"Que significa orientar-se no pensamento?"
I. KANT
Apresentação
A expressão “orientar-se” não é, feitas as contas, a mais frequenteno vocabulário kantiano. Mas tem uma característica muito marcada: é forte, incisiva e surge, na pena de Kant, como uma obrigação intelectual e moral. Intima a uma espécie de conversão, não esporádica mas incessante. É sinal de salubridade do entendimento, pedra-de-toque – gosta ele de repetir – para deslindar usos inadequados da razão, que nos induzem a afirmar mais do podemos ou devemos.
Vários são os motivos por que o mestre de Königsberg advoga a indispensável necessidade de se orientar no pensamento: no uso especulativo da razão ela servirá para evitar, sobretudo em plena noite do supra-sensível, atitudes alumbradas e fantasmáticas, cujo resultado é destronar a razão como única e verdadeira exegeta do nosso discurso em face dos sofismas que nos seduzem; no pensamento lógico, ela alivia da contradição e das inconsequências em que sempre podemos incorrer, e contrapõe-se ainda ao devaneio da necessidade de supor e de presumir de modo translúcido uma Inteligência criadora em face da ordem cósmica. Mas, neste percurso, o guia será sempre a necessidade subjectiva da razão que se faz sentir, mais no seu uso prático, do que no teórico, porque naquele se lida com a moralidade, a liberdade, a urgência de conferir realidade objectiva ao conceito de bem supremo, cerne e fito da vida moral. A sua expressão é, portanto, a fé racional, baseada apenas nos dados da razão pura, num assentimento subjectivamente suficiente, nunca equivalente ao saber, mas assente, todavia, em motivos objectivamente válidos. Tal fé não equivale à crença histórica; nunca será um saber; é simples pressuposto, postulado, fundado na necessidade do seu uso no propósito prático. É ela que orienta e vai à frente.
Por outro lado, a verdadeira liberdade de pensamento brota apenas da submissão às leis que a razão a si mesma dá. Quando tal não acontece, acabará por entrar em cena a coacção civil, a tutoria espiritual que fomenta o infantilismo e a cegueira ideológica ou o uso sem lei que nasce do capricho, do delírio, do génio vagabundo e entregue às suas cismas. Outro desfecho pode ser a incredulidade, que rouba às leis morais toda a sua força, e ao dever todo o seu peso, abrindo assim caminho à intervenção da autoridade civil, com o seu interdito da liberdade pensar ou de comunicar o pensamento. De facto, “a liberdade de pensamento, ao querer agir de modo absolutamente independente das leis da razão, acaba por se destruir a si mesma”. Assim se compreende que, aos olhos de Kant, a fé racional, com a sua exigência intrínseca, esteja ao serviço da melhoria do mundo – o que leva a entrever de novo, aqui e noutros lugares, o laço profundo que ele estabelece entre política e moralidade.
Tal é o núcleo essencial deste pequeno ensaio, publicado em 1786 no jornal Berlinische Monatsschrift.
Tradutor: Artur Morão
TITO COLAÇO
04_VIII_2013
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