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domingo, 7 de julho de 2013

O vulgar e a essência...









(Se eu for atropelado por uma bicicleta de criança, essa
bicicleta de criança torna-se parte da minha história.
)


(...)








A vulgaridade é um lar. O quotidiano é materno. Depois de uma incursão larga na grande poesia, aos montes da aspiração sublime, aos penhascos do transcendente e do oculto, sabe melhor que bem, sabe a tudo quanto é quente na vida, regressar à estalagem onde riem os parvos felizes, beber com eles, parvo também, como Deus nos fez, contente do universo que nos foi dado e deixando o mais aos que trepam montanhas para não fazer nada lá no alto.
Nada me comove que se diga, de um homem que tenho por louco ou néscio, que supera a um homem vulgar em muitos casos e conseguimentos da vida. Os epilépticos são, na crise, fortíssimos; os paranóicos raciocinam como poucos homens normais conseguem discorrer; os delirantes com mania religiosa agregam multidões de crentes como poucos (se alguns) demagogos as agregam, e com uma força íntima que estes não logram dar aos seus sequazes. E isto tudo não prova senão que a loucura é loucura. Prefiro a derrota com o conhecimento da beleza das flores, que a vitória no meio dos desertos, cheia da cegueira da alma a sós com a sua nulidade separada.

(...)

Depois de uma noite mal-dormida, toda a gente não gosta de nós. O sono ido levou consigo qualquer coisa que nos tornava humanos. Há uma irritação latente connosco, parece, no mesmo ar inorgânico que nos cerca. Somos nós, afinal, que nos desapoiamos, e é entre nós e nós que se fere a diplomacia da batalha surda.
Tenho hoje arrastado pela rua os pés e o grande cansaço.
Tenho a alma reduzida a uma meada atada, e o que sou e fui, que sou eu, esqueceu-se de seu nome. Se tenho amanhã, não sei senão que não dormi, e a confusão de vários intervalos põe grandes silêncios na minha fala interna.

(...)

E, em meio de tudo isto, vou pela rua fora, dorminhoco da minha vagabundagem folha. Qualquer vento lento me varreu do solo, e erro, como um fim de crepúsculo, entre os acontecimentos da paisagem. Pesam-me as pálpebras nos pés arrastados. Quisera dormir porque ando. Tenho a boca fechada como se fosse para os beiços se pegarem. Naufrago o meu deambular.
Sim, não dormi, mas estou mais certo assim, quando nunca dormi nem durmo. Sou eu verdadeiramente nesta eternidade casual e simbólica do estado de meia-alma em que me iludo. Uma ou outra pessoa olha-me como se me conhecesse e me estranhasse. Sinto que os olhos também com órbitas sentidas sob pálpebras que as roçam, e não quero saber de haver mundo.
Tenho sono, muito sono, todo o sono!

(...)

Num sono falso longínquo relembrei tudo quanto fora, e foi com uma nitidez de paisagem vista que se me ergueu de repente, antes ou depois de tudo, o lado largo da quinta velha, de onde, a meio da visão, a eira se erguia vazia.
Senti imediatamente a inutilidade da vida. Ver, sentir, lembrar, esquecer — tudo isso se me confundiu, numa vaga dor nos cotovelos, com o murmúrio incerto da rua próxima e os pequenos ruídos do trabalho sossegado no escritório quedo.
Quando, depostas as mãos sobre a mesa ao alto, lancei sobre o que lá via o olhar que deveria ser de um cansaço cheio de mundos mortos, a primeira coisa que vi, com ver, foi uma mosca varejeira (aquele vago zumbido que não era do escritório!) pousada em cima do tinteiro. Contemplei-a do fundo do abismo, anónimo e disperso. Ela tinha tons verdes de azul preto, e era lustrosa de um nojo que não era feio.
Uma vida!
Quem sabe para que forças supremas, deuses ou demónios da Verdade em cuja sombra erramos, não serei senão a mosca lustrosa que pousa um momento diante deles? Reparo fácil? Observação já feita? Filosofia sem pensamento? Talvez, mas eu não pensei: senti. Foi carnalmente, directamente, com um horror profundo e [...], que fiz a comparação risível.
Fui mosca quando me comparei a mosca. Senti-me mosca quando supus que me o senti. E senti-me uma alma à mosca, dormi-me mosca, senti-me fechado mosca. E o horror maior é que no mesmo tempo me senti eu. Sem querer, ergui os olhos para a direcção do tecto, não baixasse sobre mim uma
régua suprema, a esmagar-me, como eu poderia esmagar aquela mosca. Felizmente, quando baixei os olhos, a mosca,
sem ruído que eu ouvisse, desaparecera. O escritório involuntário estava outra vez sem filosofia.

(...)

Os classificadores de coisas, que são aqueles homens de ciência cuja ciência é só classificar, ignoram, em geral, que o
classificável é infinito e portanto se não pode classificar. Mas o em que vai meu pasmo é que ignorem a existência de classificáveis incógnitos, coisas da alma e da consciência que estão nos interstícios do conhecimento.
Talvez porque eu pense demais ou sonhe demais, o certo é que não distingo entre a realidade que existe e o sonho, que é a realidade que não existe. E assim intercalo nas minhas meditações do céu e da terra coisas que não brilham de sol ou se pisam com pés — maravilhas fluídas da imaginação.
Douro-me de poentes supostos, mas o suposto é vivo na suposição. Alegro-me de brisas imaginárias, mas o imaginário vive quando se imagina. Tenho alma por hipóteses várias, mas essas hipóteses têm alma própria, e me dão portanto a que têm.
Não há problema senão o da realidade, e esse é insolúvel
e vivo. Que sei eu da diferença entre uma árvore e um sonho?
Posso tocar na árvore; sei que tenho o sonho. Que é isto, na sua verdade?






Trechos de  " O livro do desassossego 
 Fernando Pessoa 

































TITO COLAÇO
07.07.2013









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