Religion and
Science...
The
Nature of
Science
and
the Nature
of
Religion…
In archives of the
Stanford Encyclopedia of Philosophy:
Religion and Science
“Modern western
empirical science has surely been the most impressive intellectual development
since the 16th century.
Religion, of course, has been around for much
longer, and is presently flourishing, perhaps as never before. (True, there is
the thesis of secularism, according to which science and technology, on the one
hand, and religion, on the other, are inversely related: as the former waxes,
the latter wanes.
Recent resurgences of religion and religious belief in many
parts of the world, however, cast considerable doubt on this thesis.) The
relation between these two great cultural forces has been tumultuous,
many-faceted, and confusing.
This entry will concentrate on the relation
between science and the theistic religions: Christianity, Judaism, Islam, where
theism is the belief that there is an all-powerful, all-knowing perfectly good
immaterial person who has created the world, has created human beings ‘in his
own image,’ and to whom we owe worship, obedience and allegiance. Most of what
follows will also apply to monotheistic and henotheistic varieties of Buddhism
and Hinduism.
There are many important issues and questions in this
neighborhood; this entry concentrates on just a few. Perhaps the most salient
question is whether the relation between religion and science is characterized
by conflict or by concord.
(Of course it is possible that there
be both conflict and concord: conflict along certain dimensions, concord along
others.)
This question will be the central focus of what follows.
Other
important issues to be considered are the nature of religion, the nature of
science, the epistemologies of science and, in particular, of religious belief,
and the question how the latter figures into the (alleged or actual) conflict
or concord between religion and science.”
A
ciência empírica ocidental moderna tem certamente sido o desenvolvimento
intelectual mais impressionante desde o séc. XVI. A religião tem marcado
presença desde há bastante mais tempo, é claro, e está hoje em crescimento,
talvez como nunca o esteve antes. (É verdade que há a tese do secularismo,
segundo a qual a ciência e a tecnologia, por um lado, e a religião, por outro,
estão inversamente relacionadas: à medida que a primeira cresce, a segunda
diminui. Contudo, o ressurgimento da religião e da crença religiosa em muitas
partes do mundo levantam dúvidas consideráveis a esta tese.) A relação entre
estas duas grandes forças culturais tem sido tumultuosa, multifacetada e
confusa. Este artigo concentrar-se-á na relação entre ciência e as religiões
teístas: cristianismo, judaísmo, islamismo, sendo o teísmo a crença de que há
uma pessoa imaterial todo-poderosa, omnisciente e perfeitamente boa que criou o
mundo, criou os seres humanos “à sua imagem,” e a quem devemos reverência,
obediência e fidelidade. A maior parte deste artigo aplicar-se-á também às
variedades monoteístas e henoteístas de budismo e hinduísmo.
Há
muitos problemas e questões importantes nesta área; este artigo concentrar-se-á
apenas em alguns deles. A questão que talvez mais salte à vista é se a relação
entre religião e ciência se caracteriza pelo conflito ou
pela concórdia. (Claro que é possível que exista simultaneamente
conflito e concórdia: conflito no que respeita a certos aspectos, e concórdia
noutros.) Esta questão será o ponto central do artigo. Outras questões
importantes a considerar serão a natureza da religião, a natureza da ciência,
as epistemologias da ciência e, em particular, da crença religiosa, e a questão
de como a última figura no conflito ou concórdia (alegado ou efectivo) entre a
religião e a ciência.
1. A natureza da
ciência e a natureza da religião
1. 1. Ciência
A
primeira coisa a dizer, aqui, é que é extremamente difícil caracterizar estes
fenómenos. Primeiro, considere-se a ciência: o que é exactamente a ciência?
Como podemos caracterizá-la? Quais são as condições necessárias e suficientes
para que uma dada investigação ou teoria ou tese seja científica, faça parte da
ciência? Está longe de ser fácil sabê-lo. Propôs-se várias condições essenciais
da ciência. Segundo Jacques Monod, “O crucial do método científico é o
postulado de que a natureza é objectiva [...] Por outras palavras, a negação sistemática de
que o “verdadeiro” conhecimento possa ser obtido interpretando a natureza em
termos de causas finais [...]” (Monod 1971, 21, itálico de Monod). Na década de
1930, o eminente químico alemão Walter Nernst defendeu que a ciência, por
definição, exige um universo infinito; logo, a teoria do Big Bang, afirmou, não
é ciência (von Weizsäcker 1964, 151). Outra restrição proposta: a ciência não
pode envolver juízos morais, ou juízos de valor mais em geral.
Há
obviamente uma conexão íntima entre a natureza da ciência e o seu objectivo, as
condições sob as quais algo é ciência bem-sucedida. Há quem
diga que a ciência é explicação (seja isto posto, ou não, ao serviço da
verdade). Há quem afirme (os realistas) que o objectivo da ciência é apresentar
teorias verdadeiras; outros afirmam que o objectivo da ciência
é fornecer teorias empiricamente adequadas, sejam verdadeiras
ou não (van Fraassen 1980). Há quem diga que a ciência não pode lidar com o
subjectivo, mas apenas como que é público e partilhável (e, portanto, os
relatos sobre a consciência constituem uma matéria mais adequada de estudo
científico do que a própria consciência). Há quem diga que a ciência só pode
lidar como que é repetível; há quem o negue. No furor sobre o ensino do
“Desígnio Inteligente” (DI) nas escolas públicas, houve quem dissesse que as
teorias científicas têm de serfalsificáveis, e, dado que a
proposição de que as coisas vivas (os coelhos, por exemplo) foram concebidas
por um ou mais agentes inteligentes não é falsificável, o DI não é ciência. Há
quem faça notar que muitas teses eminentemente científicas — por exemplo, há
electrões — não são falsificáveis isoladamente: o que é falsificável
sãoteorias completas sobre electrões. E apesar de a proposição de
que as coisas vivas foram concebidas por um ser inteligente não
ser falsificável isoladamente, a proposição de que um ser inteligente
concebeu e criou coelhos de meio quilo que vivem em Cleveland é
claramente falsificável (e falsa). O primeiro grupo pode responder que esta
proposição sobre coelhos de meio quilo é apenas equivalente, na verdade, às
suas implicações empíricas, i.e., à proposição de que há coelhos de meio quilo
que vivem em Cleveland, de modo que o pedaço sobre quem os concebeu desaparece,
na verdade. O segundo grupo pode então retorquir que, sendo assim, o mesmo tem
de se aplicar às teorias sobre electrões; mas nesse caso as teorias sobre
electrões são apenas equivalentes, na verdade, às suas implicações empíricas,
de modo que os electrões desaparecem.
Há
ainda quem afirme que a ciência se limita ao “naturalismo metodológico” (NM) —
a ideia de que nem os dados para uma investigação científica nem uma teoria
científica podem referir-se apropriadamente a seres sobrenaturais (Deus, anjos,
demónios); assim, não se poderia apropriadamente propor (como parte da ciência)
uma teoria segundo a qual a irrupção recente de comportamentos estranhos e
irracionais em Washington D.C. se deve ao aumento de comportamentos demoníacos
nessa área. Como saber se o NM é realmente uma limitação essencial da ciência?
Há quem diga que é apenas uma questão de definição; é o caso de Nancey Murphy:
“[...] há o que poderíamos chamar ateísmo metodológico, que é
por definição comum a toda a ciência da natureza” (Murphy 2001, 464). E
continua: “Trata-se simplesmente do princípio de que as explicações científicas
procedem em termos de entidades e processos naturais (e não sobrenaturais).” De
modo semelhante, Michael Ruse: “ Os criacionistas crêem que o mundo começou
milagrosamente. Mas os milagres estão fora dos limites da ciência, que por
definição lida apenas com o natural, o repetível, o que é regido por leis”
(Ruse 1982, 322). Por definição do quê? Por definição do termo “ciência,”
supostamente. Mas há então quem pergunte: que dizer do Big Bang? Se afinal for
irrepetível, teremos de concluir que não pode ser estudado cientificamente? E
considere-se a tese de que a ciência, por definição, lida apenas com o que é
regido por leis — leis da natureza, supostamente. Alguns empiristas (em
particular, Bas van Fraassen) defendem que não há leis da
natureza (só há regularidades): se tiverem razão, seguir-se-á que não há coisa
alguma para ser estudada pela ciência? Além disso, apesar de algumas pessoas
argumentarem que o NM é uma limitação essencial da ciência, outras põem isso em
causa: mas pode uma disputa séria ser resolvida citando apenas uma definição?
Apresentar
condições necessárias e suficientes plausíveis da ciência está consequentemente
longe de ser trivial; e muitos filósofos da ciência desistiram do “problema da
demarcação,” o problema de propor tais condições (Laudan 1988). Talvez o melhor
que podemos fazer é apontar para exemplos paradigmáticos de ciência e exemplos
paradigmáticos de não-ciência. Claro que pode ser um erro supor que estamos
aqui perante uma só actividade, e um só objectivo. As ciências
são muitíssimo variáveis; há o género de actividade que ocorre em ramos
muitíssimo teóricos da física (por exemplo, investigações sobre o que aconteceu
nos primeiros 10-43 segundos, ou a tentativa de descobrir como sujeitar
a teoria das cordas a verificação empírica). Mas há também o género de projecto
exemplificado por uma tentativa de saber como a população de touconderos
respondeu à devastação da selva amazónica ao longo dos últimos vinte e cinco
anos. No primeiro tipo de explicação pode fazer sentido pensar que o que se
quer é uma teoria empiricamente adequada, pondo-se pelo menos temporariamente
entre parêntesis a questão da verdade da teoria. Mas o mesmo não acontece em
casos do segundo tipo; aqui, nada servirá a não ser a verdade sóbria.
O
mesmo acontece com o naturalismo metodológico. Alguns projectos científicos são
claramente limitados pelo NM (veja-se abaixo); uma condição de adequação
teórica, nesses casos, será certamente que a explicação em causa seja
naturalista. Mas é o NM em si parte da própria natureza da ciência enquanto
tal? Segundo Isaac Newton, que se diz muitas vezes ter sido o maior cientista
de todos os tempos, as órbitas dos planetas cairiam no caos sem intervenção
externa; consequentemente, propôs que Deus ajustava periodicamente as suas
órbitas. Apesar de esta ser uma hipótese de que já não precisamos, será óbvio
que acrescentá-la à explicação de Newton dos movimentos dos planetas tem como
resultado algo que não é realmente ciência? Isso parece desnecessariamente
excessivo.
Talvez
devamos ver o conceito de ciência como um daqueles conceitos aglomerativos para
os quais Tomás de Aquino e Ludwig Wittgenstein chamaram a atenção. Talvez haja
várias actividades bastante diferentes a que damos o nome “ciência;” estas
actividades relacionam-se entre si por semelhança e analogia, mas não há uma
actividade única que seja apenas ciência em si. Há projectos para os quais o
critério de sucesso envolve fornecer teorias ¬verdadeiras; há
outros onde o critério de sucesso envolve fornecer teorias que são
empiricamente adequadas, sejam ou não também verdadeiras. Há projectos
limitados pelo NM; há outros projectos que não têm essa limitação. Estes
projectos ou actividades caem todos sob o significado do termo “ciência;” mas
não há uma actividade única da qual todos sejam exemplos. (Do mesmo modo, o
xadrez, o basquetebol e o póquer são todos jogos; mas não há um jogo único do
qual todos sejam versões.) Talvez o melhor que podemos fazer, com respeito à
caracterização da ciência, é dizer que o termo “ciência” se aplica a qualquer
actividade que seja 1) uma actividade sistemática e disciplinada que visa
descobrir a verdade sobre o mundo,1 e 2) tem um envolvimento empírico significativo.
Isto é, evidentemente, vago (quão sistemática? Quão disciplinada? Quanto
envolvimento empírico?) e talvez demasiado tolerante. (A astrologia conta como
ciência, ainda que seja má ciência?) Apesar de tudo, temos muitos exemplos
excelentes de ciência, e exemplos excelentes de não-ciência.
1.2. Religião
Se
é difícil explicar a natureza da ciência, não é muito mais fácil dizer o que é
exactamente uma religião. Claro que há muitíssimos exemplos: cristianismo,
islamismo, judaísmo, hinduísmo, budismo e muitos outros. Que características são
necessárias e suficientes para que algo seja uma religião? Como distinguimos
uma religião de um modo de vida, como o confucionismo? Não é fácil dizer. Nem
todas as religiões envolvem a crença em algo como o Deus todo-poderoso,
omnisciente e moralmente perfeito das religiões teístas, ou até em seres
sobrenaturais. (Claro que uma maioria substancial das religiões envolve tais
crenças.) Com respeito à nossa investigação, o que é de especial importância é
a noção de uma crença religiosa: como tem de ser uma crença
para ser religiosa?
Uma
vez mais, não é fácil dizer. Para citar uma vez mais o furor quanto ao desígnio
inteligente, há quem diga que a proposição de que há um arquitecto inteligente
do mundo vivo é religião, e não ciência. Mas nem toda a crença que envolva um
arquitecto inteligente — na verdade, nem toda a crença que envolva Deus — é
religiosa. Segundo o livro de Tiago do Novo Testamento, “os demónios crêem [que
Deus existe] e enchem-se de terror”; as crenças dos demónios não são,
presumivelmente, religiosas.2 Uma pessoa poderia propor teorias sobre um ser
omnipotente, omnisciente e sumamente bom como parte crucial de um sistema
metafísico: a crença em tais teorias não tem de ser religiosa. E que dizer de
um sistema de crenças que responde às mesmas grandes questões humanas a que dão
resposta os exemplos óbvios de religiões? Questões sobre a natureza fundamental
do universo, e do que é sumamente real e básico nele, sobre o lugar dos seres
humanos nesse universo, sobre se há pecado ou algo análogo e, se há, o que
fazer quanto a isso, se temos de tentar melhorar a condição humana, se os seres
humanos sobrevivem às suas mortes e como deve agir uma pessoa racional. Uma vez
mais, não é fácil dizer; talvez não. A verdade aqui é, talvez, que uma crença
não é religiosa apenas em si. A propriedade de ser religiosa
não é intrínseca da crença; é antes uma propriedade que uma crença adquire
quando funciona de certo modo na vida de uma dada pessoa ou comunidade. Para
ser uma crença religiosa, a crença em questão teria de estar apropriadamente
conectada com atitudes caracteristicamente religiosas por parte do crente,
nomeadamente atitudes de veneração, amor, compromisso, maravilhamento e afins.
Considere-se alguém que crê que a pessoa de Deus existe, certamente, porque a
sua existência ajuda a resolver vários problemas metafísicos (por exemplo,
sobre a natureza da causalidade, a natureza das proposições, propriedades e
conjuntos, e a natureza da função apropriada em criaturas que não sejam
artefactos humanos). Contudo, esta pessoa não tem qualquer inclinação para
venerar ou amar Deus, nenhum compromisso para tentar levar por diante os
projectos de Deus no nosso mundo; talvez, como os demónios, odeie Deus e faça
intencionalmente tudo o que pode para frustrar os propósitos de Deus no mundo.
Para tal pessoa, a crença de que a pessoa de Deus existe não tem de ser
religiosa. Deste modo, é possível que duas pessoas partilhem uma dada crença
que funciona como religiosa na vida de apenas uma delas.
Consequentemente,
é extremamente difícil apresentar condições necessárias e suficientes
(informativas) tanto da ciência como da religião. Talvez para os nossos
propósitos presentes isso não seja um problema sério; temos vários excelentes
exemplos de cada uma delas, e talvez isso seja suficiente para a nossa
investigação.
2. Epistemologia e
ciência e religião
Há
muitas questões epistemológicas interessantes quanto à ciência. Um tópico
central tem sido a subdeterminação da teoria pelos dados: os dados a favor de
uma teoria raramente implicam a teoria, caso em que haverá várias teorias
empiricamente equivalentes — teorias com as mesmas consequências com respeito à
experiência. Podem as teorias empiricamente equivalentes diferir em estatuto ou
valor epistémico? Em caso afirmativo, o que faz a diferença? Neste caso é comum
apelar para as chamadas virtudes teóricas, como a
simplicidade, fecundidade, beleza, etc. O que pensar da “indução pessimista,”
segundo a qual quase todas as teorias científicas do passado foram mais tarde
rejeitadas? Deve isso reduzir a nossa confiança nas teorias científicas
actuais? Das convicções científicas actuais, quantas constituem conhecimento,
se é que algumas o são? E até onde vai o método científico? Haverá assuntos que
a ciência não tem competência para lidar? É a ciência mais competente para
lidar com uns assuntos do que com outros? Os modos científicos de proceder
parecem ter sido mais bem-sucedidos nas ciências duras; as ciências humanas
parecem ficar para trás. Haverá diferenças quanto à boa fundamentação epistémica
entre as diferentes ciências, ou talvez entre as ciências duras e as ciências
mais leves? Perguntas deste género, apesar de serem de grande interesse
intrínseco, não são directamente relevantes para a nossa investigação. O que é
mais importante ver é que a epistemologia da ciência é na realidade a
epistemologia das principais faculdades cognitivas humanas: memória, percepção,
intuição racional (lógica e matemática), testemunho, talvez a empatia de Reid,
indução, etc. O que é característico da ciência é que estas faculdades são
empregues de um modo particularmente disciplinado e sistemático, e que há uma
ênfase particular na experiência perceptiva.
Com
respeito à crença religiosa, também há várias questões epistemológicas. Haverá
bons argumentos a favor da existência de Deus? Se não há, é isso importante? É
a existência do mal, em todas as horríveis formas que exibe, indício
contra a crença teísta? É algo que refuta da crença
teísta? E quanto à questão do pluralismo: a religião conhece tantos tipos diferentes
— cristianismo, islamismo, judaísmo, hinduísmo, budismo (com diferentes versões
de cada tipo), mas também vários tipos menos comuns. Segundo Jean Bodin, “cada
uma é refutada por todas” (Bodin 1975, 256); constituirá esta diversidade algo
que refuta cada variedade particular de crença religiosa? Algumas doutrinas
religiosas — Trindade, Incarnação, Expiação — não são fáceis de entender;
significa isso que não podem ser conhecidas ou sequer ser objecto de crença
racional? Se a crença religiosa se baseia na fé e não na razão, significa isso
que é na melhor das hipóteses seriamente insegura, de modo que é apropriado
falar de um “salto de fé” ou de “fé cega”? Estas questões têm sido mais
aturadamente investigadas no que respeita à crença cristã; assim, este artigo
incide principalmente em algumas questões que dizem respeito à epistemologia da
crença cristã.
Para
os nossos propósitos, talvez a questão epistemológica central seja esta: qual é
a fonte da racionalidade, ou aval, ou estatuto epistémico positivo da crença
religiosa, se é que o tem? É do mesmo género do que o que tem a crença nos
ensinamentos da ciência actual? São os indícios a favor da crença religiosa, se
é que existem, do mesmo género do que os indícios a favor das crenças
científicas? Ou há uma fonte especial de estatuto epistémico positivo da crença
religiosa? Esta é, na verdade, uma versão contemporânea de uma questão bastante
antiga: a questão sobre a relação entre a fé e a razão. Relaciona-se com a
questão de haver ou não argumentos cogentes (argumentos racionais, argumentos
que emanam do que a razão nos dá) a favor da crença religiosa, e se a
existência de argumentos cogentes é necessária para a aceitação racional da
crença religiosa.
Aqui,
há fundamentalmente duas perspectivas. Segundo o “indiciarismo,” a fonte do
estatuto epistémico positivo da crença religiosa, se é que tem tal estatuto, é
apenas a razão — o conjunto das faculdades racionais, incluindo,
principalmente, a percepção, a memória, a intuição racional, o testemunho, etc.
A fonte do estatuto epistémico positivo da crença religiosa é,
consequentemente, a mesma que existe para a crença científica. Esta perspectiva
remonta pelo menos a John Locke (1689) e tem representantes contemporâneos
proeminentes. Deste ponto de vista, a existência de argumentos cogentes a favor
da crença religiosa é uma condição necessária da aceitação racional dessa
crença, ou pelo menos está intimamente relacionada com a aceitação racional.
Algumas pessoas que aceitam este ponto de vista crêem que esses argumentos
cogentes não existem; assim, rejeitam a crença religiosa por ser infundada e
racionalmente inaceitável (Mackie 1982); outros sustentam que há de facto
excelentes argumentos a favor do teísmo, e até especificamente a favor da
crença cristã. Aqui o porta-voz contemporâneo mais proeminente seria Richard
Swinburne, cuja obra dos últimos trinta anos, aproximadamente, teve como
resultado o desenvolvimento mais poderoso, completo e sofisticado da teologia
natural que o mundo viu até hoje (veja-se, e.g., Swinburne 1979, 2004; 1981,
2005).
A
outra perspectiva principal, adoptada, por exemplo, por Tomás de Aquino (Summa
Theologiae) e João Calvino (1559), é que 1) a crença em Deus e 2) os
ensinamentos cristãos podem ser objecto de aceitação racional ainda que não
existam argumentos cogentes a seu favor que partam do que a razão nos oferece;
têm uma fonte de aval ou estatuto epistémico positivo independente do que a
razão nos dá. Este ponto de vista tem também representação contemporânea
proeminente (Alston 1991; Plantinga e Wolterstorff 1984; Plantinga 2000).
Usando a terminologia de Calvino, há o sensus divinitatis, que
é uma fonte de crença em Deus, e o testemunho interno do Espírito Santo, que é
a fonte da crença nas doutrinas próprias do cristianismo. As crenças produzidas
por estas fontes ultrapassam a razão no sentido em que a fonte do seu aval não
é o que a razão nos dá; claro que não se segue que tais crenças são
irracionais, ou contrárias à razão; nem se segue que há algo nelas de
especialmente arriscado ou inseguro, ou incerto, como se a fé fosse
necessariamente cega ou um salto no escuro. Na verdade, João Calvino define a
fé como “um conhecimento firme e certo da benevolência de Deus
para connosco [...]” (Calvino 1559, p. 551, itálico meu). Deste ponto de vista,
a religião e a fé têm uma fonte de crença apropriadamente racional independente
da razão e da ciência; seria portanto possível que a religião e a fé
corrigissem a ciência e a razão, e também que fossem por estas corrigidas.
Há
alguma razão para pensar que se o teísmo for de facto verdadeiro, se realmente
houver uma pessoa todo-poderosa, omnisciente e perfeitamente boa que criou o
mundo e os seres humanos à sua imagem, então a crença religiosa será
independente dos argumentos baseados na razão; não exigirá tais argumentos para
ser racional ou ter estatuto epistémico positivo. Pois se o teísmo for
verdadeiro, Deus presumivelmente quererá que os seres humanos conheçam a sua
presença (e de facto a vasta maioria da população humana acredita em Deus ou algo
parecido a Deus); disporá portanto as coisas de modo a que os seres humanos
sejam capazes de ter conhecimento de si. Mas se o conhecimento de Deus
dependesse dos argumentos teístas, ou de outros argumentos que resultam do que
a razão nos dá, então, como afirma Tomás, só alguns seres humanos chegariam ao
conhecimento desta verdade, e mesmo assim só depois de muito tempo, e com uma
mistura substancial de erro.
3. Conflito e
concórdia
3.1. Concórdia
Comecemos
com a concórdia. Os primeiros pioneiros e heróis da ciência ocidental —
Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Boyle, etc. — eram todos seriamente
cristãos, ainda que ocasionalmente, como no caso de Newton, não fossem
cristologicamente ortodoxos. Além disso, muitos autores (Foster 1934, 1935,
1936; Ratzsch 2009) fizeram notar que a crença teísta e a ciência empírica
exibem uma concórdia profunda, combinando-se bem entre si. Isto resulta em
parte das doutrinas da criação que as religiões teístas abraçam — em
particular, dois aspectos dessas doutrinas. Primeiro, há a ideia de que Deus
criou o mundo, tendo também consequentemente, é claro, criado os seres humanos.
Além disso, criou os seres humanos à sua imagem. Ora Deus, segundo a crença
teísta, é uma pessoa: um ser que tem conhecimento, afeição (gosta de umas
coisas e não de outras) e vontade executiva, podendo agir com base nas suas
crenças para atingir os seus fins. Uma das características centrais da imagem
divina nos seres humanos é, então, a capacidade para formar crenças e adquirir
conhecimento. Como afirmou Tomás de Aquino, “Uma vez que se diz que os seres
humanos foram feitos à imagem de Deus em virtude de terem uma natureza que
inclui um intelecto, tal natureza é à imagem de Deus sobretudo em virtude de
ser o que mais consegue imitar Deus” (ST Ia q. 93 a. 4). Deus criou portanto
quer os seres humanos quer o mundo, e dispôs as coisas de modo a que os
primeiros conheçam o segundo. Concebendo a ciência no seu nível mais básico
como o projecto de adquirir conhecimento de nós e do nosso mundo, é claro, desta
perspectiva, que a doutrina daimago dei subscreve este projecto. Na
verdade, a ciência é um exemplo claro do desenvolvimento e aprofundamento da
imagem de Deus nos seres humanos, tanto individual como colectivamente.
Segundo,
há o pensamento de que a criação divina é contingente. Segundo
o teísmo, muitas das propriedades de Deus — a sua omnisciência e omnipotência,
a sua bondade e amor — são-lhe essenciais: tem-nas em todos os mundos possíveis
em que existe. (E uma vez que, segundo o pensamento teísta, Deus é um ser
necessário, existindo em todos os mundos possíveis, tem essas propriedades em
todos os mundos possíveis.) Mas isso não acontece, contudo, com a sua
propriedade da criação. Deus não está obrigado, pela sua natureza ou seja pelo
que for, a criar o mundo; trata-se, antes, de uma acção livre da sua parte.
Além disso, quando Deus cria, não está obrigado a fazê-lo de qualquer modo
particular, nem a criar quaisquer tipos particulares de seres; que tenha criado
os tipos de coisas que efectivamente encontramos é uma vez mais contingente,
uma acção livre da sua parte.
É
esta doutrina da contingência da criação divina que subjaz ao carácter empírico
da ciência ocidental moderna (Ratzsch, 2009). Pois o domínio do necessário é
(na sua maior parte) o domínio do conhecimento a priori; é
onde temos a matemática e a lógica e grande parte da filosofia.3 O
que é contingente, por outro lado, é o território ou domínio do
conhecimento a posteriori,4 o género de conhecimento produzido pela percepção,
memória e os métodos empíricos da ciência. Esta relação entre a contingência da
criação e a importância do empírico foi reconhecida desde muito cedo. Assim,
escreveu Roger Cotes, no prefácio ao Principia Mathematica, de
Newton:
“Sem dúvida alguma, este mundo, tão
diversificado com essa pluralidade de formas e movimentos que nele encontramos,
de nada poderia provir senão da vontade perfeita de Deus, dirigindo-o e
presidindo-o.
É desta fonte que essas leis, a que
chamamos leis da natureza, fluíram, e nas quais se vê muitos
traços do mais sábio engenho, mas nem a mínima sombra de necessidade.
Esta, consequentemente, não devemos procurar partindo de
conjecturas incertas, mas antes descobrir pela observação e pela
experimentação.” (Cotes 1953, 132-133; itálicos meus)
O
que vimos é que, de certo modo, a crença teísta sustenta a ciência moderna ao
permitir ou sancionar todo o projecto da investigação empírica; afirma-se
também por vezes que a ciência sustenta a crença teísta. Neste caso, há vários
argumentos, que historicamente se agruparam em dois tipos básicos: biológicos e
cosmológicos. Um exemplo do primeiro tipo é o argumento proposto por Michael
Behe (Behe, 1996), segundo o qual algumas estruturas ao nível molecular exibem
uma “complexidade irredutível.” Estes sistemas exibem várias partes que se
ajustam delicadamente e interagem entre si, sendo que todas têm de estar
presentes e funcionando apropriadamente para que o sistema faça o que faz; a
eliminação de qualquer das partes impediria o seu funcionamento. Entre os fenómenos
que Behe cita encontra-se o estolho bacteriano, os cílios usados por vários
tipos de células para se locomoverem, entre outras funções, a coagulação do
sangue, o sistema imunitário, o transporte de materiais nas células e a
sequência incrivelmente complexa e em cascata de reacções bioquímicas e
acontecimentos que ocorrem na visão. Tais estruturas e fenómenos
irredutivelmente complexos, defende, não poderiam ter surgido por evolução
darwinista gradual, passo-a-passo (sem a intervenção da mão de Deus ou de
qualquer outra pessoa); em qualquer caso, a probabilidade de isso acontecer
seria diminuta. Estes são exemplos que apresentam, pois, o que Behe denomina um
desafio liliputiano ao darwinismo cego; se ele tiver razão, constituem também
um desafio colossal ao darwinismo. Mas não se limitam a pôr em causa o
darwinismo; foram também, afirma, obviamente concebidos; que
foram concebidos é tão óbvio como um elefante numa sala de estar: “para uma
pessoa que não se sinta obrigada a restringir a sua procura a causas não-inteligentes,
a conclusão directa é que muitos sistemas bioquímicos foram concebidos” (Behe,
p. 193). Outros, por exemplo, Paul Draper (2002) e Kenneth R. Miller (1999,
130-64), argumentam que Behe não provou o que pretendia.
Um
segundo tipo de argumento a favor do teísmo parte do ajustamento delicado
aparente de vários parâmetros físicos. A partir dos anos sessenta e do começo
dos setenta, os astrofísicos, entre outros, deram-se conta que várias das
constantes físicas básicas têm de se situar dentro de limites muito estreitos
para que a vida inteligente se desenvolva — em qualquer caso, de um modo
semelhante ao que pensamos que efectivamente ocorreu. Assim, B. J. Carr e M. J.
Rees:
“As características básicas das
galáxias, estrelas, planetas e do mundo quotidiano são essencialmente
determinadas por algumas constantes microfísicas e pelos efeitos da gravitação
[...] Vários aspectos do nosso universo — alguns dos quais parecem
pré-requisitos para a evolução de qualquer forma de vida — dependem muito delicadamente
de “coincidências” aparentes entre as constantes físicas.” (Carr e Rees, 1979,
605).
Por
exemplo, se a força da gravidade fosse mais forte, ainda que ligeiramente,
todas as estrelas seriam gigantes azuis; se fosse muito ligeiramente mais
fraca, todas seriam anãs vermelhas; em nenhum desses casos poderia a vida
ter-se desenvolvido (Carter 1979, 72). O mesmo se pode dizer das forças
nucleares fracas e fortes; se qualquer delas tivesse sido ainda que
ligeiramente diferente, a vida, em qualquer caso a vida do género que temos,
não poderia provavelmente ter-se desenvolvido.
Aparentemente,
a vida é possível apenas porque o universo está a expandir-se na proporção
exactamente necessária para evitar o colapso. E no passado o ajuste delicado
teve de ser ainda mais extraordinário:
“[...] sabemos que teve de ter havido
um equilíbrio muito delicado entre os efeitos contrários da expansão explosiva
e da contracção gravitacional que, na época mais recuada sobre a qual podemos
sequer fingir falar (denominada tempo de Planck, 10-43segundos
depois do Big Bang), teria correspondido ao grau incrível de precisão
representado por um desvio da unidade no seu rácio de apenas uma parte em 10
elevado à sexagésima.” (Polkinghorne 1989, 22)
Outros
exemplos: o valor da constante cosmológica, do valor da expectativa de vácuo do
campo de Higgs, e o rácio da massa entre o protão e o electrão têm de estar
delicadamente ajustados num grau incrível para que o universo permita a vida
(Barr 2003, 123-130). Uma explicação particularmente bem informada e
tecnicamente pormenorizada de alguns destes ajustamentos delicados encontra-se
em Robin Collins, “Evidence of Fine-Tuning” (Collins 2003). Há quem considere
que estas enormes coincidências aparentes substanciam a tese teísta de que o universo
foi criado por um Deus pessoal que tem a intenção de que haja vida, e na
verdade vida inteligente; consideram que o ajustamento delicado oferece os
elementos para um argumento teísta apropriadamente restringido. Estes
argumentos assumem várias versões; talvez a mais bem-sucedida delas seja a que
argumenta que a probabilidade epistémica destes fenómenos de ajuste delicado é
muito maior sob a hipótese teísta do que a sua probabilidade epistémica sob a
hipótese ateísta do acaso. Aqui, a conclusão não é (enquanto tal) que o teísmo
é provavelmente verdadeiro, mas antes que o teísmo é muito mais bem sustentado
por estes fenómenos do que a hipótese do acaso (Swinburne 2003; Collins 1999).
As
objecções são muito diversificadas. Há quem ofereça estes argumentos, em
particular quem está associado ao chamado movimento do “Desígnio Inteligente,”
considerando-os contribuições para a ciência e não para a
filosofia ou para a teologia; a objecção mais comum é que não obedecem às
condições necessárias para ser ciência, em particular porque a conclusão, que o
universo foi concebido por um ser inteligente, não é falsificável. Outros
há (como vimos) que respondem que a falsificabilidade não é comummente uma
propriedade de proposições individuais, mas antes de teorias completas, e que
as teorias que envolve o desígnio inteligente podem muito bem ser
falsificáveis.
Uma
objecção mais interessante aos argumentos do ajuste delicado é a sugestão da
“multiplicidade de universos”: talvez haja muitíssimos universos ou mundos
diferentes, talvez em número infinito; as constantes cosmológicas assumem
diferentes valores em mundos diferentes, de modo que muitíssimos conjuntos
diferentes de tais valores (talvez todos os possíveis) são exemplificados num
ou noutro mundo. Não poderia haver um ciclo eterno de “Big Bangs,” seguidos de
expansão até um certo limite, e depois uma contracção até ao “Big Crunch,” no
qual os valores cosmológicos são arbitrariamente reiniciados? (Dennett 1995,
179) Alternativamente, não poderia ter ocorrido que no Big Bang houve uma
inflação inicial enorme, resultando daí muitoscosmoi, com muitos valores
diferentes nas suas constantes físicas? Em qualquer dos casos não é
surpreendente que num ou noutro dos universos resultantes, os valores das
constantes cosmológicas sejam tais que permitam a vida. Nem é surpreendente que
o universo em que nos encontramos tenha valores que permitam a vida; não
poderíamos existir em qualquer outro. Sendo assim, o argumento do ajuste
delicado não é eficaz: a probabilidade de haver ajuste delicado dada a hipótese
da pluralidade de mundos juntamente com o ateísmo é pelo menos tão grande
quanto a probabilidade do ajuste delicado juntamente com o teísmo. Há respostas
(por exemplo, que nesta maneira de ver as coisas teria de haver um gerador de
universos que estivesse, também ele, delicadamente ajustado (Collins 1999), ou
que mesmo que seja provável que alguns universos estejam
delicadamente ajustados, continua a ser verdade que a probabilidade de
que este universo esteja delicadamente ajustado não é afectada
pela sugestão do pluriverso (White 2003)) e respostas às respostas, etc.; não
há consenso, o que não é surpreendente, quanto a saber se estes argumentos do
ajuste delicado são bem-sucedidos.
3.2. Conflito?
A
doutrina cristã da criação sustenta uma concórdia profunda entre a crença
cristã e a ciência; contudo, é claro que é compatível com este género de
concórdia que também haja conflito. Muitos autores afirmaram existir conflito,
ou até guerra, entre a religião e a ciência (Draper 1875; White 1895). Isto é
certamente demasiado forte; mas é óbvio que a relação entre as duas nem sempre
tem sido suave e irénica. Há o famoso incidente de Galileu, muitas vezes
retratado como uma disputa no seio da hierarquia católica, representando as
forças da repressão e da tradição, a voz do velho mundo, a mão morta do
passado, e, por outro lado, as forças do progresso e a suave voz da razão e da
ciência. Este modo de ver a questão é simplista (Brooke 1991, 8-9); em causa
estavam muitos outros factores. O pensamento aristotélico dominante do dia era
fortemente apriorístico; logo, parte do que estava em causa era uma disputa
sobre a importância relativa da observação e do pensamento a
priori na astronomia. Em causa estavam também questões sobre o que a
Bíblia cristã (e judaica) ensina nesta área: será que uma passagem como a de
Josué 10:12-15 (em que Josué ordenou ao Sol para se imobilizar) favorece o
sistema ptolemaico em detrimento do coperniciano? E é claro que as questões
habituais de poder e autoridade estavam também presentes.5
Mais
recentemente, um lugar central de alegado conflito tem sido a teoria da
evolução. Este pânico particular está, é claro, ainda muito presente. Muitos
fundamentalistas cristãos aceitam uma interpretação literal da narrativa da
criação dos primeiros dois capítulos do Génesis; consideram por isso
incompatíveis as explicações darwinistas contemporâneas das nossas origens e a
fé cristã, pelo menos tal como a entendem. Muitos fundamentalistas darwinistas
(como o falecido Stephen J. Gould lhes chamava) aceitam essa moção: também eles
defendem que há conflito entre a evolução darwinista e a crença cristã ou
teísta clássica. Os contemporâneos que defendem esta perspectiva do conflito
incluem, por exemplo, Richard Dawkins (1986, 2003) e Daniel Dennett (1995). Uma
parte importante do alegado conflito depende da crença cristã de que os seres
humanos e as outras criaturas foram concebidos — concebidos
por Deus; segundo a evolução, contudo (pelo que dizem Dawkins e Dennett), os
seres humanos não foram concebidos, sendo antes produto do processo cego sem
direcção da selecção natural, operando sobre uma fonte de variação genética
como a mutação genética. Eis Dawkins:
“Apesar das aparências em contrário,
o único relojoeiro na natureza é as forças cegas da física, ainda que aplicadas
de uma maneira muito especial. Um verdadeiro relojoeiro é dotado de antevisão:
concebe as suas engrenagens e molas, e planeia as suas interconexões, tendo em
mente um propósito futuro. A selecção natural, e o processo automático cego,
inconsciente, que Darwin descobriu, e que sabemos hoje ser a explicação da
existência e da forma aparentemente dotada de propósito de toda a vida, não tem
em mente qualquer propósito. Não tem mente e não tem seja o que for em mente.
Não planeia em função do futuro. Não tem qualquer visão, antevisão, não vê
coisa alguma. Se podemos dizer que desempenha o papel de relojoeiro na
natureza, é o relojoeiro cego.” (Dawkins 1986, 5)
Outros
autores fazem notar que este suposto conflito está longe de ser óbvio. A
característica central da doutrina moderna da evolução é que a força motriz do
processo é a selecção natural, peneirando uma forma de variação genética, sendo
a mais popular a mutação genética aleatória. Não faz parte da teoria a
afirmação de que estas mutações ocorrem apenas ao acaso no sentido em que esse
termo sugere que não têm causa; são aleatórias apenas no sentido em que não
emergem do plano arquitectónico das criaturas que as sofrem, e não ocorrem para
melhorar a capacidade reprodutiva do organismo. Eis Ernst Mayr, o decano da
biologia do pós-guerra: “Quando se afirma que a mutação ou variação é
aleatória, isto quer simplesmente dizer que não há qualquer correlação entre a
produção de novos genótipos e as necessidades adaptativas de um organismo no
meio ambiente em causa” (Mayr 1998, 98). Sendo assim, a evolução, tal como é
actualmente formulada e entendida, é perfeitamente compatível com um deus que
orquestre e supervisione todo o processo; na verdade, é perfeitamente
compatível com essa teoria que Deus cause as mutações
genéticas que são peneiradas pela selecção natural. Quem defende que a evolução
mostra que a humanidade e as outras coisas vivas não foram concebidas, defendem
os seus oponentes, confundem uma interpretação naturalista da teoria científica
com a própria teoria. A afirmação de que a evolução demonstra que os seres
humanos e as outras criaturas vivas não foram concebidas, contra todas as
aparências, não faz parte nem é uma consequência da teoria científica, mas
antes um acrescento metafísico ou teológico (van Inwagen 2003).6
Uma
segunda área de alegado conflito tem a ver com a acção divina no mundo. Segundo
a religião teísta clássica, Deus criou o mundo; também o sustém e preserva,
mantendo-o em existência. Sem a sua actividade de preservação, o mundo
desapareceria como a chama de uma vela ao vento. Assim, há criação e
preservação; mas, afirmam as religiões teístas clássicas, há também acção
divina especial, acção que vai além da criação e da
preservação. Há milagres relatados tanto na Bíblia judaica como na cristã: a
separação das águas do Mar Vermelho, por exemplo, assim como Jesus caminhando
sobre as águas, o fornecimento de alimento a cinco mil pessoas, e o
renascimento dos mortos. Os milagres são igualmente relatados no Alcorão.
Muitos crentes não pensam que estas acções divinas especiais se restringem aos
tempos bíblicos: ainda hoje Deus responde às orações e efectua curas
milagrosas. Além disso, segundo o modo cristão de pensar, Deus opera nos
corações e espíritos dos seus filhos, de modo a produzir a fé; Tomás de Aquino
chamou a esta actividade divina “o incitamento interno do Espírito Santo” e
João Calvino chamou-lhe “o testemunho interno do Espírito Santo.” Todos estes
seriam exemplos de acção divina especial.
Ora,
há quem veja aqui um conflito com a ciência moderna. Entre esses autores
conta-se Langdon Gilkey:
“[...] A teologia contemporânea não
espera, nem fala, de acontecimentos divinos assombrosos à superfície da vida
natural e histórica. O nexo causal no espaço e no tempo que a ciência e
filosofia do Iluminismo introduziram na mentalidade ocidental [...] é também
pressuposto pelos teólogos e estudiosos modernos; uma vez que participam no
mundo moderno da ciência, tanto intelectual como existencialmente, dificilmente
poderiam fazer outra coisa. Ora, este pressuposto de uma ordem causal entre os
acontecimentos fenoménicos, e portanto da autoridade da interpretação
científica dos acontecimentos observáveis, faz uma grande diferença no que
respeita à validade que se atribui às narrativas bíblicas, e portanto ao modo
como se entende o seu significado. Subitamente, uma vasta panóplia de feitos
divinos e acontecimentos registados na escritura não são já encarados como se
tivessem efectivamente acontecido [...] Seja o que for que os hebreus
acreditavam, nós acreditamos que as pessoas bíblicas viviam no mesmo contínuo
causal do espaço e do tempo em que nós vivemos, e portanto um contínuo em que
não ocorrem quaisquer prodígios divinos nem se ouve quaisquer vozes divinas.”
(Gilkey 1983, 31)
Claro
que muitos filósofos e cientistas concordariam. O problema é, supostamente, a
acção especial de Deus no mundo; não há qualquer problema
particular no que respeita à criação e preservação, mas a acção divina para lá
disso é largamente considerada incompatível com a ciência moderna. Onde se
considera exactamente que surge a incompatibilidade? Ao que parece, a ideia é
que a actividade divina especial seria incompatível com as leis da
natureza que a ciência põe a descoberto. Eis o distinto biólogo H.
Allen Orr:
“Não que algumas facções de uma
religião invoquem milagres: muitas facções de muitas religiões o fazem.
(Afinal, Moisés separou as águas e Krishna curou os doentes.) Concordo, é
claro, que nenhum cientista sensato pode tolerar tais excepções no que respeita
às leis da natureza.” (Orr, 2004)
Ora,
Gilkey, como outros autores, pensa aparentemente em termos de uma
mundividência newtoniana, segundo a qual o universo é como uma
máquina gigantesca que funciona segundo as leis postas a nu pela ciência. Mas
isto não é suficiente para a teologia do afastamento e da não-intervenção
destes teólogos. Afinal de contas, o próprio Newton, supostamente, aceitava a
mundividência newtoniana, mas propôs que Deus ajustava periodicamente as
órbitas planetárias, que sem isso, segundo os seus cálculos, dariam
gradualmente para o torto. O que Gilkey e os seus amigos acrescentam aqui,
aparentemente, é o determinismo: a ideia de que as leis da
natureza, juntamente com o estado do universo em qualquer momento dado,
implicam o estado do universo em qualquer outro momento. A fonte clássica aqui
é Pierre Laplace:
“Devemos encarar o estado presente do
universo como o efeito do seu estado anterior e como a causa do que se lhe
seguirá. Dado, por um instante, um espírito que pudesse compreender todas as
forças que animam a natureza, e a situação respectiva dos seres que a compõem —
um espírito suficientemente vasto para analisar estes dados — esse espírito
abrangeria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e do menor
dos átomos; para ele, nada seria incerto e o futuro, como o passado, estaria
presente aos seus olhos.” (Laplace 1796)
É
a mundividência de Laplace que aparentemente anima Gilkey, et al.
Vale a pena fazer notar, contudo, que o determinismo e a mundividência
laplaciana não se seguem da ciência clássica. Isto porque as grandes leis da
conservação deduzidas das leis de Newton são formuladas para sistemas fechados ou isolados. Eis
Sears e Zemansky (1963):
“O princípio da conservação da
energia afirma que a energia interna de um sistema isolado permanece constante.
Esta é a formulação mais geral do princípio da conservação da energia.” (p.
415)
As
leis de Newton (tal como a posterior física da electricidade e do magnetismo de
Maxwell) aplicam-se a sistemas isolados ou fechados; descrevem
como o mundo funciona desde que o mundo seja um sistema fechado
(isolado), não estando sujeito a qualquer influência causal externa. Mas
não faz parte da mecânica newtoniana nem da ciência clássica em geral a
declaração de que o universo material é realmente um sistema fechado. (Como
poderia uma coisa dessas ser verificada experimentalmente?) Logo, nada há na
ciência clássica (pelo menos nesta área) que seja incompatível com Deus mudar a
velocidade ou direcção de uma partícula, ou de todo um sistema de partículas
(ou, já agora, com a criação ex nihilo de um cavalo adulto). A
energia, a força cinética e coisas do género conservam-se num sistema fechado;
mas a tese de que o universo material é de facto um sistema fechado não faz parte
da física clássica; é um acrescento metafísico ou teológico. Logo, não há
conflito entre a física clássica e a acção divina especial no mundo.
Esta
imagem clássica, laplaciana, foi, evidentemente, ultrapassada pelo
desenvolvimento da mecânica quântica, que começou nos primeiros pares de
décadas do séc. XX. Segundo a mecânica quântica, associado a qualquer sistema
físico, um sistema de partículas, por exemplo, há uma função de onda cuja
evolução ao longo do tempo é regida pela equação de Schrödinger para esse
sistema. Ora, o interessante no que respeita à mecânica quântica é que, ao
contrário da mecânica clássica, não especifica nem prevê uma configuração única
para este sistema de partículas num momento futuro do tempo, t. A
função de onda atribui um valor em t a cada uma das
configurações possivelmente resultantes das condições iniciais; pela aplicação
da regra de Born a esses valores, obtemos uma atribuição de probabilidades a
cada uma dessas possíveis configurações em t. Assim, não nos é dito
que configuração irá de facto resultar (dadas as condições iniciais) quando o
sistema é medido em t; ao invés, é-nos dada uma distribuição de
probabilidades para os muitos resultados possíveis. É claro que os milagres (a
separação das águas, o renascimento dos mortos, etc.) não são incompatíveis com
estas atribuições. (Sem dúvida que a tais acontecimentos seriam atribuídas
probabilidades muito baixas; mas é claro que não precisamos da mecânica
quântica para saber que tais acontecimentos são improváveis.) Além disso, em
interpretações em termos de colapso, como as de Ghirardi, Rimini e Weber, há
muito espaço para a actividade divina. Na verdade, Deus pode ser afinal a causa
dos colapsos, e do modo como ocorrem (i.e., sendo P a
possibilidade que é efectivada em t, pode ser Deus a causa de P se
efectivar em t). (Isto poderia talvez ser visto como um meio
caminho entre o ocasionalismo e a causalidade secundária.) Com o advento da
mecânica quântica, portanto, parece haver ainda menos razão para ver a acção
divina especial no mundo como uma coisa que de algum modo é incompatível com a
ciência.
Contudo,
muitos autores inteiramente cientes da revolução da mecânica quântica vêem
mesmo assim um problema na acção divina especial. Por exemplo, há o “Divine
Action Project” (Wildman 1988-2003, 31-75), uma série de conferências e
publicações com quinze anos que começou em 1988. Até agora, estas conferências
resultaram em seis volumes de ensaios, envolvendo pelo menos cinquenta ou mais
autores de vários campos da ciência, juntamente com filósofos e teólogos,
incluindo muitos dos mais proeminentes autores da área. A maior parte destes
autores consideram problemática a acção divina especial. Isto porque crêem que
uma explicação satisfatória da acção de Deus no mundo teria de ser não-intervencionista, como
Wildman afirma. Eis Arthur Peacocke, comentando uma certa proposta de acção
divina:
“Deus teria de ser concebido como
alguém que efectivamente manipula micro-acontecimentos (aos níveis, atómico,
molecular e, segundo alguns autores, quântico) nestas flutuações iniciais do
mundo natural para produzir os resultados a nível macroscópico que Deus quer.
Mas tal concepção da acção de Deus [...] não seria então diferente em princípio
da intervenção de Deus na ordem da natureza, com todos os problemas
que isso evoca com respeito a uma crença racionalmente coerente em Deus como o
criador dessa ordem.” (Peacocke 2004)
O
projecto é assim, aparentemente, desenvolver uma concepção da acção divina
especial (acção para lá da criação e da preservação) que não envolva
intervenção. Mas o que seria a intervenção na imagem da
mecânica quântica? Não é fácil dizer. Na verdade, não é fácil ver como a
intervenção poderia ser diferente da acção divina para lá da criação e da
preservação. Contudo, se não há qualquer diferença entre elas, a acção divina
especial seria apenas intervenção, caso em que o projecto de desenvolver uma
concepção da acção divina especial que não envolva intervenção não é
promissora.
Mesmo
assim, uma terceira área de alegado conflito entre a crença religiosa e a
ciência tem a ver com as diferentes atitudes epistémicas associadas a cada uma
delas. Eis, por exemplo, John Worrall:
“A ciência, ou antes, a atitude
científica, é incompatível com a crença religiosa. A ciência e a religião estão
num conflito irreconciliável [...] Não há maneira de ter uma mentalidade
apropriadamente científica e ser um verdadeiro crente
religioso.” (Worrall 2004, p. 60).
Na
ciência, a atitude epistémica dominante (segundo esta tese) é a investigação
empírica crítica, propondo teorias que são sustentadas hipotética e
temporariamente; estamos sempre dispostos a abandonar uma teoria a favor de uma
sucessora mais satisfatória. Na crença religiosa (e.g., cristã), a atitude
epistémica da fé desempenha um papel importante, uma atitude
que difere tanto quanto à fonte da crença em questão, como na disponibilidade
para a abandonar.
Outros
autores (Ratzsch, 2004), contudo, fazem notar que não há aqui obviamente um
conflito. É claro que essas duas atitudes são diferentes, e
talvez não possam ser assumidas simultaneamente com respeito à mesma
proposição. Mas mostra isso umconflito entre a ciência e a crença
religiosa? Talvez alguns modos de formar crenças sejam apropriados numa área e
outros modos noutras áreas. Para que tenhamos um conflito, temos de acrescentar
que a atitude epistémica científica é a única apropriada aqualquer área
de actividade cognitiva. Esta tese, contudo, não é em si parte
da atitude científica; é uma declaração epistemológica, a favor da qual se
exige argumentação substancial (mas que até agora não é visível). Além disso,
não parece que os próprios cientistas assumam a atitude epistémica científica
(acima caracterizada) com respeito atudo o que acreditam, ou mesmo
com respeito a tudo o que acreditam como cientistas. Assim, é comum que os
cientistas acreditem que houve passado, e na verdade dizem-nos muitas vezes há
quanto tempo a Terra, ou a nossa galáxia, ou até o universo inteiro, se formou.
Os cientistas raramente sustentam esta crença — que houve passado — em resultado
da investigação empírica; nem comummente a sustentam desse modo hipotético,
crítico, procurando sempre uma alternativa melhor.
Consequentemente,
nestas áreas é difícil encontrar conflito entre a crença religiosa teísta e a
ciência contemporânea.
4. Onde há conflito?
Parece
haver outras áreas da ciência, contudo, que produzem conflito. Primeiro, há a
disciplina relativamente nova mas em rápido crescimento da psicologia
evolutiva. A alma e coração deste projecto é o esforço para explicar traços
distintamente humanos — a nossa arte, humor, ludicidade, poesia, sentido de
aventura, gosto por histórias, a nossa música, a nossa moralidade e a nossa
religião — em termos da nossa origem e história evolutiva. E aqui encontramos
realmente teorias incompatíveis com a crença religiosa. Um tópico importante
nesta área tem sido o comportamento altruísta — comportamento
que promove a boa adaptação reprodutiva de outra pessoa às custas da boa
adaptação reprodutiva do próprio altruísta. Como explicar que haja pessoas como
os missionários e a Madre Teresa, pessoas que dedicam as suas vidas ao serviço
dos outros, dando pouca atenção às suas próprias perspectivas reprodutivas?
Herbert Simon procura explicar o altruísmo de um ponto de vista evolutivo, em
termos de dois mecanismos, a docilidade e a racionalidade limitada:
“As pessoas dóceis tendem a aprender
e acreditar no que pensam que os outros membros da sociedade querem que elas
aprendam e creiam. Assim, o conteúdo do que aprendem não será completamente
analisado quanto ao contributo dado à boa adaptação reprodutiva.
Devido à racionalidade de grupo, o
indivíduo dócil será muitas vezes incapaz de distinguir entre os comportamentos
socialmente prescritos que contribuem para a boa adaptação e o comportamento
altruísta [i.e., o comportamento socialmente prescrito que não contribui para a
boa adaptação]. De facto, a docilidade irá reduzir a inclinação para avaliar de
modo independente quão contribui um comportamento para a boa adaptação [...].
Em virtude da racionalidade de grupo, a pessoa dócil não pode adquirir a
aprendizagem pessoalmente vantajosa que fornece o incremento de boa adaptação
sem adquirir também os comportamentos altruístas que têm como custo a sua
diminuição.” (Simon 1990, 3, 4)
A
teoria de Simon foi cuidadosamente trabalhada e bem desenvolvida, sendo de
considerável interesse; é também incompatível com a crença religiosa. Segundo
esta teoria, a explicação do comportamento altruísta consiste em não se ver que
o comportamento em questão compromete a boa adaptação evolutiva. Assim, segundo
a teoria de Simon, a resposta à pergunta “Por que razão se comporta a Madre
Teresa de um modo que compromete a sua boa adaptação evolutiva?” é “Devido à
racionalidade de grupo, ela é incapaz de ver que o seu modo de se comportar compromete
a sua boa adaptação.” De uma perspectiva cristã, esta não é de modo algum a
resposta correcta, que seria algo como “Ela quer seguir o exemplo de Jesus,
fazendo o que pode para ajudar os pobres e doentes.”
Outro
exemplo desta área é fornecido por muitas teorias da religião e da crença
religiosa. Segundo algumas destas teorias, a crença religiosa é falsa, mas
adaptativa; segundo outras, é falsa e contra-adaptativa. Um exemplo do primeiro
grupo seria a teoria proposta por David Sloan Wilson, que afirma que a religião
é uma adaptação de grupo: “Muitas características da religião, como a natureza
dos agentes sobrenaturais e as suas relações com os seres humanos, podem ser
explicadas como adaptações concebidas para permitir que os grupos de seres humanos
funcionem como unidades adaptativas” (Wilson 2002, p. 51). A crença religiosa,
afirma, é fictícia, mas adaptativa a nível de grupo: promove a cooperação, o
respeito mútuo e a solidariedade, permitindo assim que o grupo se saia bem em
competição com outros grupos.
Que
a religião possa funcionar como uma adaptação de grupo é, evidentemente,
consistente com a crença teísta; e que dizer do pedaço sobre a crença religiosa
— a crença teísta, por exemplo — ser fictícia? Como poderia a tese de que a
pessoa de Deus não existe fazer parte da ciência empírica? E mesmo que o
pudesse, a teoria de Wilson, ao que parece, estaria em terreno mais sólido se
esse acrescento teológico facilmente eliminável fosse excluído. O que não é tão
fácil de excluir é a tese de que a crença religiosa (ao contrário da memória,
crenças perceptivas, intuição racional) é produzida por faculdades cognitivas
ou processos que não visam a produção de crenças verdadeiras. Segundo Wilson,
estes processos ou faculdades têm uma função que lhes foi conferida pela
evolução; mas essa função não é a de produzir crenças verdadeiras. É antes a
função de produzir crenças que promovam a cooperação e a solidariedade; em
última análise, a sua função é fornecer crenças que são adaptativas, i.e.,
promovem a boa adaptação reprodutiva.
Neste
ponto, uma comparação com a perspectiva de Sigmund Freud da crença teísta pode
ser esclarecedor. Freud sustenta que a crença teísta é uma ilusão. Isto
não significa que seja falsa (apesar de Freud pensar que é falsa);
o que significa é que a crença teísta é produzida por um processo cognitivo
(sonhar alto) que não se “orienta pela realidade”; o seu propósito não é a
produção da crença verdadeira, mas (neste caso) uma crença que permita ao
crente evitar a depressão e apatia que se instalaria se ele visse claramente a
miserável chocante condição em que os seres humanos se encontram. A perspectiva
de Wilson é assim como a de Freud, uma vez que também ele propõe que a crença
teísta é produzida por faculdades cognitivas que não se orientam pela
realidade. Ao passo que Freud assume uma perspectiva pessimista da crença
teísta, Wilson é muito mais elogioso:
“Em primeiro lugar, muitas crenças
religiosas não estão separadas da realidade [...] Ao invés, estão intimamente
conectadas com a realidade, motivando comportamentos que são adaptativos no
mundo real — um feito espantoso quando nos damos conta da complexidade exigida
para ficarmos conectados neste sentido prático [...]. A adaptação é o padrão
máximo contra o qual a racionalidade tem de ser ajuizada, juntamente com todas
as outras formas de pensamento. Os biólogos evolucionistas devem entender este
aspecto especialmente bem porque estão cientes de que uma mente bem adaptada é
em última análise um órgão de sobrevivência e reprodução.” (Wilson 2002, p.
228)
Apesar
de Wilson dirigir palavras simpáticas à religião, a sua tese de que a crença
religiosa não visa a verdade é incompatível com a crença religiosa teísta.
Segundo o cristianismo, por exemplo, a fé, incluindo a crença nos aspectos
essenciais da fé cristã, é uma dádiva divina; e o processo de a produzir no
crente (o incitamento interno do Espírito Santo, segundo Tomás de Aquino, o
testemunho interno do Espírito Santo, segundo João Calvino) visa realmente a
verdade e tem como função a produção de crença verdadeira.
Assim,
há um conflito entre a ciência e a religião. O que o explica? Várias coisas,
sem dúvida; mas parte da explicação encontra-se no naturalismo
metodológico, uma restrição muitíssimo aceite na ciência. Segundo o
naturalismo metodológico (NM), ao fazer ciência temos de proceder “como se Deus
não fosse dado,” para usar as palavras de Hugo Grócio. O que significa isto
exactamente? Há várias sugestões; eis uma delas. Segundo o NM, 1) o conjunto
de dados (o modelo) de uma teoria apropriadamente científica não pode
referir Deus ou outros agentes sobrenaturais (anjos, demónios), ou empregar o
que sabemos ou pensamos saber por meio da revelação (divina). Assim, os dados
para uma teoria não incluiriam, por exemplo, a proposição de que houve
recentemente um surto de possessão demoníaca em Washington, D. C. 2) Uma teoriacientífica
apropriada não pode referir Deus ou quaisquer outros agentes sobrenaturais, nem
empregar o que sabemos ou pensamos saber por meio da revelação. Assim, se o
modelo contiver a proposição de que houve um surto de comportamentos bizarros e
irracionais em Washington, D. C., não seria apropriado propor uma teoria que
envolvesse a possessão demoníaca para o explicar. 3) Note-se, para começar, que
a probabilidade ou plausibilidade de possíveis teorias e a sua capacidade para
explicar os dados, assim como as suas implicações empíricas, é sempre relativa
a uma série deinformações de fundo ou uma base
epistémica. A terceira restrição é, então, que a base epistémica de
uma teoria apropriadamente científica não pode incluir proposições que
impliquem obviamente7 a existência de Deus ou quaisquer outros agentes
sobrenaturais, ou proposições que sabemos ou pensamos que sabemos por meio da
revelação. Pois considere-se alguém que de facto aceita as linhas principais de
uma das religiões teístas, e trabalha na área da psicologia evolucionista. Sem
dúvida que irá honrar o NM como restrição à sua actividade científica. Se o
fizer, para todos os propósitos científicos irá eliminar do seu corpo de dados
as proposições que impliquem obviamente a existência de Deus ou de outros seres
sobrenaturais, tal como o que ela sabe ou pensa que sabe por meio da fé ou da
revelação. Mas então ela poderá muito bem produzir teorias do género que temos
vindo a apontar, teorias incompatíveis com a religião teísta.
Uma
área bastante diferente, mas com a mesma dialéctica: a crítica bíblica
histórica (CBH). A CBH é diferente do comentário bíblico tradicional. O
praticante deste último pressupõe que a Bíblia é a palavra de Deus, e tenta pôr
a nu o significado do que é ensinado em várias partes da Bíblia. O praticante
da CBH, por outro lado, põe especificamente entre parêntesis a crença de que a
Bíblia é revelação divina, e tenciona ao invés estudá-la cientificamente. Assim,
o falecido Raymond Brown, um estudioso católico das escrituras muitíssimo
respeitado, crê que a CBH é “crítica bíblica científica” (Brown 1973, p. 6); dá
origem a “resultados factuais” (p. 9); pretende que os seus próprios
contributos sejam “cientificamente respeitáveis” (p. 11); e os praticantes da
CBH investigam as escrituras com “exactidão científica” (pp. 18-19); veja- se
também Meier 1991, p. 6. Estudar a Bíblia cientificamente, portanto, é
estudá-la de um modo que obedeça às restrições do NM. (Veja-se também Sanders
1985, p. 5; Levenson 1993, p. 109; e Lindars 1986, p. 91).
Tem
havido, como seria de esperar, uma tensão considerável entre a CBH, entendida
deste modo, e os cristãos tradicionais, remontando pelo menos a David Strauss,
em 1835: “Não, se fôssemos cândidos connosco mesmos, o que era história sagrada
para o crente cristão é, para a porção iluminada dos nossos contemporâneos,
apenas fábula.” Quanto a tensões contemporâneas, segundo Luke Timothy Johnson:
“Os investigadores do Jesus histórico
insistem que temos de encontrar o “Jesus real” nos factos da sua vida antes da
sua morte. A ressurreição é vista, quando chega a ser tida em consideração, em
termos de uma experiência visionária, ou como uma continuação de uma
“emancipação” que começou antes da morte de Jesus. Explícita ou não, a premissa
operativa é que não há qualquer “Jesus real” depois da sua morte.” (Johnson
1997, p. 144)
E,
segundo Van Harvey, “No que respeita ao historiador bíblico, [...] não há
praticamente qualquer crença tradicional popular sobre Jesus que não seja
encarada com considerável cepticismo” (Harvey 1986, p. 193).
Uma
característica absolutamente central da CBH é este esforço de ser científica.
Claro que podemos perguntar-nos se a CBH, ou qualquer estudo histórico, é
realmente ciência; os seus defensores dizem que o é, mas terão razão? Dada a
dificuldade do problema da demarcação, contudo, não é provavelmente avisado
transformar esta pergunta numa objecção. (Além disso, ainda que os estudos
históricos deste tipo não sejam precisamente ciência, são certamente
muito parecidos à ciência.) E na medida em que a CBH exige a
conformidade ao NM, quem a pratica põe entre parêntesis ou suspende ou põe de
lado quaisquer perspectivas teológicas, ou o que é conhecido por revelação.8 Tal
como acontece com a psicologia evolucionista, portanto, quem trabalha na CBH
pode de facto aceitar uma ou outra religião teísta, mas no seu trabalho como
praticante de CBH, chegar a conclusões incompatíveis com a sua crença
religiosa. Até agora, portanto, temos aqui a mesma dialéctica que vimos na
psicologia evolucionista: teorias incompatíveis com a religião teísta que
resultam (pelo menos em parte) do NM.
Pelo
menos nestas duas áreas, portanto, há um conflito entre as teorias científicas
e a crença religiosa. Num aspecto muitíssimo importante, contudo, este conflito
é superficial. Isto porque as teorias e teses da psicologia evolucionista e a
CBH não precisam de refutar, nem sequer parcialmente,9 aqueles
elementos da crença religiosa com os quais são incompatíveis — ainda que o
teísmo esteja obrigado a levar a ciência muito a sério e ainda que se conceda
que as teorias em questão constituem boa ciência. E isto precisamente
porque o NM é encarado como uma restrição à actividade científica. Podemos ver
isto como se segue. Como já foi sugerido, a investigação científica é sempre
conduzida contra um pano de fundo de um corpo de dados, um corpo de
conhecimento ou crença de fundo. Uma parte importante do NM, além disso, é que
este corpo de dados não pode conter proposições que impliquem obviamente a
existência de seres sobrenaturais, ou proposições que são aceites por meio da
fé. Segue-se que o corpo de dados de um partidário de uma religião teísta irá
conter o corpo científico de dados como uma parte própria; irá
incluir todas as proposições que encontramos no corpo científico de dados, além
de outros — talvez os que são específicos da crença cristã. Suponha-se agora
que uma dada teoria — a teoria do altruísmo de Simon, ou a teoria da religião
de Wilson, ou uma explicação minimalista da vida e actividade de Jesus — é de
facto ciência apropriada, e que é de facto a resposta teórica mais plausível e
cientificamente mais satisfatória aos dados, dado o CCD, o corpo científico de
dados. Isto significa que do ponto de vista do CCD, juntamente com os dados
actuais, essa teoria é o melhor ou mais plausível resultado. Mesmo assim, isso
não dá automaticamente a um crente algo que refuta aquelas suas crenças com as
quais a teoria é incompatível. Isto porque o CCD é apenas uma parte do seu
corpo de dados. E pode muito bem acontecer que uma proposição P seja
a resposta plausível, dada uma parte da minha base de dados
(juntamente com os dados actuais), que P seja incompatível com
uma das minhas crenças, e que P não me dê algo que refute essa
crença.
Por
exemplo, suponha-se que lhe digo que o vi ontem à tarde no centro comercial.
Então, com respeito a parte do seu corpo total de dados — a parte que inclui o
seu conhecimento de que eu lhe disse que o vi lá, juntamente com o seu
conhecimento de que eu tenho uma visão decente e sou, de ordinário, confiável,
etc. — a coisa certa a pensar é que você esteve no centro comercial. Contudo,
suponhamos, você sabe perfeitamente que não esteve lá;
lembra-se de ter estado toda a tarde em casa, pensando sobre o naturalismo
metodológico. Aqui, a coisa certa a pensar da perspectiva de uma parte própria
do seu corpo de dados é que você esteve no centro comercial; mas isto não lhe
fornece algo que refute a sua crença de que não esteve lá. Outro exemplo:
podemos imaginar um grupo renegado de físicos extravagantes que se propõem
reconstruir a física, recusando-se a usar crenças de memória, ou,
se isso for demasiado fantasioso, memórias com mais de um minuto. Talvez algo
se possa fazer nesta direcção, mas seria uma coisa pobre, insignificante,
mutilada e fútil. E agora suponha-se que a melhor teoria, do ponto de vista
deste corpo limitado de dados, é inconsistente com a relatividade geral. Deve
isso preocupar os físicos mais tradicionais que usam o que sabem por meio da
memória, assim como o que os físicos renegados usam? Penso que não. Esta física
mutilada dificilmente poderia pôr em questão a física mais ampla, e o facto de,
ao partir de uma parte própria do corpo científico de dados, algo inconsistente
com a teoria da relatividade constituir a melhor teoria — esse facto
dificilmente daria aos físicos mais tradicionais algo que refutasse a teoria da
relatividade.
O
mesmo ocorre no caso em discussão. O cristão tradicional pensa que sabe pela
féque Jesus era divino e que ressuscitou dos mortos. Mas então não tem de
ficar impressionado pelo facto de estas proposições não serem especialmente
objecto de prova com base no corpo de dados a que a CBH se limita — i.e., um
corpo de dados restringido pelo NM e que portanto elimina qualquer conhecimento
ou crença que dependa da fé. As descobertas da CBH, se é que o são, não têm de
lhe dar algo que refute as suas crenças com as quais são incompatíveis. O que
está em causa não é que a CBH, a psicologia evolucionista e outras teorias
científicas não podem em princípio fornecer algo que refute a crença cristã;10 o
que está em causa é apenas o aparecimento de teorias, nessas áreas,
incompatíveis com a crença cristã não produz automaticamente algo que a refute.
Tudo depende dos dados particulares aduzidos no caso em questão, e as
implicações desses dados dado o corpo completo de dados do crente. No caso em
questão, por exemplo, pode ser que, dado o CCD e o corpo relevante de dados, é
improvável que Jesus tenha renascido dos mortos. Mas dado um corpo de dados que
inclua não apenas o CCD mas também a crença em Deus, juntamente com as crenças
especificamente cristãs de que Jesus é a segunda pessoa da Trindade encarnada,
e que o Novo Testamento é uma fonte de informação fidedigna nestas questões —
dadas estas coisas, a proposição de que Jesus renasceu dos mortos pode não ser
improvável. Considerações semelhantes se poderiam fazer, é claro, para outras
religiões teístas, e com respeito a outras supostas refutações científicas.
Uma
pessoa poderia protestar que isto parece uma receita para a irresponsabilidade
intelectual, para nos agarrarmos a crenças face aos dados. Não poderá um crente
dizer sempre algo como isto, seja qual for a refutação que se apresente?
“Talvez B (a crença a refutar) seja improvável com respeito a
uma parte do que acredito,” poderá o crente dizer, “mas certamente não é
improvável com respeito à totalidade do que acredito, totalidade essa que
inclui, é claro, a própria B.” É óbvio que isto não pode estar
certo; se estivesse, tudo o que hipoteticamente poderia refutar algo seria
posto de lado deste modo, e a refutação seria impossível. Mas a refutação não é
impossível; acontece por vezes que adquirimos algo que refuta uma crença B, ao
descobrir que B é improvável com respeito a um dado
subconjunto próprio do nosso corpo de dados. Segundo o livro de Isaías (41:9),
Deus afirma “fui buscar-te aos confins da Terra,
chamei-te
dos cantos mais remotos. Eu disse-te: Tu é que és o meu servo. Foi a ti que
escolhi e não te rejeitarei.” Uma pessoa poderia acreditar que R, a
proposição de que a Terra é um sólido rectangular, com cantos, na base deste
texto; terá algo que refuta esta crença quando for confrontada com os dados
científicos — fotografias da Terra vista do espaço, por exemplo — que a
contrariam. Em qualquer caso, terá algo que refuta R se o
resto da sua estrutura noética for como a nossa. O mesmo acontece com alguém
que sustente crenças pré-copernicianas com base em textos como “A Terra
permanece imóvel; não será deslocada” (Salmos 104:5). Por que há refutadores em
alguns casos, mas não noutros? O que faz a diferença?
Eis
uma sugestão. Considere-se uma crença religiosa B, incompatível com
um resultado de uma teoria científica actual: B poderia ser,
por exemplo, a crença de que a Madre Teresa era perfeitamente racional ao
comportar-se daquele modo altruísta. Seja a teoria científica a explicação do
altruísmo de Herbert Simon, e seja CDC o corpo de dados do crente. A nossa
questão é se A, a crença de que a teoria de Simon é
apropriadamente ciência (e que implica a negação de B),
refuta B. Acrescente-se A ao corpo de dados
de S; agora a questão correcta é, talvez, esta: é B epistemicamente
improvável com respeito à conjunção de A com CDC? Claro que a
própria B poderia ser inicialmente um membro do CDC, caso em
que não seria certamente improvável com respeito a ele. Se isso fosse
suficiente para A não refutar B, contudo, nenhum
membro do corpo de dados poderia alguma vez ser refutado por uma nova
descoberta; e isso não pode estar certo. Assim, apague-se B do
CDC. Chame-se ao resultado de apagar Bdo corpo de dados de S “CDC
reduzido com respeito a B” — “CDC-B”, abreviando.11 E
agora a sugestão — chamemos-lhe “o teste por redução da refutação” — é
que Arefuta B apenas se B for
apropriadamente improvável com respeito à conjunção de Acom CDC-B.
Suponha-se
que aplicamos este teste à crença B de que a Madre Teresa era
racional ao comportar-se de modo altruísta, sendo A a crença
de que a teoria de Simon do altruísmo é boa ciência e é incompatível com B; e
suponhamos que S é um crente cristão. Para aplicar o teste por
redução temos de perguntar se B é improvável com respeito à
conjunção de A com CDC-B. A resposta, penso, é que B não
é improvável com respeito a essa conjunção. Pois CDC-B inclui os dados
empíricos, seja eles quais forem exactamente, usados por Simon, mas também a
proposição de que nós, seres humanos, fomos criados por Deus e fomos criados à
sua imagem, juntamente com o resto das ideias principais da história cristã. Com
respeito à conjunção de A com essecorpo de
proposições, não é provável que se a Madre Teresa tivesse sido mais racional,
mais esperta, teria agido para aumentar a sua boa adaptação reprodutiva, em vez
de viver de modo altruísta. Logo, no proposto teste por redução, o facto de que
a teoria de Simon é boa ciência, e é mais provável do que improvável com
respeito ao corpo científico de dados — esse facto não dá a S algo
que refute o que ele pensa sobre a Madre Teresa.
Considere-se,
por outro lado, a crença B* de que a Terra tem cantos e
arestas, e os dados fotográficos contra essa crença: aqui, plausivelmente, o
teste por redução tem como resultado que os segundos refutam B*. (É
verdade que um cristão poderia pensar que a Bíblia é infalível, dado Deus ser o
seu autor último; mas é claro que isso deixa em aberto a questão de saber o que
visa Deus ensinar-nos na passagem em questão.) Assim, o teste por redução dá
resultados sensatos nestes dois casos. Contudo, não pode estar certo em geral —
mais exactamente, está certo em geral apenas aceitando um pressuposto muito
importante, que o crente provavelmente rejeitará. Pois poderá acontecer,
obviamente, que B tenha bastante aval em si mesma, aval que
não obtém dos outros membros do CDC ou, na verdade, de quaisquer outras
proposições. B pode ser básica com respeito
ao aval; B pode obter aval de uma fonte diferente de qualquer
fonte envolvida na teoria científica com a qual é incompatível. Se isso
acontecer, o facto de B ser improvável com respeito a CDC-B
não mostra que S tem algo que refutaB pelo facto
de B ser improvável com respeito a CDC-B juntamente com
a A relevante.
Como
exemplo ilustrativo, você está a ser julgado por um dado crime; os dados contra
si são fortes, e você é condenado. Contudo, você lembra-se muito claramente que
no momento em que o crime ocorreu estava a passear sozinho no bosque. A sua
crença de que estava a caminhar no bosque não se baseia em argumentos ou
inferências de outras proposições. (Você não repara, e.g., que se sente um
pouco cansado e que os seus sapatos têm lama, e que está um mapa da área no
bolso do seu casaco, concluindo que a melhor explicação destes fenómenos é que
esteve a caminhar no bosque.) Assim, considere-se o seu corpo de crenças, SCC,
menos P, a proposição de que não cometeu o crime e estava a
caminhar no bosque quando este foi cometido. Com respeito a SCC-P, P é
epistemicamente improvável; afinal, você tem os mesmos dados do que o júri a
favor de ¬P, e o júri está muito apropriadamente (ainda que
erradamente) convencido de que você cometeu o crime. Contudo, você não tem
aqui, certamente, algo que refuta a sua crença de que está inocente. A razão, é
claro, é que Pé para si uma fonte de aval independente do resto das
suas crenças: você lembra-sedisso. No caso destes, ter ou não algo
que refute a crença P em questão irá depender, por um lado, da
força do aval intrínseco que tem P, e, por outro lado, da
força dos dados contra P quanto a SCC-P. O aval intrínseco
será muitas vezes mais forte.
O
mesmo se aplica a crenças religiosas, se estas de facto tiverem aval
intrínseco. Se Stem uma crença religiosa B e
se B tiver aval do modo básico, então mesmo que a
probabilidade de B quanto a CDC-B juntamente com a A relevante
seja baixa, não se segue que A refuta B para S. Talvez
o teste por redução ofereça uma condição necessária para que A refute B para S; é
também suficiente apenas se as crenças religiosas não tiverem aval ou estatuto
epistémico positivo de um modo básico, e apenas se não adquirem aval ou
estatuto epistémico positivo de uma fonte além das que conferem esse estatuto
às crenças científicas. É por isso, em parte, que a questão mencionada na
secção 2 é importante.
5. Naturalismo e
ciência
Examinámos
até agora o alegado conflito entre a crença religiosa e a ciência, com respeito
a várias áreas: evolução, acção divina no mundo, a diferença entre a atitude
científica e a religiosa, psicologia evolucionista e CBH. Mas houve quem
sugerisse um conflito entre a ciência e a religião (ou entre a ciência e a
quase-religião) de um género totalmente diferente: entre o naturalismo e
a ciência (Otte 2002; Plantinga 1993, 2002a; Rea 2002; Taylor 1963; há também
sugestões disto em Nietzsche 2003 e no próprio Darwin 1887).
Ora
bem, o naturalismo é muito diversificado. Primeiro, há a perspectiva de que a
natureza é tudo o que há; não há seres sobrenaturais. Claro que isto é um pouco
fraco como explicação do naturalismo; precisamos de saber o que é a natureza, e
como poderiam ser os alegados seres sobrenaturais. Talvez um modo de proceder
seja dizer que o naturalismo, concebido deste modo, é a perspectiva de que não
há uma pessoa como o Deus do teísmo, ou algo como Deus (veja-se, por exemplo,
Beilby 2002). Chame-se a isto “naturalismo1.” Outra variedade de naturalismo,
“naturalismo científico,” como lhe poderíamos chamar, seria a tese de que não
há entidades além das que são sancionadas pela ciência actual (Kornblith 1994).12 Dado
que a ciência actual não sanciona seres sobrenaturais, o naturalismo científico
implica o naturalismo1. Há também o que poderíamos chamar “naturalismo
epistemológico,” segundo o qual, grosso modo, os métodos da
ciência são os únicos métodos epistémicos apropriados (Krikorian 1994). Com a
ajuda de um par de premissas razoavelmente óbvias, o naturalismo epistemológico
implica também o naturalismo1, e eu irei usar “naturalismo” para referir a disjunção
das três versões de naturalismo esboçadas. Os partidários do naturalismo,
concebido deste modo, seriam (por exemplo) Bertrand Russell (1957), Daniel
Dennett (1995), Richard Dawkins (1986), David Armstrong (1978) e muitos outros
de quem por vezes se diz que subscrevem “a mundividência científica.”
O
naturalismo não é, presumivelmente, uma religião. Num aspecto muito importante,
contudo, é parecido a uma religião: pode-se dizer que desempenha a função de
uma religião. Há o domínio de questões profundamente humanas a que uma religião
tipicamente responde (veja-se acima, secção I): qual é a natureza fundamental
do universo: por exemplo, é a mente primordial, ou a matéria (não mental)? O que
há de mais real e básico na realidade, e que tipos de entidades exibe? Qual é o
lugar dos seres humanos no universo, e que relação têm com o resto do mundo? Há
perspectivas de uma vida depois da morte? Existe pecado, ou algo a análogo ao
pecado? Se sim, que perspectivas existem de o combater ou ultrapassar? Onde
temos de atentar para melhorar a condição humana? Há realmente um summum
bonum, um bem mais elevado para os seres humanos, e se sim, o que é?
Como uma religião típica, o naturalismo dá um conjunto de respostas a estas e
outras questões semelhantes. Podemos portanto dizer que o naturalismo
desempenha a função cognitiva de uma religião, e portanto é sensato concebê-lo
como uma quase-religião.
Acresce
que muitos pensadores, remontando pelo menos a Nietzsche (2003) e possivelmente
a William Whewell (Curtis 1986), fizeram notar uma implicação potencialmente
preocupante da teoria da evolução. A preocupação pode ser formulada como se
segue. Segundo o darwinismo ortodoxo, o processo da evolução é conduzido
principalmente por dois mecanismos: mutação genética aleatória e selecção
natural. O primeiro é a fonte principal de variabilidade genética; em virtude
da segunda, uma mutação que resulte num traço transmissível geneticamente e que
aumente a boa adaptação irá provavelmente espalhar-se por essa população e ser
preservada como parte do genoma. São os comportamentos e traços que aumentam a
boa adaptação que são recompensados pela selecção natural; o que é penalizado
são traços e comportamentos que dificultam a boa adaptação. Ao produzir as
nossas faculdades cognitivas, a selecção natural irá favorecer as faculdades e
processos cognitivos que resultem em comportamento adaptativo; não se importa
nem um pouco com a crença verdadeira (enquanto tal) nem com as faculdades
cognitivas que conduzem de modo fidedigno à crença verdadeira. Como afirmou o
psicólogo evolucionista David Sloan Wilson, “a mente bem adaptada é em última
análise um órgão de sobrevivência e reprodução” (Wilson 2002, 228). Se as
nossas mentes servem para algo, não é a produção de crenças verdadeiras, mas
antes a produção de comportamento adaptativo: que a nossa espécie tenha
sobrevivido e evoluído garante, no máximo, que o nosso comportamento é
adaptativo; não garante, nem sequer torna provável, que os nossos processos de
produção de crenças sejam na sua maior parte fidedignos, ou que as nossas
crenças sejam na sua maior parte verdadeiras. Isto porque o nosso comportamento
poderia perfeitamente ser adaptativo, mas as nossas crenças serem tão frequentemente
falsas como verdadeiras. O próprio Darwin se preocupou aparentemente com esta
questão:
“Comigo, levanta-se sempre a dúvida
horrível de as convicções da mente humana, que foi desenvolvida a partir da
mente dos animais inferiores, terem ou não algum valor, ou serem realmente
dignas de confiança. Confiaria alguém nas convicções da mente de um macaco, se
é que em tal mente há quaisquer convicções?” (Darwin 1887)
Podemos
formular brevemente a dúvida de Darwin como se segue. Seja R a
proposição de que as nossas faculdades cognitivas são fidedignas, N a
proposição de que o naturalismo é verdadeiro e E a proposição
de que nós e as nossas capacidades cognitivas surgimos dos processos apontados
pela teoria evolucionista contemporânea: qual é a probabilidade condicional
de R dado N&E? I.e., qual é o valor
de P(R | N&E)? Darwin receia que
seja muito baixo.
Mas
é claro que só a evolução natural que não seja guiada dá
origem a esta preocupação. Se a selecção natural for guiada e orquestrada pelo
Deus do teísmo, por exemplo, a preocupação desaparece; Deus usará todo o
processo, presumivelmente, para criar criaturas do género que quer, criaturas à
sua própria imagem, criaturas com faculdades cognitivas fidedignas. Assim, é a
evolução que não é guiada, e as crenças metafísicas que implicam a evolução que
não é guiada, que dão origem a esta preocupação quanto à fiabilidade das nossas
faculdades cognitivas. Ora, o naturalismo implica que a evolução, se ocorre,
não é realmente guiada. Mas então, segundo esta sugestão, é improvável que as
nossas faculdades cognitivas sejam fidedignas, dada a conjunção do naturalismo
com a proposição de que nós e as nossas faculdades cognitivas surgimos por meio
da selecção natural, peneirando a variação genética aleatória. Sendo assim,
quem crê nesta conjunção terá algo que refuta a proposição de que as nossas
faculdades são fidedignas — mas se isso for verdadeiro, terá também algo que
refuta qualquer crença produzida pelas suas faculdades cognitivas — incluindo,
é claro, a conjunção do naturalismo com a evolução. Assim se vê que essa
conjunção é auto-refutante. Se o for, contudo, tal conjunção não pode
racionalmente ser aceite, caso em que há um conflito entre o naturalismo e a
evolução, e portanto entre o naturalismo e a ciência.
Podemos
formular esquematicamente o argumento como se segue:
1.
P(R | N&E) é baixa.
2.
Quem aceitar N&E e
vir que 1 é verdadeira, tem algo que refuta R.
3.
Quem tem algo que refuta R tem
algo que refuta qualquer outra crença que tenha, incluindo a própria N&E.
4.
Logo, quem aceitar N&E e
vir que 1 é verdadeira, tem algo que refuta N&E; logo, N&E não
pode ser racionalmente aceite.
Claro
que esta é uma versão concisa e meramente esquemática do argumento; não há aqui
espaço para as necessárias qualificações.
A
defesa de 1 seria algo como o seguinte. Primeiro, para evitar a influência do
nosso pressuposto natural de que as nossas faculdades cognitivas são
fidedignas, pensemos não sobre nós, mas sobre criaturas hipotéticas muito
parecidas connosco, existindo talvez noutra parte do universo; e suponha-se
que N e E são verdadeiras com respeito a
elas. De seguida, note-se que o naturalismo implica aparentemente o
materialismo (quanto aos seres humanos); a ciência actual não sustenta a
existência de almas imateriais ou mentes ou eus. Assim, considere-se que o
naturalismo inclui o materialismo. O que seria uma crença,
deste ponto de vista? Presumivelmente, algo como um acontecimento ou estrutura
de longo prazo no sistema nervoso — talvez um grupo estruturado de neurónios
conectados e relacionados de certos modos. Tal estrutura neuronal terá
propriedades neurofisiológicas (“propriedades NF”):
propriedades que especificam o número de neurónios envolvidos, o modo como
estes neurónios estão conectados entre si e com outras estruturas (como
músculos, glândulas, órgãos dos sentidos, outros acontecimentos neuronais,
etc.), a cadência e intensidade médios dos disparos neuronais em várias partes
deste acontecimento, e os modos como estas cadências de disparos mudam ao longo
do tempo e em resposta aos dados de entrada de outras áreas. Se este
acontecimento for realmente umacrença, contudo, terá também conteúdo; será
a crença de que p, para uma dada proposição p —
talvez a proposição de que o naturalismo está na berra hoje em dia.
Qual
é a relação entre as propriedades NF, por um lado, e as propriedades do
conteúdo — propriedades como ter como conteúdo a proposição de que o
naturalismo está na berra hoje em dia —, por outro? Talvez a posição
mais popular aqui seja o “materialismo não redutor” (MNR): as propriedades do
conteúdo são distintas mas são sobrevenientes relativamente às
propriedades NF.13 A sobreveniência pode ser ou lógica, em termos
latos, ou nómica. Neste último caso, haveria leis psicofísicas relacionando as
propriedades NF com as propriedades do conteúdo: leis do género qualquer
estrutura com tais e tais propriedades NF terão tal e tal conteúdo.Estas
leis serão presumivelmente contingentes (no sentido lógico lato ou no sentido
metafísico). No primeiro caso, haverá também tais leis, mas serão necessárias e
não contingentes.
Ora,
tome-se qualquer crença B da parte de um membro dessa
hipotética população: qual é a probabilidade (epistémica) de que B seja
verdadeira, dado N&E e o materialismo não redutor —
qual é o valor de P(B | N&E&MNR)?
O que sabemos é queB tem um certo conteúdo (chamemos-lhe “C”),
e (podemos admitir ou conceder) ter B é adaptativo nas
circunstâncias em que a criatura se encontra. Qual é então a probabilidade de
que C, o conteúdo de B, seja verdadeiro? Bem,
qual é a probabilidade de que a lei psicofísica relevante L que
liga as propriedades NF e as propriedades do conteúdo produza uma
proposição verdadeira como conteúdo neste caso? Ter B é
adaptativo, nas circunstâncias em que a criatura se encontra; exibir as
propriedades NF sobre as quais C sobrevém causa comportamento
adaptativo. Mas porquê pensar que o conteúdo conectado às propriedades NF
por L será verdadeiro nas circunstâncias desta criatura? O que
conta como adaptatividade são as propriedades NF e o comportamento que estas causam;
não importa se o conteúdo sobreveniente é verdadeiro. As propriedades NF são de
facto adaptativas; mas isso não fornece qualquer razão, até agora, para pensar
que o conteúdo sobreveniente é verdadeiro. TerB é adaptativo em
virtude de causar comportamento adaptativo, e não em virtude de ter um conteúdo
verdadeiro. Claro que se o teísmo for verdadeiro, então os seres humanos (ao
contrário dessas hipotéticas criaturas, para quem o naturalismo é verdadeiro)
são feitas à imagem divina, o que inclui a capacidade de conhecimento; assim,
Deus escolheria presumivelmente as leis psicofísicas de modo a que, nas
circunstâncias relevantes, a neurofisiologia produza conteúdo verdadeiro. Mas
nada disto é verdadeiro dado o naturalismo; supor que as propriedades do conteúdo
que são adaptativas conduzem também, na sua maior parte, a conteúdo verdadeiro,
seria um optimismo totalmente injustificado.
Assim,
qual é o valor de P(B | N&E&MNR)?
Bem, dado que a verdade de B não faz diferença quanto à
adaptatividade de B, esta poderia efectivamente ser verdadeira, mas
é igualmente provável que seja falsa; teríamos de calcular que a probabilidade
de que é verdadeira é mais ou menos a mesma do que a probabilidade de que é
falsa. Mas isto significa que é improvável que o crente em questão tenha
faculdades cognitivas fidedignas, i.e., faculdades que produzem uma
preponderância suficiente de crenças verdadeiras em relação às falsas. Por
exemplo, sendo assim, se o crente em questão tiver mil crenças independentes,
cada uma delas tendo igual probabilidade de ser falsa ou verdadeira, a
probabilidade de, digamos, 3/4 delas serem verdadeiras (e isto seria uma
exigência modesta de fiabilidade) seria muito baixa — menos de 10-58.
Assim, P(B| N&E&MNR),
aplicada a estas criaturas, será baixa. Mas é claro que o mesmo se aplicaria a
nós, se o naturalismo fosse verdadeiro: P(B | N&E&MNR),
aplicada a nós, seria igualmente baixa.14
Este
é o argumento para a primeira premissa. Segundo a premissa 2, quem vê isto e
também aceita N&E tem algo que refuta R,
uma razão para a abandonar, para deixar de crer nela. A defesa oferecida desta
premissa é por meio de uma analogia partindo de casos claros. Suponha-se que
acredito que há uma droga — chamemos-lhe XX — que destrói a fiabilidade
cognitiva; eu acredito que 95% dos que ingerem XX perdem a fiabilidade
cognitiva. Suponha-se ainda que eu acredito agora que ingeri XX e que P(R |
ingeri XX) é baixa; tomadas conjuntamente, estas duas crenças dão-me algo que
refuta a minha crença inicial ou pressuposto de que as minhas faculdades
cognitivas são fidedignas. Além disso, não posso apelar para qualquer das
minhas outras crenças para mostrar ou argumentar que as minhas
faculdades cognitivas ainda são fidedignas; qualquer dessas outras crenças está
também agora sob suspeita ou está comprometida, tal como R. Qualquer
outra crença B é um produto das minhas faculdades cognitivas:
mas então, ao reconhecer isto, e tendo algo que refuta R, tenho
também algo que refuta B. Claro que haverá muitos outros exemplos:
chego ao mesmo resultado se acreditar que sou um cérebro numa cuba e que P(R |
sou um cérebro numa cuba) é baixa; o mesmo se aplica à versão cartesiana
clássica da mesma ideia (nomeadamente, que fui criado por um ser que gosta de
me enganar) e também para cenários mais corriqueiros, por exemplo, a crença de
que enlouqueci (talvez porque tenha sido contaminado com a doença das vacas
loucas). Em todos estes casos, tenho algo que refuta R.
Ora,
segundo a premissa 3, quem tem algo que refuta R, tem algo que
refuta qualquer crença que considere que é um produto das suas faculdades
cognitivas — que são, é claro, todas as suas crenças. Essa
pessoa tem portanto algo que refuta a própria N&E;
quem aceita N&E (e vê que P(R | N&E)
é baixa) tem algo que refuta N&E, uma
razão para duvidar dela ou rejeitá-la ou para ser agnóstico com respeito a ela.
Nem poderia essa pessoa obter indícios independentes a favor de R; o
processo de o fazer iria é claro pressupor que as suas
faculdades são fidedignas. Ela estaria a apoiar-se na precisão das suas
faculdades para acreditar que os alegados indícios estão de facto presentes e
que são de facto indícios a favor de R. Thomas Reid (1785,
276) formulou este aspecto como se segue:
“Se a honestidade de um homem é posta
em causa, seria ridículo basearmo-nos na sua própria palavra, seja ele honesto
ou não. O mesmo absurdo há ao procurar provar, por qualquer tipo de raciocínio,
provável ou demonstrativo, que o nosso raciocínio não é falacioso, dado que o
que está em causa é o nosso raciocínio ser ou não digno de confiança.”
O
argumento conclui que a conjunção de naturalismo com a teoria da evolução não
pode ser racionalmente aceite — em qualquer caso, por alguém que seja posto ao
corrente deste argumento e veja a conexão entre N&E e R.
Como
seria de esperar, este argumento tem sido controverso. Várias objecções lhe
foram levantadas (Beilby 1997; Ginet 1995, 403; O'Connor 1994, 527; Ross 1997;
Fitelson e Sober 1998; Robbins 1994; Fales 1996; Lehrer 1996; Nathan 1997;
Levin 1997; Fodor 1998). Houve respostas a estas objecções (Plantinga 2002a;
2003), respostas a estas respostas (Talbott, 2010), etc.; não há qualquer
consenso com respeito ao argumento. Se o argumento for correcto, contudo,
e N&E não puder ser racionalmente aceite, então há
um conflito entre o naturalismo e a evolução; não se pode racionalmente aceitar
ambos. Assim, há um conflito entre o naturalismo e uma das bases principais da
ciência contemporânea. Na medida em que o naturalismo é uma quase-religião em
virtude de desempenhar a função cognitiva de uma religião, há uma espécie de
conflito entre a religião e a ciência —não entre a religião teísta e a ciência,
mas entre o naturalismo e a ciência.
Notas:
1. Mas o que dizer do empirista construtivo e do
instrumentalista? Bem, em qualquer caso visam fazer previsões verdadeiras, ou
teorias que visam fazer previsões verdadeiras, ainda que não teorias
verdadeiras.
2. Distinguimos aqui entre a crença em Deus e
a crença de que Deus existe. A crença em Deus inclui
a crença de que Deus existe e, além disso, envolve confiar em
Deus, fazer dos seus os nossos propósitos, identificarmo-nos com ele e/ou com
os seus propósitos, venerá-lo, comprometermo-nos com ele, etc.
3. Há excepções. Você usa um computador para calcular o
produto de um par de números com seis algarismos; o computador devolve um certo
número n. O seu conhecimento de que o produto é de facto n —
que é, evidentemente, necessário — é a posteriori;depende do seu
conhecimento a posteriori de que o computador apresenta
respostas correctas. Denomino o mundo efectivo “α;” então, é uma verdade necessária que (digamos) houve uma
guerra civil em α, mas a única maneira de você conhecer
esta verdade necessária é a posteriori.
4. Houve quem afirmasse haver verdades contingentes de que
temos conhecimento a priori.Outros afirmam que isto é um erro;
veja-se Plantinga 1974, p. 8, n. 1.
5. “Se existisse uma explicação simples, seria antes em termos
da habitual autoridade societal implacável na supressão da opinião minoritária,
e, no caso de Galileu, com o aristotelismo, e não o cristianismo, no lugar de
autoridade.” (Drake 1980, v).
6. A sugestão não é que nenhuma teoria científica pode conter
elementos metafísicos; a sugestão é apenas que esta afirmação particular é
claramente metafísica, e também claramente um acrescento: não faz parte da teoria
evolucionista tal como esta é actualmente entendida.
7. “Impliquem obviamente”: segundo a maior parte das crenças
teístas tradicionais, a existência de Deus é uma verdade necessária. Se o for,
contudo, todas as proposições a implicariam, de modo que a condição em questão
tem de ser formulada com maior circunspecção.
8. Devo sublinhar que a CBH é um projecto, e não um
instrumento. Os instrumentos usados pelos especialistas em crítica bíblica
histórica — conhecimento da língua, cultura e história relevante, crítica da
resposta do leitor, crítica narrativa, ideias das ciências sociais — são
também, é claro, instrumentos dos comentadores bíblicos tradicionais, assim
como de quem levanta as questões levantadas pelos especialistas em crítica
bíblica histórica, mas de uma perspectiva não limitada pelo NM.
9. Algo que refuta uma crença B que
eu tenha é outra crença D que adquiro tal que, dada a minha
série particular de crenças e a força com que as mantenho, não posso
racionalmente continuar a aceitar B desde que aceite D; se D for
algo que refuta parcialmente B, então não posso continuar a aceitar
(acreditar) B com a mesma força.
10.
Suponha-se que se descobre uma série
de cartas e as últimas técnicas de datação as localizam na primeira parte do
séc. I; nas cartas mais antigas os apóstolos planeiam o embuste, e nas mais
recentes congratulam-se por ter tudo corrido muito bem... Veja-se van Fraassen
(1993), p. 322.
11.
Claro que temos também de eliminar
proposições que implicam B, e talvez certas proposições
probabilisticamente relacionadas com B. Em geral, haverá mais de
uma maneira de o fazer. Sem entrar em pormenores, digamos (um pouco vagamente)
que CDC-B é qualquer subconjunto de CDC que não implica B e,
à parte isso, é maximamente semelhante a CDC.
12.
Alternativamente, o naturalismo
científico deve ser visto como a injunção ou resolução de não tolerar quaisquer
entidades que não sejam sancionadas pela ciência contemporânea; see van
Fraassen (2002).
13.
Ou, para acomodar o externismo quanto
ao conteúdo (“o significado não 'tá na cabeça”), relativamente às propriedades
NF juntamente com certas propriedades do meio ambiente. Esta qualificação
estará pressuposta mas não mencionada no que se segue.
14.
Podemos argumentar de modo semelhante
a favor da baixa probabilidade de R dadoN&E e
o materialismo redutor, a ideia de que as propriedades de
conteúdo são apenaspropriedades NF (complexas); limitações de
espaço não permitem apresentar aqui o argumento.
Alvin Plantinga
Artigo
originalmente publicado em The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer
2010 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL =
Tradução de Desidério
Murcho
Tito Colaço
VI _ III _MMXV
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