O homem pode sempre mais e coisa diversa daquilo que se esperaria dele.
O homem é inacabado e inacabável e sempre aberto ao futuro.
Não há homem total e não o haverá jamais.
Por isso há dois modos de pensar o futuro do homem.
Posso concebê-lo como um processo natural, análogo àquele que respeita aos objectos, e formular probabilidades. Ou então posso imaginar as situações que vão ocorrer sem saber a resposta que lhes dará o homem, sem saber como, através delas, mas espontaneamente, ele se encontrará a si próprio.
No primeiro caso, aguardo um desenrolar necessário que poderia conhecer em princípio, mesmo se não o conheço.
No segundo caso, o futuro, longe de ser o desenvolvimento de necessidades causais implicadas pela realidade dada, depende do que será realizado e vivido em liberdade.
As inúmeras pequenas acções dos indivíduos, todas as suas livres decisões, todas as coisas que realizam, têm um alcance ilimitado.
No primeiro caso submeto-me a uma necessidade contra a qual nada posso. No segundo procuro a fonte original que está na base da liberdade humana. Faço um apelo à vontade.
Caminhamos para um futuro que não pode ser conhecido, que, na sua totalidade, não está decidido.
A imagem que dele temos é incessantemente corrigida pela experiência.
O conhecimento do ser na sua totalidade continua a ser-nos inacessível.
O saber que temos da superabundante realidade não mais se completa. A nossa consciência está sempre em marcha.
A uma consciência que desejaria ter-se por definitiva opõe-se a realidade do ser que não deixa de se mostrar novo, diferente, através dos fenómenos que surgem incessantemente, forçando assim a nossa consciência a transformar-se indefinidamente.
Predizer verdadeiramente o futuro do homem seria já realizá-lo. Aqui predizer significa produzir.
Se conseguissemos certificar-nos do que é a condição humana, com as definidas perspectivas das suas possibilidades infinitas, nunca mais poderemos desesperar definitivamente do homem.
Simbolicamente: o homem foi criado por Deus à sua imagem: por muito perdido que ele esteja, tal semelhança não pode desaparecer completamente.
(...)
É incontestável, em primeiro lugar, que não nos criámos a nós mesmos e que estamos no mundo graças a alguma coisa que não somos nós.
Tomamos consciência deste facto quando pensamos simplesmente que seria possível não existirmos.
É incontestável, em segundo lugar, que não somos livres graças a nós próprios, mas sim graças ao que, no fundo da nossa liberdade, se nos oferece a nós próprios: ainda que o queiramos, isso não chega para nos tornarmos livres.
No auge da liberdade ganhamos consciência do facto de sermos para nós um dom: a nossa liberdade faz-nos viver, mas não podemos nós próprios consegui-la pela força.
Essa coisa pouca que não podemos conquistar, nem pela «revolta de Prometeu», nem isolando o nosso «eu» até torná-lo o centro do ser, nem arrancando-nos nós ao pântano pelos próprios cabelos, como Munchhausen, de onde pode ela vir-nos?
E de onde o socorro?
Este não se manifesta como um processo do mundo. Não vem do exterior. Porque, sentimo-lo, é no mais profundo de nós que nós nos encontramos quando nos tornamos nós próprios.
Em parte alguma a transcendência fala de maneira directa, ninguém a tem diante de si, ela não se deixa captar.
Deus não fala senão através da nossa liberdade.
A decisão fundamental é aquela de que depende a maneira de apreender conscientemente a nossa condição de homem.
Enquanto homem, não nos bastamos nunca, não somos o nosso único fim. Estamos vinculados à transcendência.
Ela exalta-nos e, ao mesmo tempo, torna-nos transparentes a nós próprios, dando-nos consciência do pouquinho que somos.
Karl Jaspers
"Panorama das ideias contemporâneas"
TITO COLAÇO
IV____IV____MMXIV
0 comentários:
Enviar um comentário