Uma grande parte da arte é para morrer
A pasmaceira dum domingo português, que até mesmo em Lisboa é de desiludir um pícnico (quanto mais um asténico!), levou-me ao abismo onde todo o provinciano que aqui chega tem de cair, se não quer esperar no café pelo comboio do regresso.
Refiro-me, claro, à inevitável revista. E fez-me bem, porque assentei ideias sobre alguns problemas de literatura e arte.
Os risos desarticulados que pelo mundo a cabo desaguam nos muitos parques Meyer, o que são em verdade senão o prolongamento protoplásmico de certas farsas medievais?
Revistas também daqueles atribulados tempos, as peças primitivas que até nós chegaram não têm outro mérito senão mostrar-nos que já então se dizia mal dos tiranos em trocadilhescas palavras e significativos gestos, ficando-nos ao cabo da sua penosa leitura a humana consolação de sabermos que o povo ria a bandeiras despregadas da própria miséria, e aliviava assim as suas penas.
Uma grande parte da arte é para morrer, e a pedra de toque da sua caducidade está em ela falar apaixonadamente de pessoas e acontecimentos inteiramente esquecidos da lembrança da História. Poder-se-á dizer que não se trata de beleza pura, a qual tem uma perenidade
que transcende o circunstancial.
Não é verdade.
A beleza também tem a sua moda, e desbota.
Perenidade, só a do homem e das suas paixões eternamente renovadas e eternamente repetidas.
Por isso, sorrimos ainda das peças medievais, e podemos justificar com essas raízes longínquas uma arte que satisfaça as necessidades do momento, de maneira a mitigar por uma hora a cruciante dor de quem a contempla.
Miguel Torga
"Diário (1946)"
A Tempestade do Destino
Por vezes o destino é como uma pequena tempestade de areia que não pára de mudar de direcção.
Tu mudas de rumo, mas a tempestade de areia vai atrás de ti. Voltas a mudar de direcção, mas a tempestade persegue-te, seguindo no teu encalço. Isto acontece uma vez e outra e outra, como uma espécie de dança maldita com a morte ao amanhecer. Porquê?
Porque esta tempestade não é uma coisa que tenha surgido do nada, sem nada que ver contigo. Esta tempestade és tu.
Algo que está dentro de ti. Por isso, só te resta deixares-te levar, mergulhar na tempestade, fechando os olhos e tapando os ouvidos para não deixar entrar a areia e, passo a passo, atravessá-la de uma ponta a outra.
Aqui não há lugar para o sol nem para a lua; a orientação e a noção de tempo são coisas que não fazem sentido.
Existe apenas areia branca e fina, como ossos pulverizados, a rodopiar em direcção ao céu.
É uma tempestade de areia assim que deves imaginar.
(...)
E não há maneira de escapar à violência da tempestade, a essa tempestade metafísica, simbólica.
Não te iludas: por mais metafísica e simbólica que seja, rasgar-te-á a carne como mil navalhas de barba.
O sangue de muita gente correrá, e o teu juntamente com ele.
Um sangue vermelho, quente. Ficarás com as mãos cheias de sangue, do teu sangue e do sangue dos outros.
E quando a tempestade tiver passado, mal te lembrarás de ter conseguido atravessá-la, de ter conseguido sobreviver.
Nem sequer terás a certeza de a tormenta ter realmente chegado ao fim.
Mas uma coisa é certa.
Quando saíres da tempestade já não serás a mesma pessoa.
Só assim as tempestades fazem sentido.
Haruki Murakami
"Kafka à Beira-Mar"
TITO COLAÇO
XIII____IV____MMXIV
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