiro de Faria, Conimbricense, I, p. 232, "não é suficiente a mera possibilidade de um desenlace fatal para se poder falar de perigo para a vida, ainda que seja suficiente que esse perigo só perdure por um curto espaço de tempo".
Ao contrário do dano, o perigo não se olha ao espelho, porque não há nada para ver — o perigo não se revê no próprio objecto típico. Ameaça-o todavia de lesão pelo menos durante um instante. Nisto consiste a sua concretização.
O perigo para a vida referido na alínea d) do art. 144.º deve ser entendido em concreto, fundado no aparecimento de sinais e sintomas de morte próxima, relacionados directamente com a lesão resultante da ofensa, e não em abstracto, designadamente medido através da probabilidade estatística. Para que se verifique o crime do artigo 144º é necessária a existência de dolo não só quanto à ofensa corporal em si como também quanto ao resultado. Acórdão do STJ de 17 de Maio de 2000, Proc. n.º 150/2000 - 3.ª Secção.
No que toca à vertente subjectiva, a aplicação desta alínea supõe que o agente conheça as circunstâncias que tornam o comportamento perigoso na perspectiva da protecção da vida da vítima. E assim sendo, A teve certamente a possibilidade de saber que a sua conduta era perigosa para a vida de B.
Para acabar, decisivo é que atentemos em que o resultado morte veio a concretizar-se, e isso basta — supondo que convergem os necessários elementos — para "transferir" o caso para o âmbito do artigo 145º (agravação pelo resultado).
 Em princípio, o artigo 144º d) só intervirá se a morte não tiver ocorrido.

4. Ofensa ao corpo ou à saúde de outra pessoa com agravação pelo resultado morte (artigo 145º) ?

Vamos ver se no caso estão presentes os elementos do artigo 145º. A qualificação pelo resultado exige desde logo o nexo de causalidade entre a lesão corporal dolosa e o evento mortal. No plano objectivo, o evento agravante tem de ser em concreto consequência adequada do crime fundamental de ofensa à integridade física, devendo averiguar-se se neste se continha um perigo típico de concretização do resultado morte
 Poderão não ser lineares as seguintes constelações de casos: a morte de "outra pessoa" ocorre por acidente; é devida ao comportamento de um terceiro (princípio da confiança); é devida ao comportamento da própria vítima (princípio da auto-responsabilização).
A agravação exige a imputação do evento ao agente sob os dois aspectos da imputação objectiva e da imputação subjectiva: artigo 18º do C.Penal.
 A par do desvalor do resultado (no exemplo, a morte), "terá que se afirmar um desvalor da acção que se traduz na previsibilidade subjectiva e na consequente violação de um dever objectivo de cuidado (negligência) ". Cf. Paula Ribeiro de Faria, p. 245. A previsibilidade deverá incluir também o específico nexo de risco, mas basta que o agente se encontre em posição de saber que a lesão corporal que provoca era tipicamente idónea para arrastar consigo o evento agravante.
No caso de A, que se encontrava embriagado, não é de crer que estivesse consciente de que as coisas iriam desembocar na morte da vítima — a negligência, a existir, será inconsciente.
Segundo o artigo 15º, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, conforme as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, não chega sequer a representar a possibilidade da realização típica (negligência inconsciente).
Podemos, no entanto, perguntar-nos, acompanhando ainda o artigo 15º, enquanto se dirige a um dever subjectivo, situado ao nível da culpa (ao referir o cuidado a que o agente está obrigado e de que é capaz) se A estava em condições de atentar e reconhecer que B não podia escapar-se, por si só, da situação em que se encontrava, e que B ficaria exposta tanto tempo aos efeitos do calor. E mais: que B estava em contacto corporal com a fonte de aquecimento, de forma a poder concluir que a morte nessas condições era possível.
Cremos no entanto que bastará para afirmar a negligência inconsciente o facto de sabermos que A era habitual utilizador do aquecimento e que bem podia ter previsto o desenlace mortal, mesmo sem um contacto intenso do corpo com a fonte de calor, mas só por efeito da temperatura a 80º graus, estando a vítima confinada, pela sua actuação, no pequeno cubículo, sem poder libertar-se nem accionar o termóstato.
A cometeu, por isso, um crime do artigo 145º, tudo apontando para a penalidade da alínea b ) do nº 1.

5. Sequestro com privação da liberdade de que resulta a morte da vítima (artigo 158º, nºs 1, 2, b), e 3) ?

No sequestro (artigo 158º), o sujeito passivo é tolhido na sua determinação de mudar de lugar, por ter sido detido ou preso, a arbítrio do delinquente.
 Impede-se-lhe a liberdade de movimentos. Qualquer meio é possível para impedir essa potencial liberdade de movimentos que o artigo 158º protege.
 Pode ser o uso da força, como fez A, ao empurrar a B para dentro do cubículo, fechando-lhe a porta em seguida. Tal como se fez para o artigo 145º, a agravação pelo resultado requer aqui os mesmos requisitos e o mesmo cuidado. A previsibilidade deverá incluir igualmente o específico nexo de risco, sendo certo que não se poderá negar a perigosidade da conduta que colocou a vítima em situação de não poder valer-se a si própria — as consequências típicas conducentes ao evento mortal envolvem-se aqui no abandono da vítima à sua sorte e nas próprias características do local, onde esta foi confinada contra a sua vontade, e propositadamente posto à temperatura de 80º.
 No que toca à aplicação do artigo 18º e à questão da negligência renova-se o que se disse a propósito do artigo 145º. A cometeu um crime do artigo 158º, nºs 1, 2, b), e 3.

Conclusão.

Como punir A ?
Os problemas gerados pelo concurso entre o crime de ofensa ao corpo ou à saúde de outra pessoa com agravação pelo resultado morte (artigo 145º) e o crime de sequestro com privação da liberdade de que resulta a morte da vítima (artigo 158º, nºs 1, 2, b ), e 3), decorrentes de uma mesma actuação de A, deverão resolver-se dando relevância à punição pelo sequestro de que resulta a morte da vítima e cuja moldura penal (pena de prisão de 3 a 15 anos) melhor tutela a situação.
 De resto, foi a privação da liberdade que deu azo às ofensas corporais e, por fim, à morte de B.  O sequestro, que é crime permanente,  na forma agravada é, assim, a que melhor se adapta ao desenho do caso e que melhor tutela a situação do ponto de vista penal.

Ofensa à integridade física por negligência.

Exemplo
 A, uma jovem dos seus 23 anos de idade, faz de baby-sitter de B, de 2 anos e meio de idade, em casa dos pais da criança. Por volta das cinco da tarde, A distrai-se com um programa de televisão e não impede que a criança caia da cama, para cima da qual tinha trepado também sem que A tivesse reparado. Na queda, a criança sofreu fractura da cabeça e por via dela acabou por morrer.
A baby-sitter encarregou-se de substituir os pais, que estão vinculados ao portador do bem jurídico por um vínculo natural. Ainda assim, a A assume deveres de garante para com a criança.
Consequência: crime de homicídio negligente por omissão dos artigos 10º e 137º.
Segundo o artigo 148º, nº 1, quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. Em comparação com o artigo 143, nº 1, ao recorte típico deste artigo 148º, nº 1, só acresce a comissão por negligência, o desvalor do resultado é o mesmo, num caso e noutro. O que separa os dois ilícitos é o desvalor da acção: o agente actua intencionalmente ou prevê a realização típica como consequência necessária da sua conduta ou conforma-se com essa realização (artigo 14º) — a menos que se trate de um simples erro de conduta (artigo 15º). Pode fazer-se o mesmo tipo de considerações a propósito do artigo 137º.
Numa boa parte dos casos, a negligência encontra-se associada a comportamentos humanos lícitos. Consideremos a condução automóvel, que, como outras actividades próprias das sociedades modernas —e como tal imprescindíveis— comportam riscos que, em certas ocasiões, nem mesmo com o maior cuidado se podem evitar. Põe-se em relação a tais actividades a questão da sua necessidade social ou da sua utilidade social e, por isso mesmo, o Direito aceita-as, não as proíbe, não obstante os perigos que lhes estão associados.
Os elementos decisivos são a violação do dever de cuidado e a previsibilidade do resultado, tanto no tráfego rodoviário como em muitas outras actividades: na indústria, no comércio e em actividades similares; na protecção de trabalhadores; nos tratamentos médicos; na vigilância de crianças; nas actividades venatórias; nas deslocações por água; na utilização de elevadores; nas competições desportivas; no manejo de armas; etc.
São hoje em número quase inabarcável as decisões sobre a velocidade em geral prescrita na circulação automóvel, particularizando-se casos de condução com mau tempo, em situações de invernia, ou com deficiente visibilidade; de acidentes por falta de segurança do próprio veículo; ou em cruzamentos de pouca visibilidade; de condução em estado de cansaço ou fadiga ou de condutor com pouca experiência; de encandeamento por outro veículo que circula em sentido contrário; de golpe de direcção na sequência da introdução de um insecto na cabine, etc.
Para a opinião dominante, a negligência é uma forma de conduta que reúne elementos de ilícito e de culpa.
Atendemos, no plano do ilícito típico, à violação do cuidado objectivo e à previsibilidade objectiva da realização típica —nos crimes negligentes de resultado não bastará, portanto, a simples causação do evento típico, por ex., a morte de uma pessoa.
A violação de um dever de cuidado é o eixo em torno do qual gira o conceito de negligência .
O dever objectivo de cuidado concretiza-se, em numerosos sectores da vida, através de regras de conduta (normas específicas, como as normas de trânsito —que são as mais frequentemente invocadas, em vista do desenvolvimento a que chegou a circulação automóvel—, regulamentos da construção civil, regras de conservação de edifícios, etc.) ou por regras de experiência, por ex., as leges artis de determinadas profissões ou grupos profissionais, como o dos médicos, engenheiros, etc. Pode aliás ter origem nas circunstâncias concretas do caso.
A causa das ofensas à integridade física deve assentar no comportamento do sujeito activo, sendo-lhe objectivamente imputável como “obra sua”. A jurisprudência opera normalmente com os critérios da causalidade adequada.
A teoria da adequação parte da teoria da equivalência das condições, na medida em que pressupõe uma condição do resultado que não se possa eliminar mentalmente, mas só a considera causal se for adequada para produzir o resultado segundo a experiência geral. Não está em causa unicamente a conexão naturalística entre acção e resultado, mas também uma valoração jurídica. Excluem-se, consequentemente, os processos causais atípicos que só produzem o resultado típico devido a um encadeamento extraordinário e improvável de circunstâncias.
Deste modo, não haverá realização causal (adequada) se a produção do resultado depender de uma série completamente inusitada e improvável de circunstâncias com as quais, segundo a experiência da vida diária, não se poderia contar.
Podemos, aliás, recorrer a outros critérios de imputação objectiva, associados à teoria do risco.
Se A ao conduzir o seu automóvel toca ligeiramente em B, produzindo-lhe pouco mais do que um arranhão e este vem a morrer por ser hemofílico, não lhe poderá ser imputada a morte mas só ofensas corporais por negligência — faltará o nexo de risco.
Pressupõe-se, por outro lado, uma determinada conexão de ilicitude: não basta para a imputação de um evento a alguém que o resultado tenha surgido em consequência da conduta descuidada do agente, sendo ainda necessário que tenha sido precisamente em virtude do carácter ilícito dessa conduta que o resultado se verificou.
No plano da culpa, atendemos, como já se disse, ao dever subjectivo de cuidado e à previsibilidade individual da realização típica. Para que exista culpa negligente é necessário que o agente possa, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que estava obrigado; deve portanto comprovar-se se o autor, de acordo com as suas qualidades e capacidade individual, estava em condições de satisfazer as correspondentes exigências objectivas. Para tanto, deve ter-se em atenção a sua inteligência, formação, experiência de vida; deve olhar-se também às especialidades da situação em que se actua (medo, perturbação, fadiga).
Se o agente, por uma deficiência mental ou física, ao tempo da sua actuação não estava em condições de corresponder às exigências de cuidado, não poderá ser censurado pela sua conduta.
 Ao tipo de culpa dos crimes negligentes pertence assim a previsibilidade individual (subjectiva). Quer dizer: a previsibilidade do resultado típico e do processo causal nos seus elementos essenciais deverá verificar-se não só no plano objectivo, mas igualmente no plano subjectivo, de acordo com a capacidade individual do agente.
Na negligência inconsciente o agente não chega sequer a representar a possibilidade de realização do facto, ficando excluída a previsibilidade individual, especialmente por falhas de inteligência ou de experiência. Na negligência consciente o agente representa sempre como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime.




([1]) Na descrição típica da exposição ou abandono (artigo 138º) alargou-se em 1998 a âmbito da incriminação a todos os casos em que o agente deixe a vítima indefesa, desde que sobre ela recaia o dever de a guardar, vigiar ou assistir. É da violação deste dever — e não da debilidade da vítima — que resulta o carácter desvalioso e censurável da conduta. Assim, praticará o crime, por exemplo, o montanhista que, guiando uma expedição, abandonar um turista, criando um perigo para a sua vida.
([2]) Discute-se se é configurável um dolo de perigo como um momento de dolo eventual (em que o elemento volitivo do dolo resulta da conformação do agente com o perigo). Diz-se que, se o agente se conforma com a possibilidade de se verificar o perigo, está a conformar-se com a possibilidade de uma possibilidade e, desse modo, com a lesão... e então no nosso caso haveria homicídio voluntário. Quando alguém aceita o risco está a conformar-se com o dano... Maia Gonçalves, sensível à dificuldade da questão, diz que se o agente, podendo prever o resultado, actuou com inconsideração, confiando em que ele se não verificava, ou se não se conformou com a sua verificação, terá praticado este crime. Se pelo contrário ele actuou conformando-se com o resultado, que previra, haverá dolo eventual e, consequentemente, não se verificará este crime, mas o de homicídio voluntário. Mas boa parte da doutrina aceita que é possível representar o perigo, pretendê-lo como tal, para conseguir um objectivo, mas não aceitar o dano, e até nem o representar (cf. Rui Carlos Pereira; Silva Dias).
([3]) Cf., porém, Faria Costa, O perigo, p. 511: por mais maleabilidade ou elasticidade que se empreste à causalidade adequada, dificilmente esta permite que se consiga estabelecer um juízo de causação entre a acção e, por ex., um resultado de perigo. O perigo deve ou tem de ser objectivamente imputado ao agente. Todavia, o perigo não é um estádio que pertença ao mundo do ser causal. O perigo é intencional e estruturalmente um categoria normativa, sem que com isso perca a qualidade de se poder apreender de maneira objectivável.
Nesta perspectiva, por conseguinte, o perigo não é tanto causado pelo agente, antes o perigo é “obra” intencionada do agente, não se concretiza, como acontece no dano/violação, em uma alteração do real verdadeiro, configura antes uma situação com um pequeno, quantas vezes pequeníssimo arco de tempo.

0 comentários:

Enviar um comentário