Esta prosa travada
Põe-se a gente a ler estes Gides, estes Munthes, estes Malraux. E é sempre a mesma sensação de plenitude.
Sempre a mesma sensação de que, depois daquilo, não vale a pena escrever uma palavra, de mais a mais nesta língua de que o diabo ainda se serve para falar à avó... Mas depois vem a revolta. Esta impotente revolta de todo o verdadeiro escritor português que começou por nascer atrás duma fraga e acaba por gastar a vida em Paio Pires, amanuense de secretaria. Metessem no braço dum Gide uma manga de alpaca, e eu queria ver...
Então um homem nasce em Paris ou numa terra lavada da Suécia, tanto faz, mestres logo à beira do berço, todas as civilizações na biblioteca do pai, uma vida inteira pelo mundo além, e aqueles neurónios, e aqueles sentidos não hão-de reagir?!
O mais bronco ser humano, quando fala com um Wilde, ouviu pelo menos falar o autor do De Profundis.
Evidentemente é preciso mais alguma coisa do que ir à China e ter certa experiência para escrever "A Condição Humana".
Mas, sem um homem andar de avião, como há-de um homem ganhar perspectivas de pássaro e falar de poços de ar?! ...
E a gente não tem outro remédio senão gastar as horas a fabricar esta prosa travada, mais circunlóquio menos circunlóquio, esta prosa perra e oca que chega a meter nojo aos cães.
Miguel Torga
"Diário (1936)"
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XXIII_VIII_MMXIII
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