Fiat lux…
Possivelmente não é sem razão que atribuímos à ingenuidade e
ignorância a facilidade de crer e de se deixar persuadir: pois parece-me ter
aprendido outrora que a crença era como uma impressão que se fazia na nossa
alma; e na medida em que esta se encontrava mais mole e com menor resistência,
era mais fácil imprimir-lhe algo. “Assim
como, necessariamente, os pesos que nele colocamos fazem pender o prato da
balança, assim a evidência arrasta a mente” (Cícero).
Quanto mais vazia e sem contrapeso está a alma, mais facilmente
ela cede sob a carga da primeira persuasão.
Eis porque as crianças, o vulgo, (...) e os doentes estão mais
sujeitos a ser conduzidos pelas orelhas (ou seja, pelo que ouvem). Mas também,
por outro lado, é uma tola presunção ir desdenhando e condenando como falso o
que não nos parece verossímil; esse é um vício habitual nos que pensam ter
algum discernimento além do comum.
Outrora eu agia assim, e, se ouvia falar de
espíritos que retornam, ou do prognóstico das coisas futuras, de encantamentos,
de feitiçarias, ou contarem alguma outra história que eu não conseguisse
compreender, vinha-me compaixão pelo pobre povo logrado por essas loucuras. Mas,
actualmente acho que eu próprio era no mínimo igualmente digno de pena; não que
posteriormente a experiência me tenha feito ver acima das minhas primeiras
crenças, o que no entanto não dependeu da minha curiosidade (não resultou de
uma falta de curiosidade minha); mas a razão ensinou-me que condenar assim
resolutamente uma coisa como falsa e impossível é atribuir a si mesmo o
privilégio de saber as fronteiras e os limites da vontade de Deus e do poder da
nossa mãe natureza; e que não há no mundo loucura mais imensa do que reduzi-los
à medida da nossa capacidade e inteligência.
Se chamarmos de monstros ou milagres aquilo a que a nossa razão não consegue chegar, quanto disso se apresenta continuamente à nossa vista?
Se chamarmos de monstros ou milagres aquilo a que a nossa razão não consegue chegar, quanto disso se apresenta continuamente à nossa vista?
Consideremos o quanto é pelo meio do nevoeiro e às apalpadelas
que somos conduzidos ao conhecimento da maioria das coisas que temos em mãos:
sem dúvida descobriremos que é mais o hábito do que o conhecimento que nos
elimina a estranheza delas, “Enfadados
e saciados que estamos do espectáculo dos céus, ninguém mais se digna levantar
a cabeça para esses templos de luz” (Lucrécio), e que, se essas
coisas nos fossem apresentadas pela primeira vez achá-las-íamos tanto ou mais
inacreditáveis que quaisquer outras: “Supondo
que agora pela primeira vez elas se manifestem subitamente aos mortais e de
golpe se apresentem a seus olhos: não se poderia citar algo mais admirável, e
antes de vê-las os homens não teriam podido acreditar em algo semelhante.” (Lucrécio).
Michel de Montaigne
“Ensaios”
FIAT LUX
Into
a vision before me the world
Flowered,
and it as when a flag, unfurled,
Suddenly
shows unknown colours and signs.
Into
an unknown meaning, evident
And
unknown ever, it outspread its lines
Of meaning to my passive wonderment.
The
outward and the inward became one.
Feelings
and thoughts were visible in shapes,
And
flowers and trees as feelings, thoughts. Great capes
Stood
out of Soul, thrust into conscious seas,
And
on all this a man‑sky spoke its breeze.
Each
thing was linked into each other thing
By links
of being past imagining,
But
visible, as if the skeleton
Were
visible and the flesh round it, each one
As if
a separate thing visibly alone.
There
was no difference between a tree
And
an idea. Seeing a river be
And
the exterior river were one thing.
The
bird's soul and the motion of its wing
Were
an inextricable oneness made.
And
all this I saw, seeing not, dismayed
With
the New God this vision told me of;
For
this was aught I could not speak nor love
But a
new sentiment not like all others,
Nought
like the human feelings, men are brothers
In
feeling, woke on my astonished spirit.
With
a great suddenness did this disinherit
That
thought that looks through mine eyes of the pelf
Of
ordered seeing that maketh it itself.
O
horror set with mad joy to appal!
O
self‑transcendency of all!
O
inner infinity of each thing, that now
Suddenly
was made visible and local, though
No
manner of speech to speak these things in words
Followed
that vision! Sight whose sense absurds
Likeness
of like, and makes disparity
Contiguous
innerly to unity!
How
to express what, seen, is not expressed
To
the struck sight that sees it? How to know
What
comes to senses' threshold to bestow
A
visible ignorance upon the knowing?
How
to obey the analogy‑behest,
Community
in unity to prove
The
intellectual meaning of to love,
Shipwrecking
difference upon the sight
Renewed
from God to Inwards infinite?
Nothing:
the exterior world inner expressed,
The
flower of the whole vision of the world
Into its colour of absolutely meaning
In
the night unfurled,
And
therefore nought unfurling, abstract, that,
Vision
self‑screening,
Patent
invisible fact.
Nothing:
all,
And I
centre of to recall,
As if Seeing were a god.
The
rest the presence of to see,
Hollow
self‑sensed infinity,
And all my being‑not‑souled‑to‑oneness
trod
To
fragments in my sight‑dishevelled sight.
This
Night is Light.
Fernando Pessoa
“The Mad Fiddler” in Poesia
Inglesa
Tito Colaço
XXIX _ I _
MMXV
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