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sexta-feira, 5 de julho de 2013

Além Deus...






















    Além-Deus    




I / ABISMO 

OLHO O TEJO, e de tal arte 
Que me esquece olhar olhando, 
E súbito isto me bate 
De encontro ao devaneando — 
O que é ser-rio, e correr? 
O que é está-lo eu a ver? 

Sinto de repente pouco, 
Vácuo, o momento, o lugar. 
Tudo de repente é oco — 
Mesmo o meu estar a pensar. 
Tudo — eu e o mundo em redor — 
Fica mais que exterior. 

Perde tudo o ser, ficar, 
E do pensar se me some. 
Fico sem poder ligar 
Ser, ideia, alma de nome 
A mim, à terra e aos céus... 

E súbito encontro Deus. 


II / PASSOU 

Passou, fora de Quando, 
De Porquê, e de Passando..., 
Turbilhão de Ignorado, 
Sem ter turbilhonado..., 

Vasto por fora do Vasto 
Sem ser, que a si se assombra... 

O Universo é o seu rasto... 
Deus é a sua sombra... 


III/ A VOZ DE DEUS 

Brilha uma voz na noute... 
De dentro de Fora ouvi-a... 
Ó Universo, eu sou-te... 
Oh, o horror da alegria 
Deste pavor, do archote 
Se apagar, que me guia! 

Cinzas de idéia e de nome 
Em mim, e a voz: Ó mundo, 
Sermente em ti eu sou-me... 
Mero eco de mim, me inundo 
De ondas de negro lume 
Em que para Deus me afundo. 


IV / A QUEDA 

Da minha ideia do mundo 
Caí... 
Vácuo além de profundo, 
Sem ter Eu nem Ali... 

Vácuo sem si-próprio, caos 
De ser pensado como ser... 
Escada absoluta sem degraus... 
Visão que se não pode ver... 

Além-Deus! Além-Deus! Negra calma... 
Clarão de Desconhecido... 
Tudo tem outro sentido, ó alma, 
Mesmo o ter-um-sentido... 


V / BRAÇO SEM CORPO BRANDINDO UM GLÁDIO 

(Entre a árvore e o vê-la) 

Entre a árvore e o vê-la 
Onde está o sonho? 
Que arco da ponte mais vela 
Deus?... E eu fico tristonho 
Por não saber se a curva da ponte 
É a curva do horizonte... 

Entre o que vive e a vida 
Pra que lado corre o rio? 
Árvore de folhas vestida — 
Entre isso e Árvore há fio? 
Pombas voando — o pombal 
Está-lhes sempre à direita, ou é real? 

Deus é um grande Intervalo, 
Mas entre quê e quê?... 
Entre o que digo e o que calo 
Existo? Quem é que me vê? 
Erro-me... E o pombal elevado 
Está em torno na pomba, ou de lado? 




     Fernando Pessoa      
  "Cancioneiro"  










     TITO COLAÇO     
 05.07.2013 










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