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quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Questões gerais de PENAL I



                                             A Construção da Doutrina do Crime
1. A construção dogmática da doutrina do crime (do facto punível)
O crime é um conceito que resulta da aplicação de um conjunto de qualificações a um comportamento humano.
Para que haja crime é necessário que haja um comportamento humano, ou seja, é necessário que haja uma acção. Assim, para haver crime o homem tem que agir, tem que fazer alguma coisa no mundo exterior, pois enquanto tudo se passa no mundo interior (do pensamento) não há crime. Até há um velho ditado latino que diz que ninguém sofre uma pena por um pensamento. Ao nível da religião já conta o pensamento, mas a nível jurídico não.
O Direito Penal é o direito do facto e não da pessoa. Punem-se os factos e não a pessoa.
Mas não é a pessoa que é punida? A pessoa é punida pelo que faz, portanto, tem que haver uma acção humana (fala-se em acção humana porque também a natureza pode, por exemplo, matar – através de um raio ou de uma avalancha – só que isto não releva para o Direito Penal, pois a acção tem que ser humana).
Mas, nem todas as acções humanas são penalmente relevantes, isto porque há acções que não são típicas.
Assim, a segunda categoria é a tipicidade (a título de exemplo: matar pode não ser crime, pois a pessoa pode matar-se, sendo que o suicídio é um acto atípico em Portugal; na Alemanha quem se suicidar comete um acto típico, só que não é punido por razões óbvias. O furto é uma actuação típica. Passear na rua não é nenhuma acção típica, porque não há nenhuma norma penal que proíba passear na rua).
No entanto, há outras acções que se praticam que embora não sendo ilícitas, não constituem crime, pois falta-lhes a tipicidade (a título de exemplo: quando se pratica uma contra-ordenação).
Mas, podemos realizar acções típicas e elas não serem ilícitas (a título de exemplo: quando se mata em legítima defesa). Assim, não são ilícitas aquelas acções praticadas a coberto de uma causa de justificação.
Assim, a terceira categoria é a ilicitude. Ilicitude é a qualidade de um comportamento típico não justificado; sendo as causas de justificação, a título de exemplo, a legítima defesa, o direito de necessidade, o consentimento do ofendido, etc.
No entanto, todos nós podemos praticar um facto típico e ilícito, e, no entanto, este não constituir crime, pois para que haja crime é necessário que o facto seja culposo.
Portanto, a quarta categoria é a culpa; sendo que, não haverá culpa nos seguintes casos:
- No caso de o agente ser inimputável;
- No caso de o agente ter agido sem dolo ou negligência;
- Quando estamos perante um caso de inexigibilidade.
Por fim, ainda há uma quinta categoria que se chama punibilidade ou condições objectivas de punibilidade. Assim, um agente pode cometer um crime mas não ser punido devido a algumas condições objectivas posteriores ao crime (a título de exemplo: quando um agente comete um crime no estrangeiro de modo a que de acordo com os artigos 4.º, 5.º e 6.º do Código Penal ele não possa ser punido não há condições objectivas de punibilidade. No caso dos crimes particulares em que o ofendido não faz queixa, também não há condições objectivas de punibilidade).
Punibilidade
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Culpa Ilicitude Tipicidade Acção
Em seguida iremos determinar a relação entre estas categorias e o seu conteúdo ao longo dos tempos.
2. Evolução histórica da moderna doutrina geral do facto punível – Modelos de Construção da Infracção Criminal
Todas as escolas que se vai analisar, trabalham com os elementos (acção;
tipicidade, ilicitude, e culpa) que acabamos de verificar.
Com sito, há 5 modelos de construção da infracção criminal, sendo:
- Escola Moderna ou Positivismo-causalista;
- Escola Neokantiana, Escola do Sudoeste alemão ou Escola de Baden;
- Ordinalismo Concreto (é uma contra-escola);
- Escola Finalista (ôntico-fenomenológica) da acção;
- Escola Teleológica-racional.
Estas escolas sucederam-se no tempo por esta ordem, logo, não devemos olhar para elas em termos de optarmos por uma ou por outra. Assim, devemos considerar cada uma delas ultrapassadas, mas cada uma delas realizou progressos. O que se vai fazer é dar uma perspectiva histórica.
2.1 Escola Moderna ou Positivismo Causalista
O ambiente cultural do século XIX está ligado ao triunfo do positivismo; tendo sido o século do progresso das ciências físicas, químicas e matemáticas. Isto levou o homem a pensar que tudo era susceptível de explicação desde que se usassem os métodos das ciências matemáticas.
Fora o período em que se rejeitou o metafísico. Tudo o que existe é redutível a matéria; tudo o que não for redutível a matéria ou a energia não existe. Tudo na natureza é explicável e decomponível a elementos mesuráveis, observáveis. O grande teorizador deste modelo foi Augusto Conte.
Fora também nesta altura que se descobriu a Psicologia como ciência experimental.
Acção
Para esta escola a acção era uma modificação do mundo exterior (o mundo é exterior em relação à pessoa que age) ligada casualmente à vontade. Esta modificação do mundo exterior era determinada por um movimento corporal.
A acção era algo quantificável e mensurável.
Tipo
O tipo é uma acção descrita numa lei penal. Acção essa que é descrita em termos puramente objectivos e valorativamente neutros. Não havia elementos subjectivos nem elementos de valoração.
Ilicitude
Ilicitude é já um juízo de relação. Esta escola reconduzia a ilicitude à mais pura constatação de que a conduta era contrária à ordem jurídica. A ilicitude era anti- juricidade, anti-normatividade.A ilicitude era a pura relação de contradição entre o comportamento e a ordem jurídica.
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Portanto, a ilicitude era um conceito puramente formal. Culpa
Quanto ao conceito de culpa, volta-se ao domínio do observável e quantificável.
A culpa é algo psicológico que se analisa pela observação da tensão existente entre o agente e o facto. A culpa é o vínculo psicológico entre o agente e o facto.
Relativamente à culpa, existem duas espécies de culpa: o dolo e a negligência, que constituem vínculos psicológicos diferentes.
Conclusões:
Esta doutrina tem um mérito, pois foi ela quem lançou a construção do crime com estas categorias. Posto isto, importa verificar as críticas a esta escola.
Não podemos aceitar o conceito de crime, porque este conceito não apanha os crimes de comissão, visto que nestes não há uma ligação causal à vontade. Por outro lado, esta escola não permitia a figura do concurso ideal de crimes (quando com a mesma acção se realizam vários tipos de crimes – a título de exemplo: com uma granada pode-se matar uma pessoa, ferir outra e danificar coisas).
Ao contrário do que esta escola afirma, o dolo e a negligência não são espécies de culpa, são pressupostos da culpa. A culpa é um juízo de censura dirigido ao agente.
2.2 Escola Neokantiana, Escola do sudoeste ou Escola de Baden
O ambiente cultural já não é o do positivismo, isto porque na Europa há uma época de grande reacção contra o positivismo – fenómeno que ficou conhecido como a contraposição entre o mundo da cultura e o mundo da natureza. Não é possível homogeneizar o real. Há dois grandes mundos: o mundo da cultura ou do espírito e explicamos a natureza. O mundo da cultura e dos valores é construído pelos homens. O Direito é uma realidade do mundo cultural, portanto, nunca podemos fazer uma construção do conceito de crime com conceitos do mundo da natureza, antes temos que fazer por recurso a conceitos com densidade cultural. Isto tudo era grandemente influenciado pela filosofia Kantiana.
Acção
Para esta escola a acção é a negação de valores pelo homem (a título de exemplo:
a acção de matar é a acção de negação de valores da vida humana).
Tipo
Constitui o tipo a negação de valores jurídicos e a estes valores jurídicos chamam- se bens jurídicos. A acção típica implica danosidade social, porque implica a lesão de bens jurídicos.
Para esta escola, no tipo não há só elementos objectivos (descritivos) mas há também elementos subjectivos e valorativos.
A título de exemplo:
“Matar” – conceito descritivo;
“Bons costumes” – conceito valorativo; “Coisa alheia” – conceito valorativo; “Valor estético” – conceito valorativo;
“Furto” – no conceito de furto é necessária a intenção de se apropriar da coisa
(conceito subjectivo).
Vejamos um exemplo de escola: um homem apalpou o seio de uma mulher. O que é que se conclui? Tudo depende do elemento subjectivo ou da intenção, pois
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poderíamos estar perante um acto médico ou poderíamos estar perante um acto contra a integridade da mulher ou até poderia ser um acto com benefício para ambos.
Ilicitude
A ilicitude é um juízo de danosidade social (ideia de um comportamento que implicava um dano para a sociedade) considerada intolerável pela ordem jurídica. A ilicitude, para além da dimensão formal, ganha uma dimensão material.
A ilicitude formal é a contrariedade entre um comportamento e a ordem jurídica.
A ilicitude material é algo que é susceptível de ser graduado (a título de exemplo: pisar as flores de um jardim é menos ilícito do que derrubar a torre dos Jerónimos). A ilicitude material foi introduzida por esta escola. A dimensão formal é importante, mas ela não basta.
Esta escola descobriu o direito de necessidade, que é uma causa de justificação.
Culpa
Para estes a culpa não é um vínculo psicológico, como afirmava a concepção naturalística. A culpa é um juízo de valor, é censura ético-jurídica (não é uma censura moral, nem estética) dirigida ao agente. Assim, não censuramos o pecado, porque não visamos salvar as almas, nem censuramos o feio porque não visamos fazer coisas bonitas. Claro que não há culpa se não houver ilícito, porque a culpa é a censura pela prática do facto criminalmente ilícito.
A culpa é um juízo unitário, não pode ter graus diferentes. Só que, para que haja culpa é necessário que se verifiquem alguns pressupostos, sendo estes os seguintes:
- Imputabilidade;
- Dolo ou negligência;
- Exigibilidade1;
Conclusões:
O mérito desta escola foi tornar possível a figura do direito de necessidade e possibilitou a distinção entre direito de necessidade objectivo e subjectivo.
Foi esta escola que trouxe o conceito de concurso ideal de crimes, isto é, o agente com uma mesma acção pode cometer vários crimes (a título de exemplo: se o professor decidisse insultar alto, poderia ofender a honra de uns e poderia ofender a integridade física de outros). Importa agora, verificar as críticas a esta escola.
Os fundamentos ideológicos e filosóficos desta escola devem-se considerar em lagar medida ultrapassados, sobretudo na medida em que a essência do direito se não considera mais compatível com a profunda cisão entre o mundo do ser e o mundo do dever-ser que as correntes neokantianas ainda supunham.
Mas, a crítica dirigiu-se sobretudo ao conceito mecânico causalista da acção de que a escola neoclássica continuava a partir, esquecendo não ser minimamente aí que reside a essência do actuar humano.
2.3 Ordinalismo concreto
1 Fala-se de exigibilidade ou inexigibilidade nos casos em que o agente actue num cenário exterior tal que não é possível exigir ao agente outro comportamento (a título de exemplo: um médico a quem tinha sido retirada a licença de automóvel; sendo que conduzir automóvel constituía crime, foi acordado a altas horas da madrugada para uma emergência e pega no carro para socorrer esta emergência, sendo apanhado pela polícia. Será que neste caso deve ser censurado este homem? Não, por inexigibilidade).
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O ordinalismo concreto é uma contra-escola. Esta contra-escola existiu durante a ascensão e triunfo do nazismo. Esta contra-escola serviu interesses do nazismo e este depois veio adoptá-la.
Esta doutrina contrapõe um pensamento analítico (que recusa) a um pensamento intuitivo (que adopta).
A doutrina penal, para estes, não deve fazer a distinção entre a acção, a tipicidade, a ilicitude e a culpa. Assim, o juiz deve, perante um caso, fazer um juízo intuitivo ou emocional.
Portanto esta técnica (acção, tipicidade, ilicitude, culpa) que protege os direitos, liberdades e garantias era refutada, sendo que os nazis diziam que esta técnica é uma ciência burguesa que não interessa ao nazismo.
2.4 Escola Finalista (ôntico-fenomenológica) da acção
Esta época caracteriza-se do ponto de vista cultural, filosófico, por ultrapassar a visão Neokantiana do mundo e da vida, que assentava na contraposição entre o ser e os valores.
Welzel é influenciado pela filosofia existencialista hégeliana – dentro disto foi influenciado pela Fenomenologia Existencial (Hartmann).
Não se deve estabelecer uma diferença entre ser e valores, pois a realidade comporta já valores – estes valores são emanentes ao ser. O que se passa é que há várias camadas de realidade. Há várias camadas de ser. Todo o ser incorpora já valores, mas os valores de uma camada são diferentes dos valores de outras camadas, isto é, o ser humano contrapõe-se ao ser naturalístico. Portanto, o direito tem que estar atento aos valores que o ser incorpora. O direito como se dirige ao homem, tem que estar atento ao modo de ser humano. É preciso o direito ver as constantes antropológicas (modo de ser humano).
Welzel identifica a natureza das coisas humanas com a finalidade. O homem não é um ser causal, logo, o homem não age por causa de, o homem age para. O homem é um ser final, ou seja, quando age antecipa fins e pré-ordena as coisas para atingir esses fins.
A categoria ôntica, isto é, ontológica, do ser humano é a categoria da finalidade e o direito não pode desatender esta natureza das coisas humanas.
A acção humana é uma acção pré-modelar final – antecipa os fins e pré-ordena as coisas para os atingir.
Acção
A acção é a pré-determinação final de um processo causal. O homem quando age pré-determina um processo causal.
Welzel diz que se a acção é a finalidade, então o dolo (que as outras doutrinas colocavam na culpa) é colocado no tipo e no ilícito e não em sede de culpa.
Tipo
O tipo passa a conter também um irredutível momento subjectivo. Assim temos: tipo subjectivo; e, tipo objectivo. Vejamos o seguinte exemplo: “A mata B”; quem matar outra pessoa é punido… - tipo objectivo; dolo ou negligência – tipo subjectivo.
O tipo tem sempre um lado subjectivo; assim, há sempre um elemento subjectivo e um elemento objectivo.
Ilicitude
O juízo de ilicitude vai recair sobre um tipo que já tem elementos subjectivos, logo, a ilicitude tem que obedecer a estes elementos. Há uma mudança na ilicitude –
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relevância do desvalor de acção. Exemplo de desvalor de acção: querer matar uma pessoa;
Exemplo de desvalor de resultado: matar uma pessoa; Exemplo de valor acção: fazer uma grande jogada; Exemplo de valor de resultado: marcar um golo.
Para o Finalismo, o desvalor de acção era mais importante do que o desvalor de resultado.
Depois de Welzel vieram finalistas extremados que até defenderam que só havia desvalor de acção. Para Welzel era tão importante o desvalor de acção como o desvalor de resultado. Daí que até se chame a esta a doutrina de doutrina do ilícito pessoal.
Culpa
A culpa é um juízo unitário, porque o dolo e a negligência são elementos do tipo e do ilícito. Para a culpa fica a imputabilidade e as causas de exclusão do ilícito.
A culpa é um puro juízo de censura. A culpa valora o objecto e não o objecto da valoração.
A esta escola apontam-se os seguintes méritos:
- A definição de negligência como dever objectivo de cuidado;
- O regime do erro;
- A distinção entre tipo objectivo e subjectivo.
2.5 Escola Teleológica-racional
Esta contrapõe-se ao Finalismo em vários aspectos. A grande diferença é que vamos determinar o sentido e alcance das categorias do crime, não pela sua estrutura ontológica, mas pela sua função. Será em função dessa função que procuraremos determinar o seu conteúdo e a sua localização.
Vamos partir da compreensão do Direito Penal como um sistema de protecção de bens jurídicos, daí que a ilicitude não se resuma a um desvalor de acção. O protótipo do crime não é um crime tentado, mas sim um crime consumado, ou seja, o crime não é só um desvalor de acção, mas também é um desvalor de resultado.
Posto isto, coloca-se a questão se saber se vale a pena começar ou não com o conceito de acção? A esta questão se responde negativamente; devendo logo começar com o conceito de tipo. Aquilo que nos interessa no Direito Penal não é um conceito categorial de acção, mas sim o tipo; assim, as acções que estiverem no tipo é que nos interessam. Logo, vai-se trabalhar com acção típica.
O conceito de acção tem uma função de exclusão, quer dizer, pelo menos exclui do âmbito do penalmente relevante todos aqueles eventos que não sejam uma acção.
Se a acção é todos os comportamentos dirigidos ou dirigíveis pela vontade humana, ficarão fora do Direito Penal todos os comportamentos que não forem dirigidos ou dirigíveis pela vontade humana (a título de exemplo: um raio; pôr uma pistola na mão de uma pessoa e pressionar-lhe o dedo até disparar).
Mas, este mesmo efeito útil pode ser extraído se começarmos no tipo. Portanto, será do tipo que vamos partir.
Em vez de uma grande modelo de infracção criminal deviam-se construir quatro grandes modelos de crime. A saber:
- Crime doloso de acção/crime doloso de omissão;
- Crime negligente de acção/crime negligente de omissão.
O crime normal é o chamado crime doloso de acção. Os crimes negligentes são manifestamente excepcionais (artigo 13.º).
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A regra é o crime ser doloso e se a lei não diz nada significa que só o dolo é punido.
Só há dois crimes em que a negligência é punida: o homicídio (artigo 137.º) e as ofensas corporais (artigo 148.º).
A punibilidade da omissão é também excepcional, isto porque, para o direito é muito mais grave lesar activamente um bem jurídico, do que omitir os comportamentos indispensáveis para conservar um bem jurídico.
O direito é mais uma ordem de proibições do que um imperativo de caridade, pois o direito não quer realizar a perfeição moral. No direito somos punidos pelo mal que fazemos e não pelo bem que evitamos.
Qual é a função do Tipo?
O Tipo tem uma função de garantia (é a função legada ao Princípio da legalidade
– “nullum crime sine lege”) – Tipo de Garantia. Tem ainda a função de identificar aqueles comportamentos socialmente danosos (significa que sacrifica bens jurídicos) e intoleráveis (o Direito Penal não cuida das coisa menores, cuida dos comportamentos intoleráveis – exemplos: roubar, matar, violar, etc.).
O Tipo tem elementos objectivos e elementos subjectivos (aqui constam não só os elementos de intenção, mas também o dolo e a negligência).
O primado na construção da infracção deve pertencer ao tipo ou ao ilícito?
O Professor Figueiredo Dias defende que o primado pertence ao ilícito e não ao Tipo. Mas, a doutrina maioritária e também o Professor Costa de Andrade dão a resposta contrária, defendendo que o primado pertence ao Tipo.
Aqui, o que está em causa é um problema categorial e não um problema pragmático. Matar um homem em legítima defesa é para o Direito Penal a mesma coisa que matar uma mosca? Se concluirmos que sim, o Tipo não tem autonomia; se concluirmos que não, então o tipo tem autonomia.
À primeira vista parece que é a mesma coisa, pois matar um homem em legítima defesa e matar uma mosca são comportamentos não ilícitos e não puníveis.
Mas, será mesmo assim? Entende-se que há uma diferença, pois matar um homem, mesmo em legítima defesa, é um acto socialmente danoso; enquanto que matar uma mosca é um acto neutro, irrelevante. Matar um homem em legítima defesa é uma catástrofe que a ordem jurídica tolera. Diz-se que tolerar é uma virtude, mas do ponto de vista ético não é uma virtude, antes é um peso que se suporta às costas, e a ordem jurídica bem gostaria que se evitassem certos homicídios em legítima defesa (exemplo: perante uma ameaça de agressão a ordem jurídica não impõe que uma pessoa fuja, pois este é um comportamento desonroso; assim, a ordem jurídica tolera que, neste caso, uma pessoa mate a outra em legítima defesa).
Em suma, a corrente maioritária diz que há: Tipo, Ilicitude e Culpa.
O Professor Figueiredo Dias defende que há tipo de ilícito, sendo este o comportamento que realiza o tipo legal de crime e não está justificado. Realiza-se através da concorrência dos tipos identificadores (ilicitude) e dos tipos incriminadores (tipo).
E o dolo e a negligência?
Há tipos de crimes onde o dolo pertence necessariamente ao Tipo e isso acontece sob forma tentada. Logo, se tem que ser elemento do Tipo nos crimes tentados, também tem que ser no crime consumado.
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Os crimes dolosos são punidos com pena mais grave do que os crimes por negligência, isto porque a culpa no dolo é diferente da culpa negligente. Isto significa que também na culpa temos que distinguir entre dolo e negligência.
Verifica-se uma espécie de desdobramento do dolo ou de dupla valoração do dolo. Dolo do Tipo é o conhecimento e a vontade de realização do tipo objectivo do
crime.
Dolo da Culpa é uma atitude de inimizade ou de cegueira perante os valores do direito. Quem actua com dolo actua sobrepondo os seus interesses aos valores protegidos pelo direito.
Pode haver dolo de Tipo sem haver dolo de Culpa? Pode, pois se eu mato em legítima defesa, eu actuo com dolo do Tipo, mas como o meu comportamento é lícito não há culpa dolosa, porque quem actua em legítima defesa não actua com inimizade perante os valores do direito.
Qual é a função da Culpa? No Direito Penal Teleológico-racional a função da Culpa é de limite da pena em nome da dignidade humana, isto porque o Direito Penal tem finalidades preventivas. Mas, estas finalidades preventivas não impõem um limite para a pena, pois estes limites têm que ser impostos por algo que venha de fora da prevenção e esse algo é a culpa. Daí que a Culpa não possa dissolver-se em conceitos de proporcionalidade ou de prevenção, isto porque a culpa é o contrário da prevenção.
A prevenção fundamenta a pena (princípio da unilateralidade da culpa). A Culpa limita a pena (a culpa é limite e pressuposto da pena, não é medida nem fundamento).
Posto isto, os elementos da infracção criminal são: o Tipo; a Ilicitude; e, culpa.
XI. O Tipo Objectivo de Ilícito
A. Questões gerais de tipicidade
1. Determinações conceituais: tipo de garantia, tipo de erro e tipo de ilícito
Antes que estudemos a estrutura do tipo de ilícito objectivo importa clarificar a pluralidade de sentidos com que a dogmática penal se utiliza a categoria do tipo, introduzida pela primeira vez na dogmática por Beling. O erro deste foi o de pensar que o mesmo conjunto de elementos poderia cumprir simultaneamente as diversas funções que na tríplice conceitualização a que procederemos vão implicadas. Actualmente sabe- se que não é assim, de tal modo que a distinção do “tipo” representa um momento absolutamente essencial de uma correcta aplicação da lei penal.
O tipo apresenta-se, antes de tudo, como tipo de garantia2 – também por vezes chamado tipo legal de crime -, isto é, como o conjunto de elementos, exigido pelo artigo
29.º da CRP e pelo artigo 1.º do Código Penal, que a lei tem de referir para que se cumpra o conteúdo essencial do princípio nullum crimen, nulla poena sine lege. Trata- se de um conjunto de elementos que se distribuem pelas categorias da ilicitude, da culpa e da punibilidade: em qualquer uma destas categorias se depara com requisitos de que depende em último termo a punição do agente e relativamente aos quais por isso tem de cumprir-se a função da lei penal como Magna Charta dos cidadãos. È este o conteúdo e é esta a função que ao tipo de garantia cabem dentro do sistema da justiça penal.
2 O tipo apresenta-se como tipo de garantia (ou tipo legal de crime), ou seja, o conjunto de elementos, exigidos pelo artigo 29.º/CRP e pelo artigo 1.º/CP, que a lei tem de referir para que se cumpra o conteúdo essencial do princípio nullum crimen, nulla poena sine lege. Trata-se de um conjunto de elementos que se distribuem pelas categorias da ilicitude, da culpa e da punibilidade.
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Diferente é o conceito de tipo de erro3. Trata-se neste do conjunto de elementos que se torna necessário ao agente conhecer para que possa afirmar-se o dolo do tipo, dolo do facto ou “dolo natural”. Este tipo não se confunde nem com o tipo de garantia, nem com o tipo de ilícito: dele fazem parte os pressupostos de uma causa de justificação ou mesmo de exclusão da culpa; bem como até proibições cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para que o agente tome consciência da ilicitude do facto (artigo 16.º n.º1 e 2), no sentido de que a sua não representação ou a sua representação incorrecta pelo agente exclui o dolo ou a punição a esse título. E todavia estes elementos não têm necessariamente de pertencer nem ao tipo de ilícito, nem ao tipo de garantia.
O tipo de ilícito4 é a figura sistemática de que a doutrina penal se serve para exprimir um sentido de ilicitude, individualizando uma espécie de delito e cumprindo, deste modo, a função material de dar a conhecer ao destinatário que tal espécie do comportamento é proibida pelo ordenamento jurídico. Sem prejuízo de, segundo a concepção atrás exposta, na questão do relacionamento entre a tipicidade e a ilicitude o primado caber à categoria da ilicitude, constituindo a tipicidade apenas a mostração, concretização ou individualização de um sentido de ilicitude em uma espécie do delito.
2. Desvalor de acção e desvalor de resultado
Após as investigações dogmáticas de Wezel e o advento da doutrina da acção final tornou-se corrente a distinção, relevante em sede de ilícito típico, entre desvalor de acção e desvalor de resultado.
Por desvalor de acção compreende-se o conjunto de elementos subjectivos que conformam o tipo de ilícito (subjectivo) e o tipo de culpa, nomeadamente a finalidade delituosa, a atitude interna do agente que ao facto preside e a parte do comportamento que exprime facticamente este conjunto de elementos.
Por desvalor de resultado compreende-se a criação de um estado juridicamente desaprovado e, assim, o conjunto de elementos objectivos do tipo de ilícito (eventualmente também do tipo de culpa) que perfeccionam a figura de delito. De forma plástica, mas substancialmente correcta, se poderá dizer que o desvalor de acção se revela de forma exemplar na tentativa de crime, o desvalor de resultado no crime consumado.
A conclusão deve pois ser a seguinte: a constituição de um tipo de ilícito exige, por regra, tanto um desvalor de acção, como um desvalor de resultado; sem prejuízo de casos haver em que o desvalor de resultado de uma certa forma predomina sobre o desvalor de acção, ou em que inversamente o desvalor da acção predomina sobre o desvalor de resultado.
B. A construção dos tipos incriminadores
Em qualquer tipo de ilícito objectivo é possível identificar os seguintes conjuntos de elementos: os que dizem respeito ao autor, os relativos à conduta, e os relativos ao bem jurídico. Com efeito, todos os tipos incriminadores devem, na sua revelação objectiva, precisar quem pode ser autor do respectivo tipo de crime; qual a conduta em que este se consubstancia; e, na medida possível, dar indicação, explícita ou implícita, mas sempre clara, dos bens jurídicos tutelados.
3 O tipo de erro constitui o conjunto de elementos que se torna necessário ao agente conhecer para que possa afirmar-se o dolo do tipo, dolo do facto ou dolo natural.
4 O tipo de ilícito (ou tipo sistemático) é a figura através da qual a doutrina se serve para exprimir
um sentido de ilicitude, individualizando uma espécie de delito, cumprindo deste modo a função material de dar a conhecer ao destinatário que tal espécie do comportamento é proibida pelo ordenamento jurídico.
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1. Bem jurídico
Em relação ao bem jurídico importa ter presente que ele se não confunde com um outro possível elemento objectivo do tipo de ilícito como é o objecto da acção: se A furta um anel a B, o objecto da acção é o anel, bem jurídico a propriedade alheia; se C mata D, o corpo de D é o objecto da acção, a vida humana o bem jurídico lesado.
O intérprete deve primeiramente perguntar qual é o bem jurídico protegido. Isto porque, não serão típicas nenhumas condutas que não atinjam o bem jurídico da forma que a lei quer que o bem seja atingido.
O bem jurídico é a luz que empresta sentido a todos os elementos da factualidade típica; podendo, os bens jurídicos ser:
- Individuais, sendo estes aqueles de que são portadores uma pessoa física concreta (a título de exemplo: eu sou portador do bem jurídico vida);
- Supra-individuais ou comunitários, sendo estes aqueles de que é portadora a própria comunidade.
Os bens jurídicos individuais em princípio são disponíveis (vale o consentimento na lesão do portador concreto) e os bens jurídicos supra-individuais são indisponíveis.
Em relação aos bens jurídicos individuais, importa referir que temos os: pessoais, que tutelam as dimensões da personalidade; e, os patrimoniais, tendo nestes a propriedade e a posse.
Os bens jurídicos individuais patrimoniais são sempre disponíveis e os bens jurídicos individuais pessoais são em regra disponíveis, mas há alguns que são indisponíveis – a título de exemplo: a vida.
1.1 Crimes de Dano e Crimes de Perigo
Atendendo à forma como o bem jurídico é posto em causa pela actuação do agente (o bem jurídico, dizemos, não o mero “objecto da acção”) distingue-se entre crimes de dano e crimes de perigo.
Nos crimes de dano a realização do tipo incriminador te como consequência uma lesão efectiva do bem jurídico (a título de exemplo: o homicídio – artigo 131.º, o dano – artigo 212.º, a violação sexual – artigo 164.º, e a injúria – artigo 181.º).
Nos crimes de perigo a realização do tipo não pressupõe a lesão, mas antes se basta com a mera colocação em perigo do bem jurídico. Aqui distingue-se entre crimes de perigo concreto e crimes de perigo abstracto. Nos crimes de perigo concreto o perigo faz parte do tipo, isto é, o tipo só é preenchido quando um bem jurídico tenha efectivamente sido posto em perigo (é o caso do artigo 138.º, exposição e abandono, em que é elemento do tipo o “colocar em perigo a vida de outra pessoa”: só haverá crime de exposição ou abandono quando se comprove que o bem jurídico vida foi realmente posto em perigo). Nos crimes de perigo abstracto o perigo não é elemento do tipo, mas simplesmente motivo da proibição; quer dizer, neste tipo de crimes são tipificados certos comportamentos em nome da sua perigosidade típica para um bem jurídico, mas sem que ela necessite de ser comprovada no caso concreto: há como uma presunção inelidível de perigo e, por isso, a conduta do agente é punida independentemente de ter criado ou não um perigo efectivo para o bem jurídico (a título de exemplo: a condução de veículo em estado de embriaguez – artigo 292.º, em que o condutor embriagado é punido pelo facto de o estado em que se encontra constituir um perigo potencial para a segurança rodoviária).
O tipo de crime que melhor protege o bem jurídico é o crime de perigo abstracto. Daí que se diga que os crimes de perigo abstracto são uma protecção avançada dos bens jurídicos.
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Actualmente, coloca-se em causa saber se os crimes de perigo abstracto são constitucionais. O Direito Penal protege bens jurídicos por um lado, mas também sacrifica bens jurídicos por outro. Ora, como os crimes de perigo abstracto são uma tutela muito à frente, pode-se entender que há uma certa desproporcionalidade. Daí que, há autores que dizem que os crimes de perigo abstracto são inconstitucionais. No entanto, o Tribunal Constitucional não se pronunciou pela inconstitucionalidade destes crimes e, a doutrina maioritária também defende isto, desde que as condutas sejam manifestamente perigosas.
1.2 Crimes Simples e Crimes Complexos
Ainda em atenção ao bem jurídico é possível distinguir crimes simples e complexos, conforme o tipo de ilícito vise a tutela de um ou mais do que um bem jurídico. Se na maior parte dos tipos de crime – tipos simples – está em causa a protecção de apenas um bem jurídico (a título de exemplo: a vida, artigo 131.º; a honra, artigo 180.º). Nos tipos complexos pretende-se alcançar a protecção de vários bens jurídicos (a título de exemplo: no roubo – artigo 210.º - é tutelada não só a propriedade, mas também a integridade física e a liberdade individual de decisão e acção).
O relevo normativo-prático desta distinção reside em que ela pode mostrar-se essencial para uma correcta interpretação (e aplicação) do Tipo. Por exemplo, no crime de denúncia caluniosa (artigo 365.º) é absolutamente decisivo para uma correcta interpretação de muitos e importantes pontos do seu regime ter em conta a duplicidade dos bens jurídicos protegidos pelo tipo, por um lado o interesse individual dos atingidos pela denúncia, por outro o valor supra-individual da realização da justiça.
2. Agente
Em relação ao agente, este será em princípio uma pessoa singular, mas pode ser também – quando a lei expressamente o determinar – um ente colectivo (artigo 11.º)5. Todavia, são pouco frequentes os caos em que lei portuguesa consagrou a responsabilidade penal de entes colectivos.
O autor de um crime pode ser, em regra, qualquer pessoa (“quem…”, assim começa a generalidade dos tipos de ilícito); estamos neste caso perante os chamados crimes comuns, de que são exemplos o homicídio (artigo 131.º “quem matar outra pessoa…”) ou o furto (artigo 203.º “quem subtrair coisa móvel alheia…”).
Por vezes, porém, a lei leva a cabo nesta matéria uma especialização, no sentido de que certos crimes só podem ser cometidos por determinadas pessoas, às quais pertence uma certa qualidade ou sobre as quais recai um dever especial. Aqui deparamos com os chamados crimes específicos, de que são exemplos os artigos 227.º (“o devedor que…”), o 284.º (“o médico que…”) ou 375.º (“o funcionário que…”).
Como já se pode verificar, os crimes comuns são normalmente introduzidos através do pronome relativo indefinido “quem”.
Por sua vez, os crimes específicos começam pela descrição das qualificações do agente. Importa ter em conta, que relativamente a este tipo de crime, que o crime específico por excelência dos funcionários públicos é a corrupção, crime do qual só podem ser autores os funcionários públicos, artigo 372.º.
No âmbito dos crimes específicos, distingue-se entre crimes específicos próprios ou puros e impróprios ou impuros. Nos primeiros a qualidade especial do autor ou dever que sobre ele impende fundamentam a responsabilidade (é o caso do crime de
5 Esta norma pretende não excluir a responsabilidade dos entes colectivos, mas, pelo contrário, deixar em aberto a possibilidade de essa responsabilidade ser consagrada relativamente a determinados tipos de crime, quando por razões de oportunidade o legislador assim o entender.
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prevaricação do artigo 370.º, cuja conduta, se não for levada a cabo por advogado ou solicitador, não constitui crime. Nos segundos a qualidade do autor ou o dever que sobre ele impende não servem para fundamentar a responsabilidade, mas unicamente para agravar a sanção (é o caso do artigo 378.º, que comina uma pena mais grave para o crime de violação de domicilio, previsto no artigo 190.º, quando este for cometido por funcionário.
Por fim, importa referir outro tipo de crime, sendo este o chamado crime de mão própria, isto é, os tipos de ilícito em que o preceito legal quer abranger como autores apenas aqueles que levam a cabo a acção através da sua própria pessoa, não através de outrem; quer abranger apenas pois, em princípio, os autores imediatos, ficando excluída a possibilidade de autoria mediata, e mesmo a co-autoria relativamente àqueles comparticipantes que não tenham chegado a executar por próprias mãos a conduta típica, não podendo por isso, nestes casos, verificar-se a “comunicabilidade” a que se refere o artigo 28.º. Sendo o caso, relativamente a estes últimos, dos artigos 165.º e
166.º: só quem pratica, por si mesmo, o acto sexual incriminado pode ser considerado autor; como é o caso do artigo 295.º relativo à autocolocação em estado de inimputabilidade através da ingestão ou consumo de bebida alcoólica ou de substância tóxica.
3. Conduta, acção ou comportamento
Relativamente à conduta, são vários os problemas que se levantam no enquadramento presente. Desde logo, é nesta sede que cabe determinar quais as acções penalmente irrelevantes, de acordo a função de delimitação ou função negativa de excluir da tipicidade comportamentos jurídico-penalmente irrelevantes que ao conceito de acção vimos pertencer. Aqui se contém a exigência geral de que se trate de comportamentos humanos, o que, obviamente, exclui a capacidade de acção das coisas inanimadas e dos animais, embora não, como acabámos de ver, dos entes colectivos. Exige-se ainda que o comportamento seja voluntário, isto é, presidido por uma vontade, o que exclui os puros actos de reflexos (a título de exemplo: o caso de alguém que perde o controlo do seu carro e colide com outro veículo em virtude de uma reacção instintiva de defesa contra um insecto que lhe entrou num olho), os cometidos em estado de inconsciência ou sob o impulso de forças irresistíveis. Também não constituem acções penalmente relevantes os sonhos ou os pensamentos, conforme o princípio romanístico cogitationes poenam nemo patitur.
No âmbito da conduta importa distinguir entre tipos cuja consumação pressupõe a produção de um resultado e tipos em que para a consumação é suficiente a mera acção. Os crimes materiais ou de resultado são aqueles crimes cuja a consumação implica a produção de um determinado resultado ou evento (a titulo de exemplo: o agente só consuma o crime se o resultado “morte” tiver efectivamente sido produzido). Isto não quer dizer que se o resultado não se produzir o agente não é punido, porque ele pode ser punido por tentativa.
Os crimes formais ou de mera actividade são aqueles que se esgotam na mera acção ou comportamento, artigo 236.º – incitamento à guerra.
Por outro lado, também existem os denominados crimes de acção ou crimes de omissão. Os primeiros são aqueles em que a conduta tem uma expressão positiva, um “facere”, um fazer; podendo estes ser crimes materiais ou formais. Os segundos, são aqueles em que a conduta tem uma expressão negativa, um não fazer, um “non facere”, um “omitere”.
Em relação aos crimes de omissão, estes podem ser:
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- Crimes materiais ou crimes de omissão própria ou pura, sendo aqueles em que a omissão só é punida na medida em que lhe poder ser imputado um certo resultado (a título de exemplo: crime de homicídio por omissão);
- Crimes formais ou crimes por omissão própria ou pura, sendo estes aqueles em que a omissão é punida em si e “per si”, independentemente de qualquer resultado (a título de exemplo: crime de omissão de auxílio – artigo 200.º, sendo o caso em que, por exemplo, não se prestar auxílio a um acidente. E, recusa do Médico – artigo 284.º).
4. Tipos de Tipicidade
No sentido de corresponder pelo melhor à exigências do princípio da legalidade, nomeadamente, de descrever de uma forma o mais precisa e estrita os comportamentos típicos e as formas de lesão ou colocação em perigo dos bens jurídicos, o legislador faz uso de técnicas que resultam na criação de grupos de tipos de crime, bem como de figuras típicas de estrutura especial. São os mais importantes desses grupos e figuras que se vai agora referir.
4.1 Crimes Fundamentais, Qualificados e Privilegiados
Os crimes fundamentais contêm o tipo objectivo de ilícito na sua forma mais simples, constituem, por assim dizer, o mínimo denominador comum da forma delitiva, conformam o tipo-base cujos elementos vão pressupostos nos tipos qualificados e privilegiados. Frequentemente, na verdade, o legislador, partindo do crime fundamental, acrescenta-lhe elementos respeitantes à ilicitude ou/e à culpa, que agravam (crimes qualificados) ou atenuam (crimes privilegiados) a pena prevista no crime fundamental. Claro exemplo destes grupos de tipos de crime é o homicídio. No artigo 131.º está contido o ilícito-típico fundamental de homicídio, traduzido na acção de matar outra pessoa. A partir daqui e como a morte foi produzida em circunstâncias, devidamente descritas ou referenciadas através de uma cláusula geral, que revelem uma culpa mais grave ou uma culpa menos grave do que a pressuposta no tipo-base, deparamos comum homicídio qualificado (artigo 132.º9 ou um homicídio privilegiado (artigo 133.º). Outro exemplo é dado pela generalidade dos crimes patrimoniais, como por exemplo o crime de furto: partindo do tipo-base (ou furto simples: artigo 203.º) e acrescentando-lhe elementos, aqui relativos ao tipo de ilícito, que aumentam a gravidade do facto, deparamos com o furto qualificado, artigo 204.º.
Os crimes qualificados são crimes em que ocorrem circunstâncias tais em que o crime é particularmente perverso e censurável. Assim, é um crime derivado no sentido da agravação.
Por outro lado, os crimes privilegiados são crimes derivados no sentido da atenuação. Só estaremos perante uma forma derivada se estiverem presentes todos os elementos dos crimes fundamentais.
O legislador por vezes recorre à Técnica dos Exemplos-Padrão. São casos em que há um enunciado normativo conjugado com algumas ilustrações típicas em termos tais que estas ilustrações não são esgotantes nem sequer necessárias, a título de exemplo: artigo 132.º.
4.2 Crimes instantâneos, crimes duradouros, crimes habituais e Crimes qualificados pelo resultado
Quando a consumação de um crime se traduza na realização de um acto ou na produção de um evento cuja duração seja instantâneo, isto é, não se prolongue no tempo, esgotando-se num único momento, diz-se que o crime é instantâneo.
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O crime não será instantâneo, mas antes duradouro, quando a consumação se prolongue no tempo, por vontade do autor.
Por sua vez, os crimes habituais são aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual (os casos de aborto agravado e de lenocínio).
Por fim, os crimes qualificados pelo resultado são, nos termos do artigo 18.º, aqueles tipos cuja pena aplicável é agravada em função de um evento ou resultado que da realização do tipo fundamental derivou.
4.4 Crimes de execução vinculada e crimes de execução livre
Os crimes de execução vinculada são aqueles em que o próprio processo causal faz parte do tipo, em termos tais que o crime só se verifica se tiver lugar aquele processo causal típico (a título de exemplo: crime de burla).
Os crimes de execução livre são aqueles em que o processo causal não faz parte do tipo (a título de exemplo o homicídio).
XII. A Imputação Objectiva do Resultado à Conduta
1. O problema da imputação objectiva do resultado à conduta
Relativamente a este problema houve três grandes respostas, sendo estas as seguintes:
- Doutrina da “conditio sine qua non”;
- Doutrina da causalidade adequada;
- Doutrina da imputação objectiva do resultado.
1.1 Doutrina da “conditio sine qua non”
Segundo esta doutrina é causa de um resultado todo o antecedente que seja “conditio sine qua non” desse resultado. Se foi “conditio sine qua non” é porque foi causa do resultado. Esta é a doutrina das “condições equivalentes”, porque todas as “conditio sine qua non” são condições com força equivalentes. Todas as que são “conditio sine qua non” são equivalentes, então são condições de resultado; sendo assim, se cada “conditio sine qua non” torna causais todas as outras, logo são equivalentes. Esta é uma doutrina do século XIX e corresponde à doutrina do positivismo causalista.
Para apurar quais as condições que deram origem a um certo resultado deveria assim o juiz suprimir mentalmente cada uma delas: caso pudesse afirmar-se que o resultado não se teria produzido sem essa condição, tal significaria que esta seria penalmente relevante para efeitos do estabelecimento do nexo de causalidade.
Por exemplo: na morte de A é causal o facto de B ter uma arma e com ela ter dado dois tiros em A, o facto de C ter fabricado essa arma e o facto de o taxista D ter levado B ao encontro de A, pois sem qualquer uma destas condições não teria sido possível a morte de A nas concretas condições de modo, de tempo e de lugar em que efectivamente ocorreu.
Verifica-se, deste modo, que a fórmula da conditio sine qua non acaba por abranger a mais longínqua condição, implicando um regresso ad infinitum, e deveria excluir da problemática qualquer consideração sobre a interrupção do nexo causal devido à actuação do ofendido ou de terceiro, ou ainda por efeito de uma circunstância extraordinária ou imprevisível.
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1.2 Doutrina da causalidade adequada
Uma conduta é causa de um resultado quando essa conduta seja, em geral e abstracto, idónea a produzir o resultado.
Como é que se determina essa idoneidade geral e abstracta? Para se poder responder a esta questão, intervém o conceito de “juízo de prognose póstuma”. Este juízo tem o seguinte sentido: o juiz quando está a julgar um facto, muito depois de ocorrida a acção e o resultado, antecipa-se ao momento do resultado e pergunta-se se aquela conduta em geral e abstracto é adequada a produzir o resultado (vejamos o seguinte exemplo: A dá um tiro em B e este morre – o juiz interroga-se se dar um tiro, em geral e em abstracto, é adequado a produzir a morte). Isto é o que se encontra consagrado no artigo 10.º do Código Penal.
O artigo 10.º do Código Penal diz: “Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei.”
Posto isto coloca-se a questão: quando é que uma acção é adequada a produzir o resultado? A resposta sobre se a acção é adequada a produzir o resultado depende do número de conhecimento que levamos ao “juízo de prognose póstuma”.
Vejamos o seguinte exemplo: “numa universidade era usual, por altura da praxe, os alunos mais velhos formarem um corredor por onde passam os caloiros e levavam pancadas na cabeça. Sendo que um dos caloiros tinha o crânio trespassado e, ao levar as pancadas na cabeça, morreu.”. Neste exemplo, quais os conhecimentos que se levam ao juízo de prognose póstuma? Serão os correspondentes às regras gerais de experiência mais aqueles que o agente efectivamente tinha. Isto é assim, porque se levarmos todos os conhecimentos, esta doutrina seria igual à da “conditio sine qua non”.
Muitas vezes, intromete-se entre a acção e o resultado a conduta de um terceiro. Esta intromissão interrompe o nexo de causalidade?
Vejamos o seguinte exemplo: “A dá um golpe em C e este fica a sangrar muito, mas arrasta-se até ao hospital e morre aí devido a negligência médica, visto que a sua lesão não era grave. A morte de C fora causada por A ou pelos médicos?”.
O critério utilizado nestes casos é que a intromissão de um terceiro interrompe o nexo de causalidade quando por anormal e imprevisível, não interrompe quando for normal e previsível.
Ainda relativamente ao caso em concreto, haverá uma interrupção do nexo de causalidade e considera-se que quem matou C foram os médicos; sendo que A seria punido por homicídio doloso tentado, os médicos por homicídio negligente.
Assim, nesta doutrina opera já uma selecção muito grande em relação ao que era considerado causa pela doutrina da “conditio sine qua non”. Mas, é preciso ainda corrigir o excesso da doutrina da causalidade adequada. Vejamos o seguinte exemplo: “um maquinista de comboio vai a alta velocidade num sítio onde era permitido. Há uma pessoa que se atravessa na linha e o maquinista, não podendo travar, porque senão descarrilava o comboio, mata-a. Neste caso haverá causalidade entre conduzir o comboio e a morte? Sim há; mas deve-se considerar que o maquinista matou a pessoa? Devido a casos como este é que é necessário corrigir a doutrina da causalidade adequada.
1.3 Doutrina da imputação objectiva
Esta doutrina integra um enunciado principal normativo, isto é, um princípio geral e depois analisa-se em quatro princípios.
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O princípio geral é de que o resultado só é imputável a uma conduta quando cria um risco proibido e é precisamente esse risco que se concretiza no resultado. Relativamente aos quatro sub-princípios, estes são os seguintes:
1. Princípio do risco permitido;
2. Princípio da diminuição do risco;
3. Princípio do comportamento lícito alternativo;
4. Princípio do âmbito de protecção da norma ou princípio da área de protecção da norma;
Em relação ao primeiro princípio referido, princípio do risco permitido, segundo este princípio um resultado não é imputável à conduta quando esta conduta se subscreve no âmbito do risco permitido. Quando o resultado acontece no âmbito do risco permitido considera-se que o resultado não é imputável à conduta. O agente quando actua no âmbito do risco permitido não se verifica a primeira parte do princípio geral, ou seja, não cria um risco proibido. Assim, o risco permitido é o que acontece no contexto de uma actividade, quando se respeitam as regras que existem para essa actividade.
Por sua vez, relativamente ao segundo princípio – princípio da diminuição do risco – segundo este princípio não se imputa à conduta do agente um resultado que é produzido porque o agente quis diminuir o risco para os bens jurídicos envolvidos.
Vejamos o seguinte exemplo: “Duas amigas que não se viam à muito encontraram-se e abraçaram-se, ficando a conversar na rua. Uma ficou no passeio e a outra na parte inferior deste. Entretanto, passou um autocarro a alta velocidade e a pessoa que estava em cima do passeio puxa a outra para o passeio, deitando-a ao chão e causando-lhe uma fractura. A que sofreu a fractura intentou um processo contra a outra, o tribunal entendeu que aquela fractura é o resultado de uma diminuição do risco. Logo, o resultado não vai ser imputada à conduta.
Relativamente ao terceiro princípio – princípio do comportamento lícito alternativo – importa verificar o seguinte exemplo, para uma melhor interpretação deste princípio: “Na Alemanha existia um fábrica que produzia pincéis com pêlos de animais oriundos da Ásia. Sucede que o Ministro da Indústria tinha estabelecido normas, segundo as quais aqueles pêlos tinham de ser tratados com certos produtos químicos porque havia a desconfiança que determinadas doenças surgiam dessa maneira. No entanto, um dia o empresário não submeteu aquela matéria-prima ao tratamento previsto e várias funcionárias sofreram infecções nas mãos e vários clientes sofreram lesões na cara. O dono da fábrica foi a julgamento e provou-se que as lesões foram causadas por um vírus novo que só seria eliminado por outros produtos, assim, mesmo que o empresário tivesse adoptado o comportamento lícito o resultado continuava-se a produzir.” Portanto, segundo este princípio não se imputa o resultado à conduta no caso de o resultado se continuar a produzir, mesmo a hipótese de o agente ter adoptado o comportamento lícito.
Por fim, em relação ao último princípio – princípio do âmbito de protecção da norma ou princípio da área de protecção da norma – importa, também, analisar o seguinte exemplo: “Dois ciclistas seguiam numa estrada, de noite, com as luzes apagadas e iam um atrás do outro. Vem em sentido contrário um camião que não se apercebe dos ciclistas e atinge o primeiro, matando-o. O Ministério Público intentou um processo contra o camionista e contra o segundo ciclista, porque ele vinha com a luz apagada e se viesse com a luz acesa, certamente que o camionista teria visto o ciclista da frente, logo, pelo facto de ele ter transgredido o Código da Estrada é-lhe imputada a morte do colega. Mas, o facto de os ciclistas andarem com luz acesa destina-se à sua
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própria protecção. Portanto, a protecção da vida do ciclista que morreu não está no âmbito da norma andar com luz.” Portanto, segundo este princípio só deve imputar-se o resultado à conduta quando a conduta cria um risco correspondente ao âmbito de protecção da norma, isto é, quando a intenção da norma é proteger aquele tipo de resultados.
A doutrina da imputação objectiva é uma doutrina que corrige os excessos da doutrina da causalidade adequada.
2. O problema da imputação do resultado à conduta
Aqui, o problema é mais complexo porque não há conduta. Coloca-se a seguinte questão: Como é que eu estando parado posso responder pela morte de uma pessoa?
Sendo que, houve várias tentativas para fundamentar a imputação do resultado à conduta. Um delas foi a de tentar encontrar para os crimes de omissão uma espécie de sucedâneo da acção. Então, dizia-se que nos crimes de omissão também há uma acção. Vejamos o seguinte exemplo: “A mãe cose meias em vez de alimentar o filho – a acção seria coser meias. Actualmente, isto não faz sentido, a mãe não vai ser punida por coser meias, mas sim por não alimentar o filho”. Para efeitos de valoração podemos equiparar a acção e omissão.
O Dr. Eduardo Correia enunciou o seguinte: “quando uma norma quer evitar um resultado tanto valem as acções que produzem o resultado, como as omissões que o deixam ter lugar”.
Entre a acção e a omissão não há do ponto de vista físico nada em comum, mas é possível, do ponto de vista normativo, equiparar a acção à omissão. Fora este juízo de valor que passou para a lei no artigo 10.º do Código Penal. A lei acrescenta: “salvo se outra for a intenção da lei”. Isto quer dizer que entre a acção e a omissão há diferenças.
No crime de omissão impura há o valor do dever de solidariedade e o valor da segurança, sendo estes valores conflituantes; havendo um problema de equilíbrio entre a segurança e a solidariedade, que não se põe no campo dos crimes de acção. Não podemos levar a solidariedade ao extremo; tem de haver um limite para o dever de agir, pois este dever não pode ser de tal maneira que seja uma compreensão intolerável para a vida da pessoa. Isto é resolvido pelo “Dever de Garante ou Posição de Garante” – é um dever pela não produção do resultado.
Com isto coloca-se a questão de se saber quando é que há um dever de garante?
A resposta tradicional ou clássica a esta questão, é que as fontes do dever de garante são três, sendo estas as seguintes:
1. A Lei, na medida em que há leis que impõem às pessoas o dever de garante; a título de exemplo, a lei impõe o dever de garante aos pais pela vida e saúde dos filhos.
2. O contrato, na medida em que há contratos em que a pessoa assume o dever de garante da saúde e da vida de determinadas pessoas; a título de exemplo: uma babysitter que vai tomar conta de uma criança, ou, um instrutor de natação não pode deixar os alunos morrerem afogados.
3. A ingerência, na medida em que fora o próprio omitente que criou o perigo. Se ele desencadeou o perigo depois deve desencadear as acções tendentes a prevenir as consequências desse perigo.
Esta visão é um pouco reduzida, no sentido de podemos levar mais longe o dever de garante sem colocar em causa uma compressão da vida da pessoa. Vejamos o seguinte exemplo: “Dois amigos vivem juntos e a casa incendeia-se, ficando um dos amigos em posição de salvar o outro. Não há lei, não há contrato e não há ingerência; haverá dever de garante?”. Entende-se que a fonte do dever de garante não é a lei, nem
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o contrato, nem a ingerência; estes são afloramentos positivados de um dever de garante que radica mais longe, radica na interpretação das normas penais à luz de imperativos de solidariedade compatíveis com a segurança.
Assim, à lei, ao contrato e à ingerência, acrescentam-se por exemplo as noções de:
1. A Proximidade existencial
2. O Monopólio, quando uma pessoa e, só ela pode salvar o bem jurídico, sem custos para o seu bem jurídico.
3. A Relações de confiança fáctica, para melhor compreensão deste, pega-se no exemplo da babysitter que tem um contrato nulo; sendo que aqui o que releva é a relação de confiança para com a babysitter e não o contrato.
4. O Domínio, a título de exemplo, sobre o dono de uns divertimentos incumbe o dever de garante pela vida de uma pessoa, mesmo que esta tenha violado os deveres de segurança.
XIII. O Tipo Subjectivo de Ilícito
1. A construção do tipo subjectivo de ilícito (o dolo do tipo e os especiais elementos subjectivos do tipo)
Analisaremos, agora e nesta sede, o tipo subjectivo de ilícito doloso. Um tipo cujo elemento irrenunciável é o dolo; não na integridade dos seus elementos constitutivos, mas no conjunto daqueles que pertencem, segundo a sua estrutura e função, ao tipo de ilícito. Conjunto a que desde longa data se chama dolo natural, dolo do facto ou dolo do tipo.
No entanto importa referir, desde já, que o conteúdo do tipo subjectivo de ilícito doloso não tem de se esgotar no dolo do tipo.
Em muitos tipos legais de crime existem especiais elementos subjectivos que não pertencem ao dolo do tipo e que todavia, de forma essencial, co-determinam o desvalor da acção e definem a área de tutela típica.
Distinção entre os elementos do dolo do tipo e os especiais elementos subjectivos do tipo: estes, ao contrário daqueles, não se referem a elementos do tipo objectivo de ilícito, ainda quando porventura se liguem à vontade do agente de realização do tipo. O seu objecto encontra-se fora do tipo objectivo de ilícito, não havendo por isso, na parte que lhes toca, correspondência ou congruência entre o tipo objectivo e o tipo subjectivo de ilícito.
Segundo a sua estrutura material, são as intenções os especiais elementos subjectivos que mais próximos estão do dolo do tipo.
Aqui relevam os crimes de intenção ou de resultado cortado, nos quais o tipo legal exige, para além do dolo do tipo, a intenção de produção de um resultado que todavia não faz parte do tipo legal.
A este propósito atente-se no exemplo resultante do artigo 262.º, relativo à contrafacção de moeda: o tipo objectivo é o fabrico de moeda; dolo será, neste caso, querer e saber realizar o tipo objectivo. A intenção constitui a vontade de pôr a moeda em circulação. Vislumbra-se aqui o efeito de transcendência – a intenção do agente transcende o tipo objectivo.
Ao lado das intenções, a doutrina costuma citar os motivos, os impulsos afectivos e as características da atitude interna como outras categorias integrantes de especiais elementos subjectivos do tipo. Não é impossível na verdade que, num caso ou noutro,
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tais realidades possam ser exigidas como co-fundamentadoras da ilicitude típica subjectiva.
2. O dolo do tipo: estrutura e elementos
No que respeita aos elementos, podemos afirmar que o dolo é constituído por três elementos: intelectual, volitivo e emocional. Porém, ao dolo, como elemento do tipo, só interessam os dois primeiros. O elemento emocional releva apenas relativamente ao dolo da culpa. Detenhamo-nos, pois, no estudo da sua estrutura:
O Código Penal não define o dolo do tipo, mas apenas, no artigo 14.º, cada uma das formas em que ele se analisa. Ainda assim, podemos defini-lo como o conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito.
O artigo 13.º determina que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência. Isto significa, antes de mais, que no conjunto da criminalidade o lugar primordial, por mais grave, é conferido à criminalidade dolosa; tanto mais que só cerca de uma décima parte dos crimes descritos na parte especial do Código Penal são puníveis a título de negligência. E os que o são, são-nos com molduras penais quase sempre mais baixas do que os correspondentes delitos dolosos.
O dolo do tipo é conceitualizado como conhecimento (momento intelectual) e vontade (momento volitivo) de realização do facto. Mas, de um ponto de vista funcional, os dois elementos não se situam ao mesmo nível.
O elemento intelectual do dolo do tipo não pode, por si mesmo, considerar-se decisivo da distinção dos tipos de ilícito dolosos e dos negligentes, uma vez que também estes últimos podem conter a representação pelo agente de um facto que preenche um tipo de ilícito (a chamada negligência consciente). É pois o elemento volitivo, quando ligado ao elemento intelectual requerido, que verdadeiramente serve para indiciar uma posição ou atitude do agente contrária ou indiferente à norma de comportamento, numa palavra, uma culpa dolosa e a consequente possibilidade de o agente ser punido a título de dolo.
2.1 O momento intelectual do dolo
Neste elemento trata-se da necessidade que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objectivo (artigo 16.º n.º1).
Assim, pretende-se que o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito. Só quando a totalidade dos elementos do facto estão presentes na consciência psicológica do agente se poderá vir a afirmar que ele se decidiu pela prática do ilícito e deve responder por uma atitude contrária ou indiferente ao bem jurídico lesado pela conduta. Fala-se, então, a este respeito de um princípio de congruência entre o tipo objectivo e o tipo subjectivo de ilícito doloso.
Por conhecimento das circunstâncias do facto devemos entender o conhecimento de todos os elementos pertinentes à factualidade típica de um crime. A título de exemplo: no crime de homicídio, para que haja actuação com dolo é necessário que o agente conheça todos os elementos pertinentes à factualidade típica de um crime, ou seja, matar uma pessoa.
O problema dos elementos normativos
O tipo de ilícito é o portador de um sentido de ilicitude, pelo que a factualidade típica que o agente tem de representar não constitui o agregado de puros factos, mas de
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factos valorativos em função daquele sentido de ilicitude. Isto significa que não basta o conhecimento dos meros factos, mas também a apreensão do seu significado correspondente ao tipo.
Aqui se coloca o problema dos elementos normativos, isto é, aqueles que só podem ser representados e pensados por referência a normas, jurídicas ou não jurídicas.
Desta forma, poderá pôr-se a seguinte questão: qual o grau e as características do conhecimento que neste âmbito deve ser exigido pela afirmação do dolo do tipo?
Conforme defende o Professor Figueiredo Dias, necessário e suficiente será o conhecimento pelo agente dos elementos normativos, antes que na direcção de uma exacta subsunção jurídica, na de uma apreensão do sentido ou significado correspondente, no essencial e segundo o nível próprio das representações do agente, ao resultado daquela subsunção, ou, mais exactamente, da valoração respectiva.
A actualidade da consciência intencional da acção
O conhecimento requerido pelo dolo do tipo exige a sua actualização na consciência psicológica ou intencional no momento da acção. Pelo que, se requer que o agente represente a totalidade da factualidade típica e a actualize de forma efectiva.
A consciência requerida das circunstâncias do facto será actual do próprio ponto de vista psicológico, para afirmação do dolo do tipo, não apenas quando aquelas são assumidas pelo agente sob a forma de representação, mas também quando elas são co- consciencializadas, isto é, assumidas por uma consciência que não é considerada explicitamente, mas que é atendida com outros conteúdos conscientemente considerados e tem assim também de ser implicitamente tomada em conta de forma necessária – teoria da co-consciência inerente à acção. Atente-se no seguinte exemplo: Se um médico adquiriu a experiência de que um medicamento pode produzir um colapso cardíaco sob determinadas circunstâncias e receita posteriormente esse medicamento sem pensar que aquelas condições estão de novo dadas, então ele tem um conhecimento actualizável no momento das circunstâncias de facto que integram o tipo objectivo da ofensa à integridade física grave com perigo para a vida (artigo 144.º alínea d), mas não tem naturalmente a consciência actual, e portanto o dolo do tipo.
O erro sobre a factualidade típica
Se faltar ao agente o conhecimento da totalidade das circunstâncias, de facto ou de direito, descritivas ou normativas, do facto, o dolo do tipo não pode afirmar-se. Assim mesmo dispõe o n.º 1 do artigo 16.º segundo o qual o erro sobre os elementos de facto ou de direito de um tipo de crime (…) exclui o dolo.
Esta concepção vale não só para as circunstâncias que fundamentam o ilícito, mas também para todas aquelas que o agravam e para a aceitação errónea de circunstâncias que o atenuam.
A previsão do decurso do acontecimento
Nos crimes de resultado tanto a acção como o resultado são circunstâncias do facto pertencentes ao tipo objectivo de ilícito que, como tal, têm de ser levados, nos termos descritos, à consciência intencional do agente.
Questão é saber se também se torna necessário, e em que termos, o conhecimento pelo agente da conexão entre acção e resultado, isto é, do risco por ele criado e vazado no resultado que fundamenta a imputação objectiva.
O erro sobre o processo causal
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Afastará este erro o dolo? Se estivermos perante crimes de execução vinculada – nos quais o processo causal faz parte do tipo – o erro sobre o processo causal afasta o dolo, por força do disposto no artigo 16.º n.º1.
Nos outros casos (como a título de exemplo, o homicídio, que não constitui um crime de execução vinculada), o erro sobre o processo causal não afasta, em princípio, o dolo. Ter-se-á, então de, com rigor, determinar a imputação objectiva:
- Se o risco puder ser imputado ao agente, o erro não é relevante;
- Se o risco não puder ser imputado ao agente, o erro será relevante.
O erro na execução (ou aberratio ictus vel impetus)
Os casos de aberratio ictus vel impetus, ou seja, desvio da trajectória ou do golpe são os casos em que, por erro na execução, vem a ser atingido um objecto diferente daquele que estava no propósito do agente. A título de exemplo: Podem apontar-se como o de A pretender matar B com um tiro, mas este vir a atingir não B, mas C.
Aqui o resultado ao qual se referia a vontade de realização do facto não se verifica, mas sim um outro, da mesma espécie ou de espécie diferente. A acção falha o seu alvo e apresenta por isso a estrutura da tentativa.
A produção de outro resultado, que tanto podia não ter lugar como ser de outra gravidade, só pode eventualmente conformar um crime negligente. A punição deve, por isso, ter lugar só por tentativa ou por concurso desta com um crime negligente. Vale esta teoria mesmo quando haja coincidência típica entre o tipo de ilícito projectado e o consumado.
O Professor Eduardo Correia entendia que o agente deveria ser punido pelo crime projectado como se tivesse consumado. Já Cavaleiro de Ferreira defendia que a punição é feita em virtude da consumação como se tivesse projectado.
A solução passa, no entanto, pela denominada solução de verdade – o agente é punido por dois crimes: tomando como exemplo o homicídio será punido ao nível de homicídio tentado e homicídio consumado negligente.
O erro sobre a pessoa ou sobre o objecto (error in persona vel objecto)
O decurso real do acontecimento corresponde inteiramente ao intentado; só que o agente se encontra em erro quanto à identidade do objecto ou da pessoa a atingir. Não existe pois aqui qualquer erro na execução, mas sim na formação da vontade.
Vejam-se os seguintes exemplos: 1) A, pensando que o passante é o seu inimigo B, dispara contra ele um tiro mortal, verificando-se depois que A confundiu B com C e foi este, um estranho, que matou; 2) D subtrai de um museu uma imitação de um quadro célebre, de valor muito relativo, pensando que se trata do original valiosíssimo.
O conhecimento da proibição legal
Na esmagadora maioria dos casos, o elemento intelectual do dolo do tipo será configurado através da exigência de conhecimento de todos os pressupostos do facto e (nos limites referidos) do decurso do acontecimento.
Excepcionalmente, porém, à afirmação do dolo do tipo torna-se ainda indispensável que o agente tenha actuado com conhecimento da proibição legal. Isto sucede sempre que o tipo de ilícito objectivo abarca condutas cuja relevância axiológica é tão pouco significativa que o ilícito é primariamente constituído não só ou mesmo nem tanto pela matéria proibida, quanto também pela proibição legal.
Reconhecendo-o, o artigo 16.º n.º1, afirma que um erro sobre a proibição exclui o dolo quando o seu conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto.
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Afirma Maia Gonçalves, no “Código Penal Anotado” que no artigo 16.º substitui- se a dicotomia do Código Penal de 1886 – erro de facto e erro de direito – pela distinção entre erro sobre a factualidade típica (aquele que incide sobre o conhecimento dos elementos normativos do tipo legal de crime) e erro sobre a proibição (o que incide sobre o conhecimento do significado antijurídico do conjunto dos elementos constitutivos do tipo legal de crime).
2.2 O momento volitivo do dolo
O conhecimento das circunstâncias do facto e, na medida necessária, do decurso do acontecimento não podem, só por si, indiciar a contrariedade ou indiferença manifestada pelo agente no seu facto, que dissemos caracterizar a culpa dolosa e, em definitivo, justificar a punição do agente a título do dolo. Isto significa que o dolo do tipo não pode bastar-se com aquele conhecimento, mas exige ainda a verificação no facto de uma vontade dirigida à sua realização.
É este momento que constitui o elemento volitivo do dolo do tipo e que pode assumir matizes diversos, permitindo a formação de diferentes classes de dolo:
- Dolo directo (artigo 14.º n.º1), corresponde à intenção criminosa e nele o agente tem como fim a realização do facto criminoso;
- Dolo necessário (artigo 14.º, n.º2), existe quando o agente sabe que, como consequência de uma conduta que resolve empreender, realizará um facto que preenche um tipo legal de crime, não se abstendo, apesar disso, de empreender tal conduta;
- Dolo eventual (artigo 14.º, n.º3), casos em que o agente previu o resultado como consequência possível da sua conduta, não se abstendo porém de o empreender, e conformando-se com a produção do resultado.
2.3 Distinção entre dolo eventual e negligência consciente
Para a distinção entre dolo eventual e negligência consciente, a doutrina apresenta uma multiplicidade de critérios. São, pois, esses critérios ou teorias que analisaremos de seguida, mas não sem antes referir que o artigo 15.º do Código Penal procede à distinção entre negligência consciente (alínea a) e negligência inconsciente (alínea b):
1. Teoria da probabilidade;
2. Teoria da aceitação;
3. Teoria da conformação;
4. Teoria da fórmula hipotética de FRANK.
1) De acordo com a teoria da probabilidade, dever-se-á analisar o grau de probabilidade com que o agente representou o resultado. Várias doutrinas assentam, a partir daqui, na ideia de que à afirmação do dolo do tipo não basta a exigência da mera possibilidade de realização, mas requer-se que a representação assuma a forma da probabilidade, ou mesmo de uma probabilidade relativamente alta.
A doutrina da probabilidade não é, no entanto, aceite por duas razões:
- Não se consegue determinar com exactidão o grau de probabilidade de verificação do facto necessário à afirmação do dolo do tipo;
- O agente pode querer, apesar da improbabilidade de realização do tipo, firmemente alcançá-la.
2) De acordo com uma segunda doutrina se pergunta se o agente, apesar da representação da realização típica como possível, aceitou intimamente a sua verificação, ou pelo menos revelou a sua indiferença perante ela (dolo eventual); ou se, pelo
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contrário, a repudiou intimamente, esperando que ela se não verificasse (negligência consciente). Ao conjunto destas posições dá-se o nome de teorias da aceitação.
3) A nossa legislação adoptou a teoria da conformação. De acordo com o artigo
14.º n.º3, quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.
Parte-se pois da ideia de que o dolo pressupõe algo mais do que o conhecimento do perigo de realização típica. Essencial se revela que o agente tome a sério o risco de (possível) lesão de um bem jurídico, que entre com ele em contas e que, não obstante, se decida pela realização do facto.
“Extremamente difícil, mas instrutivo, se revela o caso chamado da correia de couro, decidido pela jurisprudência alemã e que hoje qualquer tratamento doutrinal do dolo eventual coloca mesmo no centro da discussão. Ele pode ser descrito da seguinte forma: A e B decidem roubar C, apertando-lhe o pescoço com uma correia de couro até que ele perca o conhecimento. Propondo-se evitar a morte de C, que previram como possível, resolveram porém golpeá-lo antes na cabeça com um saco de areia até que perdesse o conhecimento. No acto, porém, o saco de areia rebentou e os ladrões reverteram ao plano inicial, aplicando a correia de couro que tinham levado e apertando o pescoço de C até que este se imobilizou, para em seguida se apoderarem dos seus pertences. Após o que, receando que C já não respirasse, levaram a cabo procedimentos de reanimação; no entanto C morreu. Neste caso se mostra exemplarmente que a morte de C não era em definitivo querida pelos ladrões; todavia não até um ponto que os conduzisse a omitir a aplicação da correia de couro, que eles representaram seriamente como produtora possível de um risco de morte. Logo nessa base o dolo eventual de homicídio deve ser afirmado, na base de que os agentes se conformaram com a realização típica. A esta luz, que, de um ponto de vista puramente psicologista, os agentes tivessem ou não confiado que o resultado se não verificaria deve considerar-se indiferente para afirmação do dolo do tipo de homicídio.”
4) De acordo com a fórmula hipotética de Frank, defendida por Beleza dos Santos e Eduardo Correia, entram em conta juízos hipotéticos sobre qual teria sido a decisão do agente se a indiferença (perante o bem jurídico violado) fossa posta entre parêntesis e se perguntasse como teria actuado o agente se a consequência representada como possível tivesse sido tomada como certa.
Conclusões a propósito da distinção:
Analisando as várias concepções podemos, desde logo, chegar a uma conclusão: a de que a distinção entre dolo eventual e negligência consciente, como quer que seja levada a cabo, é tanto do ponto de vista teórico, como do ponto de vista prático, tão frágil que mal pode justificar diferenças significativas das molduras penais aplicáveis a um e outro caso; como, ainda menos, será capaz de justificar que muitas vezes o delito doloso seja severamente punível e o negligente pura e simplesmente não seja punível.
Em vários preceitos da Parte Especial do Código Penal não se admite a forma do dolo eventual como manifestação punível do tipo de ilícito doloso, exigindo-se o dolo directo.
Onde, porém, a lei admita a punibilidade do tipo subjectivo de ilícito a título de dolo eventual, diz-se não haver razão, à partida, para que se estabeleça qualquer distinção, a nível da consequência jurídica, consoante o facto foi cometido com dolo directo ou com dolo eventual.
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2.4 Dolo alternativo, dolo antecedente e dolo subsequente
O dolo do tipo, como conhecimento e vontade de realização, tem sempre de conexionar-se com um singular tipo de ilícito.
Neste contexto, pode-se situar a questão do denominado dolo alternativo, ou seja, casos em que o agente se propõe ou se conforma com a realização de um outro tipo objectivo de ilícito. A título de exemplo: “Se A se apropria ilegitimamente de uma jóia que encontra no seu quintal, admitindo que ela possa ter caído de uma caixa que B lhe pediu no dia anterior para guardar (abuso de confiança – art. 205º). Nesta situação, o agente conta com ambas as possibilidades e conforma-se com elas, devendo por isso o seu dolo ser afirmado relativamente ao tipo objectivo de ilícito realmente preenchido pela conduta.”
Atentemos agora nas situações de dolo antecedente e dolo subsequente:
Um dolo prévio relativamente à realização típica (dolo antecedente) não é ainda um dolo do tipo. A título de exemplo: “Se A quer matar B, com quem depara no acto de este cometer um roubo na sua residência, decidindo disparar só após a consumação do acto, mas ao tirar a pistola do bolso esta dispara acidentalmente e B morre, não há dolo de homicídio”.
Tão pouco a conformação com um resultado típico que já aconteceu constitui dolo do tipo (dolo subsequente). Se não, veja-se se alguém mata por descuido um seu inimigo e depois assume conscientemente este resultado ou de toda a maneira com ele se conforma, só há eventualmente realização do tipo de homicídio negligente, não só do doloso porque se não pode decidir realizar aquilo que já aconteceu.
VIV. Os Tipos Justificadores (causas de exclusão da ilicitude)
1. Questões fundamentais
O tipo legal de crime indicia a ilicitude. Este não é portador definitivo, apenas o indicia; saber se este juízo se torna definitivo depende de haver ou não causa de justificação. Assim, os tipos incriminadores constituem uma via provisória de fundamentação de ilicitude; por sua vez, os tipos justificadores uma via definitiva da exclusão da ilicitude “prima facie” indiciada pela subsunção da acção concreta a um tipo incriminador.
Em relação à causa justificativa, importa realçar que esta ao contrário do que constitucional e legalmente sucede com o tipo incriminador, não está sujeita em princípio à máxima “nullum crimem sine lege”, nem às suas consequências. Acrescenta- se, também, que nem as concretas causas de justificação precisam de ser certas e determinadas como se exige dos tipos incriminadores; nem elas estão sujeitas à proibição de analogia, nem relativamente a elas vale o princípio da irretroactividade da lei penal.
Os tipos justificadores constituem uma via definitiva de exclusão da ilicitude
prima facie indiciada pela subsunção da acção concreta a um tipo incriminador.
Os tipos justificadores ou causas de justificação são, estruturalmente, por natureza, gerais e abstractos, no sentido de que não são em princípio referidos a um bem jurídico determinado, antes valem para uma generalidade de situações independentes da concreta conformação do tipo incriminador em análise.
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A causa justificativa, ao contrário do que constitucional e legalmente sucede com o tipo incriminador, não está sujeita ao princípio nullum crimen sine lege, nem às suas consequências, nem tão-pouco à proibição da analogia.
As causas de justificação não se encontram apenas consagradas na legislação penal, mas também, por exemplo, no Código Civil. Pelo que, as causas de justificação não têm de possuir carácter especificamente penal, antes provir da totalidade da ordem jurídica e constarem, por conseguinte, de um qualquer ramo do direito.
A doutrina tem no entanto vindo em data recente a discutir profundamente a questão de saber se também as causas de justificação devem submeter-se à proibição da analogia “in malam partem”, sob a forma seja de redução directa do alcance da norma justificante (a título de exemplo, não aplicando a justificação por legítima defesa a bens supra-individuais ou colectivos), seja da introdução de pressupostos não escritos (a título de exemplo, exigindo uma qualquer proporcionalidade ente o bem defendido e o bem sacrificado pela legítima defesa). E o mesmo no que diz respeito à criação por analogia de uma causa de justificação – que se diria funcionar sempre in bonam partem
– não deixa de se chamar atenção para que, se uma tal criação joga em favor do agente, “ela desencadeia ao mesmo tempo como efeito necessário do dever de suportar, um encantamento da liberdade da pessoa atingida”.
Face ao disposto no artigo 1.º n.º3 do Código Penal e também ao artigo 29.º n.º1 da CRP, é pelo menos duvidoso que possa concluir-se pela inconstitucionalidade de um qualquer encurtamento para o agente operada por força do processo hermenêutico ou aplicativo, da área de actuação de um tipo justificador em homenagem ao teor das palavras que o compõem. Colocando as coisas em termos metodológicos tradicionais, dir-se-á que a interpretação teleológica, restritiva ou extensiva, e a consequente aplicação da causa de justificativa como um todo, ou de seus singulares elementos constitutivos, é susceptível de violar o princípio da legalidade porque releva ainda da “interpretação” permitida e não da analogia legal e constitucionalmente permitida. Segundo o Professor Costa Andrade o essencial é sim, sempre, que a aplicação da sua causa justificativa seja feita em consideração da sua correcta caracterização específica ou a “sua racionalidade axiológica-teleológica”.
O Código Penal no seu artigo 31.º contém as principais causas de justificação, que são tão frequentes que o legislador as retirou da parte especial e as colocou na parte geral, por estas valerem para qualquer crime.
Mas, também, há causas de justificação na parte especial. Estas são causas que só valem para os crimes para que estão expressamente previstas (a título de exemplo: as indicações são causas de justificação que justificam o aborto, existe a indicação médica, a eugénica…).
Para os crimes de devasso privado e para os crimes de difamação há uma causa de justificação que é a prossecução de interesses legítimos. Há ainda, muitas outras causas de justificação dispersas pela unidade da ordem jurídica no seu conjunto.
As causas de justificação não têm de possuir carácter especificamente penal, antes podem provir da totalidade da ordem jurídica e constarem, por conseguinte, de um qualquer ramo de direito. Esta verificação é compreensível e, ao menos numa larga medida, indiscutível: se uma acção é considerada lícita pelo direito civil, administrativo ou por qualquer outro, essa ilicitude – ou ausência de ilicitude – tem de impor-se a nível do direito penal, pelo menos no sentido de que ela não pode constituir um ilícito penal.
A favor da ideia de que uma acção lícita face a um qualquer ordenamento jurídico não pode constituir um ilícito jurídico-penal se invoca, com carácter apodíctico e sem mais problematização, o princípio da unidade da ordem jurídica6.
6 Pode-se falar do princípio da unidade da ordem jurídica?
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Segundo alguma doutrina, uma vez qualificada como ilícita uma acção por um qualquer ramo de direito, ela é ilícita face à totalidade da ordem jurídica; e, inversamente, se ele é lícita face a um qualquer ramo, é-o face à totalidade da ordem jurídica.
No entanto, cremos que é inaceitável a concepção da norma jurídica que está na base deste entendimento: o ilícito não é uma “coisa em si”, mas algo que parcial mas decisivamente se determina já a partir da consequência, no caso da norma penal, a partir da pena e da medida de segurança criminais. Isto não significa a morte do princípio da unidade da ordem jurídica. Significa só que um tal princípio deve por um lado, ao menos para os efeitos aqui em consideração, “pensar-se no plano puramente negativo” e portanto no sentido de que “sempre que uma conduta é, através de uma disposição do direito, imposta ou considerada como autorizada ou permitida, está excluída sem mais a possibilidade de, ao mesmo tempo e com base num preceito penal, ser tida como antijurídica e punível”.
Deve concluir-se por isso, quanto a este ponto, da maneira seguinte: não é correcto negar em bloco a possibilidade de se pensar a ilicitude penal como uma ilicitude especificamente penal, devendo, pelo contrário, acompanhar-se no essencial a tese central da possibilidade de uma específica exclusão ou justificação do ilícito penal. Com mais rigor se dirá, de uma ilicitude penal qualificada.
2. Tentativas de sistematização das causas de justificação
Dada a multiplicidade e diversidade das causas de justificação, desde há muito que a doutrina tenta alcançar uma via da sua sistematização racional, nomeadamente, com apelo ao que pode chamar-se os princípios gerais de justificação.
Assim se alcançaram critérios como o subjacente à teoria do fim, segundo o qual estaria justificada toda a conduta que possa representar-se como meio adequado para alcançar um fim reconhecido pelo legislador como justificado (V. Liszt). Ou como a teoria do maior benefício que dano, segundo a qual seria lícita toda a conduta que, na sua tendência geral, represente para a comunidade estadual maiores benefícios do que danos (Sauer).
Em suma, qualquer destas sistematizações trata de fórmulas em si mesmas correctas mas absolutamente vazias de conteúdo e por isso imprestáveis para as tarefas de aplicação do direito.
O mesmo não pode ser dito relativamente à teoria dualista de Mezger. Segundo este autor, a sistematização deve fazer-se com apelo a um duplo ponto de vista: o do princípio do interesse preponderante (válido para a generalidade das causas justificativas) e o princípio da falta de interesse (a que deve ser reconduzida a causa justificativa do consentimento).
No entanto, conforme ensina o Professor Costa Andrade, a sistematização não se afigura possível, pois não se vislumbra um princípio conciliante e válido para todas as
Não se pode falar deste princípio em sentido bilateral, pode-se é falar em princípio da unidade da ordem jurídica em sentido unilateral. Ao falarmos neste princípio em sentido bilateral, significa que tudo o que é ilícito para o direito penal é ilícito na ordem jurídica e vice-versa.
Mas, há muitos ilícitos na ordem jurídica que não sai ilícitos penais (a título de exemplo, alguns ilícitos penais). Logo, não há uma comunicabilidade total, há uma comunicabilidade unilateral, no sentido
de que tudo o que a ordem jurídica considera lícito tem que ser lícito para o direito penal, mas, o universo
não se verifica; assim, eu posso praticar actos penalmente lícitos que sejam ilícitos para a ordem jurídica. E, isto é assim porque o ilícito penal tem que ter dignidade penal e carência de tutela penal.
Posto isto, coloca-se a questão de saber quantas causas de justificação há?
A esta questão se responde que existem muitas causas de justificação, pois estas estão disseminadas por toda a ordem jurídica, daí o disposto no n.º1 do artigo 31.º. Logo, a enumeração do n.º2 do artigo 31.º é uma enumeração exemplificativa ou aberta.
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causas justificação. Dessa forma, a solução passará por estudá-las, uma a uma, analisando os seus fundamentos individualmente.
Posto isto, coloca-se a questão de saber se é possível reconduzir as causas de justificação a um ou a vários princípios comuns?
Segundo as teorias monistas é possível reconduzir todas as causas de justificação a um princípio. Para uns o princípio é o da realização de um fim justo (a conduta tipicamente descrita não seria ilícita sempre que representasse o justo ou adequado meio para alcançar um fim justo reconhecido pela ordem jurídica). Para outros ainda, o princípio é o da ponderação de interesses.
Segundo as teorias pluralistas é possível reconduzir as causas de justificação a alguns princípios. Dentro das teorias pluralistas podemos salientar:
- A doutrina defendida por Eduardo Correia e Mezger;
- A doutrina de Jakobs.
Em relação à doutrina defendida por Eduardo Correia e Mezger, estas defendem que as causas de justificação se reconduzem a dois princípios: o princípio da ponderação de interesses, valendo este princípio para todas as causas, menos para o consentimento do ofendido; o princípio da carência de interesses, sendo este o princípio que obedece o consentimento do ofendido.
Por sua vez, a doutrina de Jakobs defende que as causas de justificação se reconduzem a três princípios: o princípio da responsabilidade, sendo este aquele que obedece a legítima defesa; o princípio da definição dos próprios interesses, sendo este o princípio que obedece o consentimento do ofendido; princípio da solidariedade, sendo este o princípio que obedece o direito de necessidade.
A nossa posição é a de que não se ganha muito com as tentativas de reduzir as causas de justificação a um ou a alguns princípios, mais importante é estudar a causa em si, pois cada uma tem um regime autónomo. Por isso, vamos estudar as causas de justificação como se estivéssemos a estudar tipos legais de crimes.
Mas, se quiséssemos falar num grande princípio subjacente este seria o princípio da ponderação de interesses, ou seja, um facto é justificado quando serve valores superiores aos que sacrifica.
Em relação aos princípios comuns às causas de justificação, tem que se distinguir causas de justificação ou causas de exclusão da ilicitude de causas de exclusão da culpa. Os exemplos de causas de exclusão da ilicitude são: a legítima defesa, direito de necessidade – artigos 32.º e 34.º. os exemplos de causas de exclusão da culpa, estão consagrados nos artigos 35.º e 37.º.
As causas de exclusão da ilicitude dão ao agente um direito de agir, impondo a terceiro um dever de suportar, excluindo, portanto, o direito de legítima defesa do terceiro, pois, a legítima defesa pressupõe uma agressão ilícita. Vejamos o seguinte exemplo: “por levar uma pessoa ao hospital eu roubei um carro em nome do direito de necessidade – o dono do carro tem o dever de suportar e não pode usar a legítima defesa, porque eu estou a actuar licitamente.”.
Nas causas de exclusão da culpa não há um direito de agir, não há um dever de suportar e estas não excluem a legítima defesa.
As causas de exclusão da ilicitude comunicam-se e aproveitam a todos os comparticipantes. Por sua vez, as causas de exclusão da culpa são pessoais e incomunicáveis.
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3. Elementos subjectivos dos tipos justificadores7
Desde há muito se discute a questão de saber se o efeito justificativo de uma determinada situação deve ficar ou não na dependência de o agente ter actuado com uma certa direcção da vontade, em um certo estado de ânimo ou de conhecimento, por conseguinte, na dependência de certos elementos subjectivos.
Posto isto, coloca-se a seguinte questão: as causas de justificação produzem efeitos através da sua simples existência objectiva ou será que se exigem também alguns elementos subjectivos por parte do agente?
Para responder a esta questão, importa verificar o seguinte exemplo: “o Professor Costa Andrade decide doar o Código no fim da aula. No entanto, nada dizendo deixa o Código em cima da mesa e sai tranquilamente da aula. Entretanto, um aluno pegou o Código e meteu-o na sua pasta. Neste caso, há um elemento objectivo – o consentimento; não há um elemento subjectivo, porque o aluno não sabia da intenção do professor.”.
Assim, relativamente a esta matéria, temos duas teorias: a teoria objectivista
(defendida por Eduardo Correia e por Cavaleiro Ferreira), e a teoria subjectivista.
Segundo a teoria objectivista, às causas de justificação basta a sua existência objectiva para que se produzam os seus efeitos; basta que surjam para que o comportamento passe a ser lícito; assim, no exemplo referido, a pessoa teria agido licitamente porque teria havido consentimento.
Por sua vez, segundo a teoria subjectivista, as causas de justificação exigem, para além da sua existência objectiva (elemento objectivo) determinados elementos subjectivos e, sem estes, as causas de justificação não excluem a ilicitude, logo, não produzem os seus efeitos. Assim, no exemplo referido, a pessoa seria condenada por furto.
A solução no nosso código vem no artigo 38.º n.º4. Esta é uma norma que é prevista para o consentimento, mas, que vale para todas as causas de justificação, porque para estas não é proibida a analogia (bonam partem).
Com isto, qual a teoria consagrada? Na sua totalidade, nenhuma. Assim, a lei atribui ao comportamento (quando faltar o elemento subjectivo) não a pena para o crime consumado, mas, a pena prevista para o crime tentado. Ou seja, a lei atribui à causa de justificação existente, mas, não conhecida, um efeito que é o de neutralizar o desvalor de resultado. O desvalor de resultado é como que neutralizado e, por isso, a causa de justificação vai equipará-lo à tentativa (só chegou a esta conclusão depois de finalismo).
Se fosse consagrada a teoria objectivista o agente não era punido com nenhuma pena; se fosse consagrada a teoria subjectivista o agente era punido com a pena de crime consumado.
De acordo como artigo 38.º n.º4, se o consentimento não for conhecido do agente, este é punível com a pena aplicável à tentativa. Aplica-se, pois, conforme ensinam os defensores desta teoria, por analogia, a pena da tentativa. O regime aqui descrito aplica- se a todas as causas de justificação.
Pode suscitar-se a questão de saber se o artigo 38.º n.º4 remete para a aplicação do regime da tentativa ou somente para a pena que à tentativa seria aplicada. Constituindo a aplicação da pena aplicável ao crime consumado, especialmente atenuada (artigo 23.º n.º2), o traço mais relevante do regime da tentativa, dir-se-ia exagerado sustentar que em qualquer caso de falta dos elementos subjectivos de uma causa de justificação o
7 Os elementos subjectivos para todas as causas de justificação são os seguintes: o conhecimento de que se verifique uma causa de justificação; a vontade ou propósito de realizar o direito que a causa de justificação concede. Para algumas causas de justificação há elementos específicos subjectivos, como por exemplo: a intenção de defesa na legítima defesa.
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facto será punido embora com pena especialmente atenuada. Pois a tentativa é punível, salvo disposição em contrário, nos termos do artigo 23.º n.º1, “se ao crime consumado respectivo corresponder pena superior a 3 anos de prisão
4. A aceitação errónea de uma situação objectiva de justificação (ou casos em que não há justificação mas o agente pensa, erradamente, que há)
O problema que agora vamos considerar é representado por aqueles casos em que objectivamente não se dão os elementos justificadores exigidos, mas (subjectivamente) o agente supõe falsamente que eles se verificam – justificação putativa ou erro sobre os elementos do tipo justificador. A título de exemplo: “A aponta uma pistola a B gritando “a bolsa ou a vida”, mas B saca rapidamente de uma arma que traz no bolso e mata A; verifica-se depois que A, um pândego dotado de um estranho sentido de humor, só queria assustar B e que a arma que lhe apontou não passava de um brinquedo.”.
A questão prático-normativa que, por excelência, aqui se suscita é a de saber se, em caso errónea aceitação de um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto, o agente deve ser punido a título de dolo ou só de negligência.
A fórmula apontada pelo artigo 16.º n.º2, segundo a qual o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto, exclui o dolo.
Esta questão foi abordada, na doutrina, através de três diferentes teorias:
- Teoria do dolo – o erro sobre os pressupostos de uma causa de justificação não pode deixar de ser considerado como um erro que exclui o dolo e só pode ser punível a título de negligência;
- Teoria da culpa (estrita) – o dolo perfaz-se com o conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito, pelo que o erro sobre os pressupostos de uma causa justificativa não pode excluir o dolo;
- Teoria da culpa limitada ou mitigada – o erro sobre os pressupostos de uma causa de justificação ou conforma um verdadeiro erro sobre elementos do tipo objectivo de ilícito ou, constituindo um erro diferente do puro erro sobre a factualidade típica, deve ser-lhe equiparado quanto à consequência jurídica a exclusão do dolo.
Da nossa parte, entendemos que a teoria da culpa limitada ou mitigada é a mais correcta e é, aliás, aquela que encontra acolhimento na lei, concretamente no artigo 16.º n.º2. Não podemos, ainda assim, deixar de afirmar que a teoria da culpa estrita tem razão num ponto: aquele que erra sobre a factualidade típica actua sem dolo do tipo, enquanto quem aceita erroneamente elementos que, a existir, excluiriam a ilicitude, actua com dolo do tipo.
A questão prático-normativa que, por excelência, aqui se suscita é a de saber se, em caso de errónea aceitação de um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto, o agente deve ser punido a título de dolo ou só (se disso for caso) de negligência. A solução é apontada, de forma terminante, pelo artigo 16.º n.º2: “o erro sobre um estado de coisas que, a existir, excluiria a ilicitude do facto”, exclui o dolo. Mas se a questão é decidida pela lei (correctamente) a nível da consequência jurídica, a verdade é que a sua origem reside em fundas controvérsias e dissidências que suscitam a nível de diversos e importantes pontos da doutrina do facto punível.
5. Diferenças entre causas de justificação (ou de exclusão da ilicitude) e causas de exclusão da culpa
A causa de justificação exclui a ilicitude e dá ao agente um direito de agir, impondo ao terceiro um dever de suportar. O terceiro não tem direito de legítima defesa.
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A causa de exclusão da culpa não exclui a ilicitude, pelo que, ao contrário do que acontece na causa de justificação, não é conferido ao agente um direito de agir, nem se impõe ao terceiro um dever de suportar.
As causas de justificação comunicam-se e aproveitam a todos os comparticipantes. As causas de exclusão da culpa são pessoais e incomunicáveis;
As causas de justificação afastam a pena e a medida de segurança. Por seu lado, as causas de exclusão da culpa afastam a pena mas não a medida de segurança.
6. O efeito das causas de justificação
Uma acção relativamente à qual se verifique uma causa de justificação, em todas as suas exigências objectivas e subjectivas, constitui um facto lícito, contra o qual não é admissível legítima defesa.
Além deste efeito, deve assinalar-se que em caso de comparticipação a exclusão da ilicitude se comunica a todos os intervenientes no facto (tendo o paciente dado ao médico o consentimento para a doação de um órgão, a exclusão da ilicitude vale não apenas para o cirurgião, como também para os outros membros da equipa que participam na operação).
Características que conferem relevo prático à distinção entre causas de justificação e causas de exclusão da culpa, pois, ao contrário do que sucede naquelas, pode reagir-se em legítima defesa contra quem actua a coberto de uma causa de exclusão da culpa; os efeitos desta, atenta a natureza pessoal da culpa, não se comunicam aos restantes comparticipantes; e é possível a aplicação de uma medida de segurança a um inimputável que actuou numa situação de inexigibilidade.
XV. A Legítima Defesa
1. Fundamento
A legítima defesa surge historicamente como o tipo justificador mais sedimentado, mais consensual e até há não muito tempo praticamente inquestionado nos traços fundamentais do seu regime.
Nos termos do artigo 32.º, constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro.
O fundamento justificador desta situação foi durante muito tempo pacificamente encontrado na afirmação de que o Direito não deve nunca ceder perante o ilícito (Bergner e Hegel). Mas esta afirmação aparentemente incontestável foi-se tornando cada vez mais questionável.
Acompanhando a doutrina hoje dominante, pode afirmar-se a existência de dois fundamentos que dão força justificativa da legítima defesa:
- Necessidade de defesa da ordem jurídica – através da qual se justificará que se sacrifiquem bens jurídicos de valor superior aos postos em causa pela agressão. Numa palavra, a legítima defesa não estará limitada por uma ideia de proporcionalidade;
- Necessidade de protecção dos bens jurídicos individuais ameaçados pela agressão.
O Professor Taipa de Carvalho defende que a razão por que se deve rejeitar qualquer ideia de proporcionalidade no âmbito da legítima defesa reside na injustiça que seria impor ao agredido, por um agressor doloso e censurável, uma limitação da sua
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liberdade de estar ou da defesa activa dos seus bens. Só aquela especial situação, a de uma agressão actual, ilícita, dolosa e censurável, e a injustiça de impor ao agredido um dever de suportar essa agressão fará cessar o dever de solidariedade do agredido para com o agressor e permitir que sobre ele recaia uma acção de legítima defesa, que não deverá ser limitada pelo princípio da proporcionalidade.
Completamente distinta é a tese de Maria Fernanda Palma, segundo a qual se rejeita este modelo fundamentador da legítima defesa por conduzir a uma inaceitável legítima defesa ilimitada, e se perspectiva esta causa de justificação como um problema de delimitação de direitos, caracterizado por uma exigência de proporcionalidade, a qual não deve permitir a lesão dos bens qualitativamente superiores aos preservados pela acção de defesa suposto um duplo fundamento: a insuportabilidade da agressão a um núcleo de bens essenciais em que se manifesta a dignidade da pessoa humana e a igualdade na protecção dos sujeitos públicos.
Actualmente, praticamente todos reconhecem que na velha máxima de que o Direito não deve em caso algum ceder perante o ilícito há que introduzir limitações que, no seu conjunto, se traduzem nas denominadas limitações ético-sociais da legítima defesa.
2. Requisitos da situação de legítima defesa
Uma situação de legítima defesa supõe a existência de uma agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, devendo a acção de legítima defesa constituir o meio necessário para repelir a agressão.
1) Agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro
O comportamento agressivo
O conceito de agressão deve compreender-se como ameaça derivada de um comportamento humano a um bem juridicamente protegido. A restrição ao comportamento humano resulta do mesmo fundamento da legítima defesa: só seres humanos podem violar o direito. Ficam por isso excluídas do âmbito da legítima defesa as actuações de animais, bem como os perigos para bens jurídicos decorrentes de coisas inanimadas.
Deve por outro lado, exigir-se que a conduta humana seja voluntária, não havendo lugar a uma situação de legítima defesa quando a resposta seja exercida contra uma agressão cometida em estado de inconsciência ou em que a vontade esteja completamente ausente.
Como agressão deve considerar-se tanto o comportamento activo, como o comportamento omissivo referido à violação de um dever jurídico. A agressão cometida sob a forma de omissão é aquela que, neste contexto, mais dúvidas levanta, sobretudo quanto à questão de saber se, além das omissões impróprias ou impuras, cabe legítima defesa contra omissões próprias ou puras.
Ao contrário do que defende parte da doutrina, que restringe o conceito de agressão e a consequente legitimidade da defesa às omissões impuras, certo é que nestes casos nos deparamos com um omitir ilícito do qual resulta um perigo para bens jurídicos, individuais e supra-individuais, e relativamente ao qual, portanto, deve ser afirmada a possibilidade de legítima defesa.
Os interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro
O bem ameaçado deve ser juridicamente (não necessariamente juridico- penalmente) protegido. Por exemplo, a vida, a integridade física, a liberdade, a autodeterminação sexual, a propriedade, a posse, o bom nome, o crédito, etc.
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A grande questão, a este nível, reside em saber se apenas bens individuais ou também bens supra-individuais podem constituir objecto de agressão. E, de facto, não existe razão de princípio para os excluir do catálogo dos interesses juridicamente protegidos para efeito de legítima defesa. O que sucede é apenas que a mais acentuada funcionalização destes bens jurídicos pode conduzir a restringir a necessidade dos meios de defesa ou mesmo eventualmente, em casos excepcionais, a eliminar a necessidade de defesa.
2) A actualidade da agressão
Só é admissível legítima defesa contra agressões actuais. A agressão será actual quando é eminente, já se iniciou ou ainda persiste.
O início da actualidade da agressão
A agressão é iminente quando o bem jurídico se encontra já imediatamente ameaçado.
Parte da doutrina apela, ao regime da tentativa, nomeadamente à definição de actos de execução do artigo 22.º, para estabelecer o momento em que a agressão já é actual para efeitos de legítima defesa. Trata-se de uma solução que não nos parece a melhor, pois, como acaba de ver-se, para além de esta forma se excluir a actualidade de agressões porventura ainda não iniciadas, mas que são iminentes, se faz, de todo o modo, entrar na legítima defesa um regime cuja teleologia lhe é alheia e não é idóneo para resolver as situações em que a agressão se não dirige a bens jurídico-penalmente tutelados.
Discutidas pela doutrina têm sido as situações em que, não obstante a agressão não ser ainda sequer iminente, já se sabe antecipadamente, com certeza ou com um elevado grau de segurança, que ela vai ter lugar.
Para permitir a exclusão da ilicitude por legítima defesa neste tipo de casos alguns autores defendem a chamada teoria da defesa mais eficaz, segundo a qual a agressão seria já actual no momento em que se soubesse que ela viria a ter lugar se o adiamento da reacção para o momento em que ela só fosse possível mediante um grave endurecimento dos meios (legítima defesa preventiva). Trata-se, todavia, de uma proposta que não deve acolhida.
A legítima defesa deve, assim, ser negada nestes casos por não estarmos em presença de agressões actuais.
No contexto do início da actualidade da agressão coloca-se ainda o problema especial da preparação antecipada da defesa, nomeadamente através de aparelhos automáticos (como por exemplo, dispositivos que disparem por si mesmos quando houver uma intromissão na propriedade), relativamente a uma agressão eventual.
A doutrina dominante defende tal meio como legítimo. Mas este ponto de vista só pode ser aceite desde que se verifiquem os restantes pressupostos da legítima defesa, nomeadamente o de que no momento da defesa a agressão seja actual, o da necessidade da defesa e, em especial, o de que a defesa esteja preparada para atingir apenas o agressor. Vistas assim as coisas, pode dizer-se que esta hipótese não apresenta, no fim de contas, qualquer especialidade notável, ao menos em tema de actualidade da agressão, defende o Professor Figueiredo Dias.
O fim da actualidade da agressão
A defesa pode ter lugar até ao último momento em que a agressão ainda persiste. Também aqui nem sempre pode fazer-se coincidir esse momento com o da
consumação, uma vez que são numerosos os crimes em que a agressão e o estado de anti-juridicidade perduram para além da consumação típica.
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Relevante para este efeito é o momento até ao qual a defesa é susceptível de pôr fim à agressão, pois só então fica afastado o perigo de que ela possa vir a revelar-se desnecessária para repelir aquela. Até esse último momento a agressão deve ser considerada como actual. É à luz deste critério que devem ser resolvidos os casos que mais dúvidas levantam neste ponto, ou seja, os dos crimes contra a propriedade, nomeadamente o do crime de furto.
Atente-se no seguinte exemplo: A dispara e fere gravemente B, para evitar que este fuja com as coisas que acabou de subtrair. Poder-se-á considerar a agressão de B como ainda actual?
A solução não deve ser prejudicada pela discussão e posição que se tome acerca do momento da consumação no crime de furto. O entendimento mais razoável é o de que está coberta por legítima defesa a resposta necessária para recuperar a coisa subtraída se a reacção tiver lugar logo após o momento da subtracção, enquanto o ladrão não tiver logrado a posse pacífica da coisa. Os factos praticados depois desse momento já não estarão cobertos pela legítima defesa, uma vez que a agressão deixou de ser actual.
3) A ilicitude da agressão
Pressuposto fundamental da situação de legítima defesa é o de que a agressão seja ilícita. A ilicitude da agressão afere-se à luz da totalidade da ordem jurídica, não tendo de ser especificamente penal. Podem, por conseguinte, repelir-se em legítima defesa agressões violadoras não apenas do direito penal, mas também do direito civil, do direito de mera ordenação social, do direito constitucional, etc., posto que os bens jurídicos em perigo sejam susceptíveis de defesa.
Assim, por exemplo, verificando-se os restantes requisitos, estarão justificados por legítima defesa os factos praticados por A para impedir que B leve o seu colar de pérolas a uma festa sem a sua autorização (furto de uso não punível penalmente – artigo
208.º, a contrario – mas relevante para o direito civil).
Não são ilícitas as agressões justificadas, não podendo contra elas ser exercida legítima defesa. A quem actua ao abrigo de uma causa de justificação é concedido um verdadeiro direito de intervenção na esfera de terceiros, que faz impender sobre estes um dever de suportar aquela conduta e impossibilita uma reacção em legítima defesa.
Daqui decorre que, não estará justificada por legítima defesa a agressão: do ladrão sobre aquele que pela força tenta impedi-lo de fugir com as suas coisas (contra legítima defesa não vale legítima defesa, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6-5-1992).
Questão controversa se tem revelado a da admissibilidade de legítima defesa contra condutas perigosas levadas a cabo com a diligência e o cuidado devidos, mas de onde resulta todavia uma lesão ou um risco iminente de lesão de bens jurídicos. Condutas em relação às quais, a produção de um eventual resultado não pode ser imputada objectivamente ao seu autor por não ter sido ultrapassado o limite do risco juridicamente permitido. Aqui, deve negar-se a possibilidade de uma reacção em legítima defesa.
Como referimos, a ilicitude da agressão não tem de ser especificamente penal. Quando, porém, a agressão tenha relevância penal deverá ser tida em conta a sua natureza dolosa ou negligente, em termos de só ser admitida a legítima defesa contra condutas dolosas?
A doutrina largamente maioritária defende que tanto as agressões dolosas, como negligentes podem dar lugar a uma resposta em legítima defesa. E, de facto, corroboramos desta tendência. Desde logo porque do artigo 32.º não resulta qualquer negação da possibilidade de reacções em legítima defesa contra condutas negligentes.
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Além de que tal restrição introduziria nesta matéria uma grande e mesmo insuportável margem de incerteza e insegurança, dado que em numerosas situações o agredido terá dificuldade em saber se a agressão é dolosa ou negligente.
Os requisitos da acção de defesa
O artigo 32.º afirma que constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão. Parece, deste modo, que a acção de defesa é caracterizada exclusivamente através da necessidade dos meios nela utilizados.
Mas, de facto, os fundamentos da justificação têm a ver com a necessidade do meio empregado mas também com a necessidade da defesa como tal na situação, face à exigência de prevalência do Direito sobre o ilícito na pessoa do agredido, daí que o Professor Costa Andrade defenda que não há defesa legítima se ela for desnecessária.
Até porque, analisando-se também a legítima defesa numa colisão de bens, esta só existirá verdadeiramente se, de acordo com os critérios de valor da ordem jurídica, for necessário salvar um deles à custa do outro.
Assim, constituem requisitos da acção de defesa:
- A necessidade do meio;
- A necessidade de defesa.
A necessidade do meio
A justificação por legítima defesa pressupõe que na acção de defesa sejam usados os meios necessários para repelir a agressão actual e ilícita.
A necessidade de meios é, deste modo, um dos requisitos essenciais da legítima defesa e talvez aquele que, na prática, mais dúvidas e dificuldades suscita. É por isso importante determinar, com a precisão possível, os critérios pelos quais se deverá avaliar se numa concreta situação os meios usados pelo defendente foram os necessários para responder à agressão.
O meio será necessário se for um meio idóneo para deter a agressão e, caso sejam vários os meios adequados de resposta, ele for o menos gravoso para o agressor.
O juízo de necessidade reporta-se ao momento da agressão, tem natureza ex ante, e nele deve ser avaliada objectivamente toda a dinâmica do acontecimento, merecendo especial atenção as características pessoais do agressor (idade, compleição física, perigosidade, etc.), os instrumentos de que dispõe, a intensidade e a surpresa do ataque, em contraposição com as características pessoais do defendente (o porte físico, a experiência em situações de confronto) e os instrumentos de defesa de que poderia lançar mão.
Questão sem autonomia é a da possibilidade de recurso às forças da autoridade. Trata-se de uma condição que decorreria já da correcta interpretação do artigo
32.º. Com efeito, o recurso às autoridades policiais será por via de regra o meio de resposta menos gravoso para o agressor, pelo que, sendo possível recorrer em tempo útil às forças policiais para repelir eficazmente a agressão, deve considerar-se esse meio como o necessário à defesa.
Salvo em contadas situações, na ponderação dos meios não deve entrar-se em linha de conta com a possibilidade de fuga.
A fuga pode constituir, em certos casos, um meio idóneo para evitar a agressão e aquele que certamente menos prejuízos causados ao agressor. Todavia, não deve ser imposta como meio de defesa, não tanto por apelo à tradicional justificação de que a ordem jurídica não pode obrigar o agredido ao uso de meios desonrosos, mas sobretudo porque dessa forma se precludiria a função de prevenção geral a que a legítima defesa
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está adstrita, acabando a ordem jurídica por permitir que facticamente prevalecesse a lei do mais forte em detrimento do agredido.
Uma outra questão levanta-se relativamente ao uso de meio não necessário à defesa, que determina a não justificação do facto por legítima defesa. Estes são os casos do denominado excesso de meios ou excesso intensivo de legítima defesa esténico que, nos termos do artigo 33.º, tem como consequência a afirmação da ilicitude do facto praticado.
Assim, a título de exemplo, haverá um excesso de meios se, no decurso de uma discussão entre duas vizinhas, uma delas, perante a entrada da outra no seu prédio de faca de cozinha em riste, reage desferindo-lhe uma pancada de enxada na cabeça, lesando gravemente a sua integridade física, pois teria sido suficiente apontar a enxada ou no máximo dar um golpe na mão que segurava a faca – Acórdão da Relação de Coimbra de 09-12-1993.
Por outro lado, a agressão pode gerar ou agravar frequentemente situações de forte tensão ou conflito, desencadeando no agredido sentimentos de intranquilidade e insegurança que podem afectar em termos consideráveis o seu discernimento. Toda esta realidade dá azo a que muitas das vezes sejam usados meios mais gravosos para o agressor do que aqueles que teriam sido necessários para a defesa, o que, não se impede a afirmação da ilicitude, pode todavia determinar uma diminuição da culpa e permitir, nos termos do artigo 33.º n.º1, uma atenuação especial da pena ou, inclusive, a própria exclusão da culpa, nos casos em que o excesso de meios fique a dever-se a perturbação, medo ou susto, não censuráveis – excesso intensivo de legítima defesa asténico (artigo
33.º n.º2).
A necessidade da defesa (ou limitações ético-sociais da legítima defesa)
O requisito da necessidade da defesa, para que esta seja legítima, não deixa de integrar-se unicamente através da exigência acabada de estudar da necessidade do meio; antes se impõe que a defesa, ela própria, se revele normativamente imposta para que possa ser vista como exigência de reafirmação do Direito face ao ilícito na pessoa do agredido.
Nesta nossa concepção, ligamos directamente o requisito da necessidade de defesa ao próprio fundamento da legítima defesa.
Analisaremos, agora, nesta sede, casos existem em que, sendo a agressão actual e ilícita, todavia ocorre dentro de um condicionalismo tal que faz com que ela não se apresente como uma ofensa socialmente intolerável dos direitos do agredido.
Daí que a este não deve ser concedido um direito pleno de legítima defesa, justamente porque esta, sejam embora utilizados os meios necessários para a repelir, pode não surgir como socialmente indispensável à afirmação do Direito face ao ilícito na pessoa do agredido ou só o surgir respeitada que seja uma certa proporcionalidade dos bens conflituantes.
Apreciaremos, então, quatro distintas situações:
- Agressões não culposas;
- Agressões provocadas;
- Crassa desproporção do significado da agressão e da defesa;
- Posições especiais.
O primeiro grupo tem a ver com aqueles casos em que a agressão é ilícita e actual mas o agressor age sem culpa; seja porque, relativamente à agressão, se trata de um inimputável, seja porque o agressor actua com falta de consciência do ilícito não censurável ou a coberto de um situação de inexigibilidade legalmente prevista ou situação análoga.
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Ora, nestes casos, quanto menos responsável for o agressor pela sua actuação, tanto mais restritos são os limites de necessidade da defesa. Por isso, a defesa agressiva não é necessária se o agredido pode esquivar-se à agressão, a título de exemplo, afastando-se do doente mental que o insulta em vez de o ofender corporalmente.
Se estas hipóteses não se verificarem, porém, a defesa será necessária e o direito de legítima defesa persiste embora deva manter-se dentro dos limites da compreensão objectiva imposta perante actuações não culposas: já não será por isso defesa necessária, a título de exemplo, a defesa a tiro para evitar sucessivos empurrões acompanhados de insultos de um doente mental.
Pode acontecer que a agressão seja precedida de atitudes de provocação do agredido sobre o agressor.
É o agredido que dá azo à situação de confronto através de injúrias, da prática de actos ilícitos que afectam a esfera jurídica do agressor ou mesmo de actos lícitos mas socialmente reprováveis.
Se a resposta do provocado se traduz numa agressão ilícita e actual para bens jurídicos do provocador; se: “A é insultado por B e responde-lhe a murro, nestes casos deverá ainda afirmar-se a necessidade da defesa dos provocadores / agredidos? Pela omissão que o Código Penal faz a este tipo de situações a questão continua em aberto.
A necessidade de defesa deve ser seguramente negada quando esteja em causa uma agressão pré-ordenamente provocada. A título de exemplo, A, pretendendo ajustar contas antigas com B e sabendo que este é bastante sensível a um certo tipo de insultos, profere propositadamente essas injúrias para suscitar nele uma reacção e, ao abrigo de uma aparência de legítima defesa, poder esfaqueá-lo com uma navalha que trazia escondida.
Nos casos em que a agressão não tenha sido pré-ordenadamente provocada, deve tornar-se, desde logo, indispensável, para que a necessidade da defesa seja negada, que a provocação constitua um facto ilícito ofensivo de um bem jurídico do provocado. Não bastará qualquer ofensa moral ou socialmente condenável.
Para além disto, haverá ainda que exigir da provocação, na formulação de Roxin, uma estreita conexão temporal e uma adequada proporção com a agressão que provoca. Quem injuriou outrem não verá restringida a sua faculdade de legítima defesa se o injuriado o ataca um ano depois; e quem seja responsável de umas ofensas corporais leves e se torne objecto de uma reacção totalmente desproporcionada (como uma tentativa de homicídio por parte do lesado) não tem que sofrer redução alguma das suas faculdades defensivas.
Crassa desproporção do significado da agressão e da defesa
Num outro grupo de casos a limitação da necessidade da defesa ocorre em função da verificação de uma crassa desproporção do peso da agressão para o agredido e da defesa para o agressor. É o caso de escola do paralítico, A, que, na falta de outro meio, dispara a matar contra o ladrão B, que quer furtar-lhe a carteira que contém 5 euros.
Neste âmbito, não serve invocar a irrelevância social da agressão, no sentido da sua insignificância. Pelo que, um crescente número de autores defende, pelas mais diversas formas, fazer entrar directamente uma ideia de proporcionalidade dos bens jurídicos em conflito como condição de legitimidade da defesa. Mas todo este pensamento se revela infiel a pressupostos básicos do fundamento justificante da legítima defesa e, na verdade, tanto à ideia da prevenção do Direito sobre o ilícito, como ao irrenunciável efeito preventivo desta causa de justificação; confundindo até limites perigosos as causas justificativas da legítima defesa e do direito de necessidade.
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A perspectiva que nos parece correcta, conduzindo à exclusão da necessidade da defesa e seguramente mais próxima do seu fundamento justificante, é a que liga à ideia, relativamente antiga, segundo a qual não pode ser legítima a defesa que se revele notoriamente excessiva face aos bens agredidos e que, nessa medida, representa um abuso do direito de legítima defesa.
Posições especiais
Um último grupo de hipóteses relativamente às quais não pode com razão ser questionada a necessidade de defesa, nos termos preditos, é a de os participantes se encontrarem numa mútua posição especial de proximidade existencial.
O caso tem sido sobretudo considerado relativamente às relações entre cônjuges ou pessoas que vivam em situação análoga.
Comprovada a efectiva proximidade existencial está justificada uma maior compreensão da agressão (limitada, por certo): o ameaçado deve sempre que possível evitar a agressão, escolher o meio menos gravoso de defesa, ainda que ele se apresente menos seguro para repelir a agressão e renunciar a uma defesa que ponha em perigo a vida ou a integridade física essencial do agredido (a menos que tal se revele impossível face ao peso da agressão).
Actos de autoridade
Ainda relacionado com a necessidade da defesa, temos os casos respeitantes a actuações da autoridade, nomeadamente forças policiais.
A questão deve colocar-se especialmente a propósito do uso de armas de fogo pelos órgãos de polícia criminal, objecto de regulamentação específica pelo Decreto-Lei
457/99 de 5 de Novembro. Este diploma enuncia os princípios que devem reger esta matéria e define o quadro em que esses princípios devem concretizar-se, impondo fortes limitações ao uso de armas de fogo quer quanto às situações em que ele é permitido, quer quanto aos procedimentos a adoptar.
O recurso a arma de fogo só é permitido em caso de absoluta necessidade, como medida extrema, quando outros meios menos perigosos se mostrem ineficazes, e desde que proporcionado às circunstâncias (artigo 2.º n.º1, do referido Decreto-Lei); só sendo de admitir o seu uso contra pessoas quando tal se revele necessário para repelir agressões que constituam um perigo eminente de morte ou ofensa grave que ameace vidas humanas (artigo 3.º n.º2).
O auxílio necessário
O artigo 32.º estende a justificação por legítima defesa aos casos em que esta é exercida para proteger interesses de terceiro: é esta forma de legítima defesa que doutrinalmente se designa de auxílio necessário.
Assim, compreende-se sem mais que a defesa seja consentida não só ao agredido mas a qualquer pessoa.
Problema discutido é o complexo de saber como deve decidir-se o caso em que o agredido não quer ser defendido ou quer ser ele próprio a defender-se.
Nesta situação, mesmo perante uma agressão actual e ilícita, a defesa de terceiro levada a cabo contra ou sem a vontade do agredido não pode reivindicar-se como exercício de legítima defesa do artigo 32.º – ela não representa a defesa do Direito na pessoa do agredido.
A legítima defesa no Código Civil
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A ordem jurídica portuguesa prevê a figura do direito de legítima defesa não apenas no preceito do Código Penal que temos vindo a analisar, mas também no artigo
337.º do Código Civil.
No Código Civil pressupõe-se a exigência de que o prejuízo causado pelo acto de defesa não seja manifestamente superior ao que derivaria da agressão. Além disso, este preceito considera como pressupostos da situação de legítima defesa a existência de uma agressão actual e ilícita contra a pessoa ou o património do agente ou de terceiro.
A propósito da questão da proporcionalidade, dizer apenas, muito sinteticamente, que após a entrada em vigor do artigo 32.º do Código Penal se deu a revogação do artigo 337.º do Código Civil na parte em que exige que o prejuízo causado pelo acto de defesa não seja manifestamente superior ao que pode resultar da agressão.
XVI. Os Estados de Necessidade Justificantes
1. O direito de necessidade do artigo 34.º do Código Penal
O Código Penal português contém no seu artigo 34.º uma regulamentação do direito de necessidade, também chamado estado de necessidade objectivo ou estado de necessidade justificante.
O artigo 34.º baseia-se na denominada teoria diferenciada do estado de necessidade, por inspiração no pensamento de Hegel e Feuerbach. De acordo com esta teoria, o estado de necessidade surgiria como justificante (estado de necessidade objectivo) sempre que se tratasse de facto típico praticado como meio adequado para salvaguardar um bem ou interesse jurídico, do agente ou de terceiro, de maior valor do que o sacrificado. E como simplesmente desculpante (estado de necessidade subjectivo) quando o valor salvaguardado não fosse de maior valor do que o sacrificado.
Assim, o Código Penal distingue o estado de necessidade como causa de justificação (artigo 34.º) do estado de necessidade como causa de exclusão da culpa (artigo 35.º), mas submetendo até certo ponto, em todo o caso, as duas figuras a um denominador comum – o do afastamento, através da prática de um facto típico, de um perigo actual que ameaça bens jurídicos do agente ou de terceiro: se o interesse salvaguardado for de valor sensivelmente superior ao sacrificado, o facto está justificado por direito de necessidade; se não o for o facto é ilícito, mas o agente poderá, dentro de certos e estritos pressupostos, ver a sua culpa excluída.
2. A situação de necessidade
2.1 Os bens (interesses) jurídicos conflituantes
A situação de necessidade pressupõe que um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro só possa ser afastado se outro bem jurídico for lesado ou posto em perigo.
Protegido pelo direito de necessidade pode ser assim qualquer bem jurídico, penal ou não penal.
Mais complexo é determinar se são susceptíveis de se cobrirem com o direito de necessidade bens jurídicos não do indivíduo, mas da comunidade: e, de facto, os bens jurídicos da comunidade estão também abrangidos pelo estado de necessidade. Conforme afirma Marques da Silva, o objecto do direito de necessidade é qualquer interesse juridicamente protegido.
2.2 O perigo que ameaça o bem jurídico
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Importa aqui pôr em evidência que o bem jurídico a salvaguardar ter que se encontrar objectivamente em perigo, porque só então se pode justificar que um dever de suportar a acção típica recaia sobre o atingido pela intervenção, demais se ele não for implicado na situação inicial. No mesmo sentido corre, de resto, a exigência expressa no art. 34º de que se trate de um perigo actual.
Com algumas correcções, em todo o caso, no sentido do seu alargamento: o perigo deverá para este efeito considerar-se actual mesmo quando não é ainda iminente, mas o protelamento do facto salvador representaria uma potencialização do perigo.
2.3 A provocação do perigo
Nos termos da alínea a) do artigo 34.º é necessário à justificação não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro.
Tudo estará em saber, desde logo, o que pretendeu a lei com o requisito da voluntariedade da criação do perigo. Deve defender-se aqui que a justificação só deverá considerar-se afastada se a situação foi intencionalmente provocada pelo agente, isto é, se ele premeditadamente criou a situação para poder livrar-se dela à custa da lesão de bens jurídicos alheios.
A própria provocação do perigo não deverá servir, porém, para negar a justificação por estado de necessidade quando se trate de proteger interesses de terceiro. A título de exemplo: se A criou intencionalmente um perigo de incêndio na casa de B e posteriormente se arrepende, pode louvar-se do estado de necessidade se entra sem autorização na casa de C para chamar os bombeiros.
3. O princípio do interesse preponderante
De acordo com o disposto na alínea b) do artigo 34.º só tem lugar a justificação por direito de necessidade se houver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado.
Relevante é por isso, desde logo, a hierarquia dos bens jurídicos em confronto; mas já se compreenderá não ser possível (nem legal) oferecer uma fórmula unitária para resolução definitiva do problema da ponderação.
Importa, por isso, agora analisar os diferentes critérios:
- Nas molduras penais, quando os bens jurídicos conflituantes se encontram juridico-penalmente protegidos, o recurso à medida legal da pena, como que é ameaçada, a sua violação constitui, sem dúvida, um dos pontos de apoio mais importantes para a determinação da hierarquia respectiva;
- A intensidade da lesão do bem jurídico, um papel fundamental na ponderação cabe, na verdade, à intensidade da lesão do bem jurídico, nomeadamente quanto a saber se está em causa o aniquilamento completo do interesse ou só uma sua lesão parcial ou passageira. Os bens jurídicos integridade física (artigo 143.º e ss.) ou liberdade pessoal (artigo 153.º) devem em regra reputar- se de superior hierarquia à de bens jurídicos puramente patrimoniais;
- O grau de perigo, nos casos em que a violação do bem jurídico não surja como absolutamente segura, mas como mais ou menos provável, um papel fundamental cabe ao grau do perigo que é afastado ou criado com a acção de salvamento. Como Roxin formula, quem, para evitar um dano que seguramente se produzirá se não actuar, leva a cabo uma acção salvadora que só em pequena medida põe em perigo outro bem jurídico, prosseguirá em regra o interesse substancialmente preponderante. Mas este será sobretudo o
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caso quando, para fazer face a um perigo concreto de uma certa importância, seja aceite a produção somente de perigos abstractos;
- A autonomia pessoal do lesado, outro ponto de vista da maior relevância para a ponderação sempre que o bem jurídico ofendido seja de carácter eminentemente pessoal é o da autonomia pessoal do lesado. Não pode na verdade esquecer-se, nem minimizar-se que o facto necessitado lesa, para além do bem jurídico do terceiro não implicado, o seu direito de autodeterminação e de auto-realização;
- A imponderabilidade da vida de pessoa já nascida, na doutrina defende-se, maioritariamente, que a vida humana de pessoa já nascida deve ser excluída da ponderação. A vida é um bem jurídico de valor incomparável e insubstituível, que ocupa um primeiro e indisputável lugar, numa concepção personalista ética como a que deve presidir a toda a ordem jurídica liberal e democrática, na hierarquia dos bens jurídicos.
Assim, não são legítimas diferenciações qualitativas (entre o valor de vidas humanas: a da criança ou do velho, do sábio ou do analfabeto, etc.) não tão-pouco quantitativas: uma vida vale exactamente o mesmo que dez ou cem, de acordo com a sentença de Koestler (Une vie ne vaut rien. Mais rien ne vaut une vie).
Em conflito de vidas contra vidas vale o princípio da imponderabilidade da vida para efeito de estado de necessidade justificante.
Na tentativa de encontrar uma limitação fundamentada do princípio acima exposto, já de há muito se pretende que com ela se depara nos casos chamados de comunidade de perigo: quando, havendo várias pessoas, todas elas numa situação de perigo de vida, se mata uma ou algumas para impedir que todas pereçam. Nestas hipóteses a acção de homicídio encontrar-se-ia justificada em nome do direito de necessidade.
Diferentemente se passam as coisas, porém, em casos como o caso dos montanhistas (Alemanha, 1895): A, um dos vários montanhistas unidos por uma mesma corda, cai num precipício, de tal modo que é impossível iça-lo e a corda vai partir, arrastando todos eles; por isso e porque A se encontra no extremo da corda, um outro montanhista, B, corta-a, matando A, mas salvando-se a si e a todos os restantes companheiros. Nesta situação, não há ilicitude.
4. A sensível superioridade do interesse salvaguardado
Segundo a alínea b) do artigo 34.º, para que a justificação seja reconhecida é necessário não apenas que, na ponderação de bens, o bem jurídico salvaguardado prepondere sobre o sacrificado, mas que haja sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado. Esta exigência é perfeitamente compreensível: no estado de necessidade, ao contrário do que acontece na legítima defesa, a acção de afastamento do perigo atinge, em regra, interesses de terceiros, no sentido de estranhos à situação de necessidade.
Quando a lei se refere à sensível superioridade está a querer sublinhar o seguinte: não tanto ou não só que o interesse salvaguardado se situa, numa escala puramente aritmética, muito acima do interesse sacrificado, mas que a justificação ocorra apenas quando é clara, inequívoca, indubitável ou terminante a aludida superioridade à luz dos factores relevantes de ponderação.
Exigências óbvias de segurança jurídica falam neste sentido relativamente a uma hipótese que, como a do direito de necessidade, se repercute em princípio, insiste-se, na esfera jurídica de um estranho ao conflito.
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5. A adequação do meio
O artigo 34.º não confere a justificação por direito de necessidade à utilização pelo agente de um meio qualquer, mas apenas do meio adequado para afastar o perigo.
Desta forma, o facto não estará coberto por direito de necessidade se o agente utilizar um meio que, segundo a experiência comum e uma consideração objectiva, é inidóneo para salvaguardar o interesse ameaçado.
6. O auxílio de terceiro
Uma vez que aquilo que justifica a acção em direito de necessidade não é uma situação de coacção pessoal, mas a preservação do interesse sensivelmente preponderante, qualquer pessoa pode levá-la a cabo e reivindicar-se da justificação. Nisto consiste o auxílio de terceiro.
7. Requisitos subjectivos
No que respeita às exigências subjectivas para afirmação do estado de necessidade justificante, o agente deve conhecer a situação de conflito, nos termos gerais expostos, e actuar com a consciência de salvaguardar o interesse preponderante.
Pelo que, não se deve exigir do agente, como condição de eficácia justificante do estado de necessidade, uma cuidadosa comprovação prévia dos pressupostos.
8. O estado de necessidade defensivo jurídico-penal
O que há de específico nesta figura é que o agente que actua em estado de necessidade se defende de um perigo que tem origem na pessoa que vai ser vítima da acção necessitada.
Em termos tais, porém, que o agente não pode louvar-se de uma legítima defesa, que não existe por falta de um requisito do facto perigoso: ou porque este nem sequer configura uma agressão, ou porque não é ilícito, ou porque não é actual. Em qualquer destes casos, aos agentes deve ser creditada a justificação. O direito de necessidade defensivo (nascido após o finalismo) faz com que todos estes casos sejam considerados lícitos.
A propósito do fundamento legal desta figura, autores há que defendem que o estado de necessidade defensivo se encontra consagrado no artigo 34.º; por outro lado, há quem defenda que se trata de uma fórmula supra-legal.
No que respeita ao regime desta figura, deve afirmar-se que o bem jurídico que se salva não tem necessariamente (ou sensivelmente) de ser superior ao que se sacrifica, podendo mesmo ser inferior.
Posto isto, verifica-se que existem alguns pontos de contacto entre o regime do direito de necessidade defensivo e o da legítima defesa.
9. O estado de necessidade jurídico-civil
À semelhança do que acontece em matéria de legítima defesa, a lei civil consagra também um estado de necessidade objectivo no artigo 339.º do Código Civil.
A propósito do eventual confronto entre o regime do Código Civil e o do Código Penal, deve afirmar-se que só será de afastar a justificação pelo estado de necessidade do artigo 339.º n.º1, nos casos em que o agente deliberada e intencionalmente deu origem à situação de necessidade para os seus próprios interesses, como meio de depois se poder fazer valer dela para se imiscuir na esfera de terceiros.
10. O conflito de deveres de actuar justificante
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Durante muito tempo não tomou a doutrina penal consciência da especificidade e relativa autonomia do conflito de deveres perante a teoria do estado de necessidade justificante.
É hoje geralmente aceite doutrina diversa, sem prejuízo do reconhecimento de que o conflito de deveres repousa no mesmo fundamento justificador do direito de necessidade. Em todo o caso, a colisão de deveres assume especificidades que o autonomizam face ao direito de necessidade. Dessa consciência é fruto a regulamentação autónoma que o conflito de deveres recebe na 1ª parte do artigo 36.º n.º1 do Código Penal.
Autêntico conflito de deveres susceptível de conduzir à justificação existe apenas quando na situação colidem distintos deveres de acção, dos quais só um pode ser cumprido. No exemplo de escola, quando o pai vê dois filhos em risco de se afogarem e apenas pode salvar um deles.
A única solução materialmente justa é considerar justificado o facto correspondente ao cumprimento de um dos deveres em colisão, mesmo à custa de deixar o outro incumprido, suposto que o valor do dever cumprido seja pelo menos igual ao daquele que se sacrifica. Deve ponderar-se que no conflito de deveres, diferentemente do que sucede no conflito de bens, o agente não é livre de se imiscuir ou não do conflito. Mesmo perante deveres iguais, ele deve pelo menos cumprir um deles, sob pena de o seu comportamento ser ilícito.
É esta pois a solução correcta do conflito, a qual nunca poderia ser lograda nos quadros do direito de necessidade do artigo 34.º e que, certamente, por isso, o artigo
36.º n.º1 1ª parte, expressamente consagra. No exemplo apontado, por conseguinte, a conduta do pai não é apenas culposa, mas justificada e por isso, em definitivo, lícita.
Para além disto, cumpre acentuar que também no conflito de deveres o resultado da ponderação não deve resultar simplesmente da hierarquia dos bens jurídicos em colisão, mas da ponderação global e concreta dos interesses em conflito.
XVII. Os Consentimentos Justificantes
1. O consentimento real ou efectivo (ou simplesmente consentimento)
Analisaremos agora a figura do consentimento real, também denominado consentimento do ofendido ou consentimento do lesado. Esta figura vem prevista nos artigos 38.º e 39.º do Código Penal.
Relativamente ao fundamento do consentimento, deve afirmar-se que o seu fundamento é a autonomia pessoal com o consequente direito de autodeterminação do titular do bem jurídico lesado.
Deve salientar-se que o consentimento surge como um caso de colisão de interesses ou de bens em si mesmos dignos de tutela penal. Conforme defende o Professor Costa Andrade, os casos de consentimento são, em definitivo, casos de lesão efectiva de bens jurídicos. São casos em que se verifica e se mantém a perda que a lesão de um bem jurídico sempre representa ao nível do sistema social.
É relevante ainda frisar que o consentimento exclui o tipo nos casos em que o tipo protege bens jurídicos com a estrutura de liberdades que se realizam na comunicação inter-subjectiva. Nestes casos, o consentimento é uma forma de realização do bem jurídico. A esta forma de consentimento damos a designação de acordo. Atente-se no exemplo: “Se A pratica actos sexuais de relevo com B, mas os actos são levados a cabo de pleno acordo, não pode decerto afirmar-se, ab initio, que o comportamento de A preenche o tipo objectivo de ilícito da coacção sexual (artigo 163.º)”.
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Além disso, situações há também nas quais o consentimento exclui a ilicitude (consentimento justificante ou consentimento do ofendido). Nestas situações, o consentimento funciona como uma verdadeira causa de justificação.
2. Pressupostos de eficácia do consentimento justificante
1) O carácter pessoal e a disponibilidade do bem jurídico lesado;
2) A não contrariedade do facto consentido aos bons costumes;
3) O acto de autodeterminação;
4) O conhecimento do consentimento.
1) Lesado pelo facto consentido só pode ser um bem jurídico pessoal.
Relacionado com esta questão suscita-se o problema mais complexo dos pressupostos de eficácia do consentimento: o do necessário (artigo 38.º) carácter livremente disponível do interesse a que o consentimento se refere. Indisponíveis são seguramente os bens jurídicos comunitários como tais protegidos.
No que toca a bens jurídicos pessoais, o do património não suscita, no outro extremo, dificuldades especiais: ele é, em princípio, disponível pelo seu titular e por isso, sempre que a concordância assuma a forma de consentimento e não de simples acordo, o consentimento deve considerar-se relevante.
Lembrando que o tratamento presente tem por objecto os delitos dolosos de acção, a doutrina praticamente unânime segundo a qual a vida constitui um bem jurídico absolutamente indisponível merece aprovação. Indisponível, acentue-se, desde já, perante lesões provenientes de terceiros, não quando provenientes do seu próprio titular.
O que se diz para o bem jurídico “vida” deve, de resto, repetir-se, com segurança, para quaisquer outros direitos de personalidade elementares.
2) De acordo com o disposto na parte final do artigo 38.º n.º1 é pressuposto de relevância justificadora do consentimento que o facto consentido não ofenda os bons costumes.
O facto consentido constitui ofensa aos bons costumes sempre que (mas só quando) ele possui uma gravidade e (sobretudo) uma irreversibilidade tais que fazem com que, nesses casos, apesar da disponibilidade de princípio do bem jurídico, a lei valore a sua lesão mais altamente do que a auto-realização do seu titular. O que significa que é relativamente aos tipos de ilícito das ofensas à integridade física que a cláusula dos bons costumes assume o seu relevo: o consentimento será ineficaz quando a ofensa à integridade física possua uma gravidade tal – nomeadamente uma irreversibilidade, como por exemplo, uma mutilação – que, perante ela, o valor da auto-realização pessoal deva ceder o passo.
3) Incapacidade e representação: Para que o consentimento se assuma como um acto de autêntica auto-realização, torna-se antes de tudo necessário que quem consente seja capaz. Em caso de incapacidade penal, o princípio será o de que a legitimidade para consentir em nome do incapaz cabe ao representante legal. Mas este princípio não se afirmará sem limitações ou mesmo excepções, nomeadamente em matéria de ofensas corporais graves, como por exemplo, intervenções médico-cirúrgicas fora dos pressupostos do artigo 150.º.
Falta de liberdade da vontade: acto de autodeterminação autêntica só existirá, obviamente, se o consentimento, como se exprime o artigo 38.º n.º2, traduzir uma vontade séria, livre e esclarecida do titular do interesse juridicamente protegido. Esta exigência contém implicações que nem sempre se revelarão de fácil desenvolvimento.
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Necessário se torna que o consentimento seja esclarecido, o que, designadamente, nas ofensas corporais, pode implicar a notícia sobre a índole, o alcance, a envergadura e as possíveis consequências da ofensa. Necessário se torna, depois, que o consentimento se não revele inquinado por qualquer vício da vontade.
Em último termo, uma eventual ineficácia do consentimento deverá depender de o erro ser um tal que, por um lado, põe em causa a expressão da (e o respeito pela) autonomia pessoal que há-de estar presente no verdadeiro acto de autodeterminação. Irrelevantes, no sentido de não porem em causa a eficácia do consentimento na ofensa corporal, serão assim, por exemplo, erros como o de o gerente de uma clínica absolutamente falida obter de A o consentimento para doar sangue contra o pagamento de uma soma de dinheiro, ocultando aquela situação de falência – erro não referido ao bem jurídico integridade física.
Formalismo: para que o consentimento traduza um acto autêntico de autodeterminação não se torna necessário que a sua eficácia seja posta na dependência da observância de quaisquer formalismos: basta que ele exista e seja manifestado.
Além disso, afirma o artigo 38.º n.º2 que o consentimento pode ser revogado a todo o tempo.
4) A causa de justificação só pode produzir o seu pleno efeito se a situação de justificação for conhecida do agente. Isto vale integralmente para o consentimento, devendo exigir-se que este seja conhecido do agente.
3. O consentimento presumido
Nos termos do artigo 39.º n.º2, há consentimento presumido quando a situação em que o agente actua permitir razoavelmente supor que o titular do interesse juridicamente protegido teria eficazmente consentido no facto, se conhecesse as circunstâncias em que este é praticado.
Trata-se aqui, fundamentalmente, de situações em que o titular do bem jurídico lesado não consentiu na ofensa, mas nela teria presumivelmente consentido se lhe tivesse sido possível pôr a questão.
A propósito do fundamento do consentimento presumido deve dizer-se que, aquele reside numa presunção da direcção da vontade do lesado: do que se trata seria, pois, de uma equiparação a um consentimento, real e eficazmente prestado, de um facto no qual o lesão teria presumivelmente consentido se tivesse conhecido a situação.
Assim, o artigo 39.º n.º1 manda equiparar o consentimento presumido ao consentimento efectivo; e o n.º2 reporta a eficácia daquele não ao interesse do lesado, mas à suposição razoável de que ele teria consentido se conhecesse as circunstâncias em que o facto é praticado.
Requisitos de eficácia: uma vez que o consentimento presumido se equipara ao consentimento efectivo, naquele hão-de, em princípio, concorrer os mesmos requisitos de eficácia. Antes de tudo, que o consentimento diga respeito a interesses jurídicos livremente disponíveis e que o facto não ofenda os bons costumes.
Além disso, é essencial que se verifique, por uma parte, a necessidade de uma decisão que não pode ser retardada (porque o atraso eliminaria a possibilidade de escolha ou a ele estariam ligados riscos desrazoáveis) e, por outra, a impossibilidade de ela ser tomada pelo interessado.
XVIII. Outras Causas de Justificação
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1.Actuação oficial
As causas de justificação estudadas até aqui constituem o resultado de uma escolha, justificada pela particular relevância e frequência que aquelas assumem para a questão da responsabilidade jurídico-penal.
No entanto, outras devem também ser mencionadas numa exposição sistemática da Parte Geral do direito penal, como a que temos vindo a fazer.
2. A actuação no lugar de um órgão oficial (agere pro magistratu)
Aos fundamentos do Estado de Direito continua a pertencer o princípio do monopólio estadual da utilização da força. Este princípio não exclui, todavia, o direito ou poder de actuação legítima dos particulares em lugar do Estado ou dos seus órgãos como medida provisória de realização da ordem jurídica. Analisemos pois duas diferentes situações de actuação pro magistratu.
2.1 Detenção em flagrante delito
Manifestação desta legítima actuação é, desde logo, o poder que assiste a qualquer pessoa para proceder à detenção em flagrante delito do agente de um crime punível com pena de prisão, se qualquer entidade judiciária ou policial não estiver presente nem puder ser chamada em tempo útil (artigo 225.º n.º1 alínea b do Código de Processo Penal).
Condição de justificação da privação da liberdade é, todavia, que a pessoa que tiver procedido à detenção entregue imediatamente o detido à autoridade judiciária ou entidade policial. Mas, uma qualquer violação típica da integridade física do detido (mesmo a tendente a evitar a fuga), não se encontrará justificada.
A justificação da actuação no lugar de um órgão oficial fica, assim, estritamente subordinada aos princípios da provisoriedade e da subsidiariedade.
2.2 A acção directa, artigo 336.º do Código Civil
Tratando-se de interesses jurídico-civilmente relevantes, é lícito o recurso à força com o fim de evitar a inutilização prática do direito próprio.
Requisitos de justificação são, por um lado, que o recurso à força seja indispensável, dada a impossibilidade de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para alcançar a finalidade visada; por outro lado, que o agente não exceda o que for necessário para evitar o prejuízo; e, finalmente, que o facto não sacrifique interesses superiores aos que o agente visa realizar ou assegurar.
3. O direito de correcção
Um direito de correcção como justificação do facto coloca-se hoje praticamente apenas relativamente a pais (artigos 1878.º e 1885.º n.º1 do Código Civil) e a tutores (artigo 1935.º do Código Civil).
O círculo dos factos relativamente aos quais o exercício de um tal direito pode actuar tem que ver predominantemente com as ofensas à integridade física, os chamados castigos corporais, desde que se trate de factos típicos.
No que respeita à justificação, a doutrina dominante aponta três requisitos fundamentais (e cumulativos):
- Que o agente actue com finalidade educativa e não para dar vazão à sua irritação, para descarregar a tensão nervosa ou, ainda menos, pelo prazer de infligir sofrimento ao dependente ou para lograr aquilo que apeteceria chamar um efeito de prevenção, geral ou especial, de intimidação;
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- Que o castigo seja criterioso e portanto proporcional: no sentido de que ele deve ser o mais leve possível e não no de que ele possa (que não pode) assumir um peso equiparado ao da falta cometida pelo educando, quando esta foi grave ou muito grave;
- E que ele seja sempre e em todos os casos moderado, nunca atingindo pois o limite de uma qualquer ofensa qualificada ou, de todo o modo, atentatória da dignidade do menor.
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