Poetically speaking...
Poetically speaking...
Como é esta transição da
negação do conhecido para o surgimento do desconhecido?
Como a pessoa nega?
A pessoa nega o
conhecido, não em grandes incidentes dramáticos, mas em pequenos incidentes?
Eu nego quando estou a
barbear-me e lembro-me do bom tempo passado na Suíça?
A pessoa nega a
lembrança de um tempo agradável?
Ela cresce consciente
disto, e nega isto?
Isso não é dramático,
não é espectacular, ninguém sabe disto. Entretanto, esta constante negação das
coisas pequenas, as pequenas limpezas, as pequenas varridelas, não só uma
grande limpeza, é essencial.
É essencial negar o
pensamento como lembrança, agradável ou desagradável, a cada minuto do dia em
que este surge.
A pessoa não faz isto
por algum motivo, não com o fim de entrar no extraordinário estado do
desconhecido.
Se vive em Rishi Valley
e pensa em Bombaim ou Roma, isto cria um conflito, torna a mente estúpida, uma
coisa dividida.
Consegue ver isto e continuar a apagar?
Consegue continuar a apagar, porque não quer entrar no desconhecido?
Nunca pode saber o que é
o desconhecido, porque no momento em que o reconhece como o desconhecido, está
de volta ao conhecido.
Jiddu Krishnamurti
“On education talk to teachers. Chapter 4”
De sacola e bordão, o
velho Garrinchas fazia os possíveis para se aproximar da terra. A
necessidade levara-o longe de mais. Pedir é um triste ofício, e pedir em
Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não
pode ser – e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras!
Por isso, que remédio senão alargar
os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao
menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso.
Sim, rezava quando batia a qualquer
porta. Gostavam... Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas
acções são que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o
sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo
por muito largo conseguia viver.
E ali vinha de mais uma dessas
romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora
trouxesse dez reis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava
arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado
em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho.
Mas quê! Metera-se-lhe na cabeça consoar à manjedoira nativa... E a verdade é
que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno
do povo, permanentemente escancarado à pobreza.
Em todo o caso sempre era passar a
noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra de um borralho de
estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última
cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados.
Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele
santuário colectivo da fome, podiam.
O problema estava em chegar lá. O
raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos,
parecendo que não, é um grande carrego.
Ainda por cima atrasara-se na jornada
em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a
render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta passava das quatro.
E, como anoitecia cedo não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos,
a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar.
Aflito, batia-lhe na taipa do peito,
a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o
pior de tudo é que começava a nevar!
Pela amostra, parecia coisa ligeira.
Mas vamos ao caso que pegasse a valer? Bem, um pobre já está acostumado a
quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se!
Cada desconsideração do destino!
Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara.
Aborrecer-se para quê?!
Não lucrava nada! Chamavam-lhe
filósofo... Areias, queriam dizer. Importava-se lá.
E caía, o algodão em rama! Caía,
sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a
brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus
noite de Natal em Lourosa...
Apressou mais o passo, fez ouvidos de
mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!
Com patorras de elefante e branco
como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À
volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os
penedos lembravam penitentes.
Entrou no alpendre, encostou o pau à
parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da
capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou alguma alma pecadora
forçara a fechadura.
Vá lá! Do mal, o menos. Em caso de
necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião
devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era
arranjar lenha.
Saiu, apanhou um braçado
de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas,
e o lume, depois de um clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e
três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos é que não.
Num começo de angústia, porque o ar
da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver
se encontrava um bocado de papel.
Descobriu, realmente, um jornal a
forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao céu por aquela
ajuda, olhou o altar.
Quase invisível na penumbra, com o
divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe.
Boas festas! — desejou-lhe então, a sorrir também.
Contente daquela palavra que lhe
saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão
arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas
paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o arcanho.
Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco, envolvido pela negrura
da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A
madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de cheirar o naco de
presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais
faltava?
Enxuto e quente,
o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso,
cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da
primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de
consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume
batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda. É servida?
A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez,
e o menino também.
E o Garrinchas, diante daquele
acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou,
dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
— Consoamos aqui os três — disse, com
a pureza e a ironia de um patriarca.
— A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma
coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.
Miguel Torga
“Um conto de Natal”
“Morro sem
saber nada de mim.
Nó cego de contradições nunca consegui desatá-lo”
|
Who will
believe my verse in time to come,
If it were fill’d with your most high deserts?
Though yet heaven knows it is but as a tomb
Which hides your life, and shows not half your parts.
If I could write the beauty of your eyes,
And in fresh numbers number all your graces,
The age to come would say ‘This poet lies;
Such heavenly touches ne’er touch’d earthly faces.’
So should my papers, yellow’d with their age,
Be scorn’d, like old men of less truth than tongue,
And your true rights be term’d a poet’s rage
And stretched metre of an antique song:
But were some child of yours alive that time,
You should live twice, in it, and in my rhyme.
If it were fill’d with your most high deserts?
Though yet heaven knows it is but as a tomb
Which hides your life, and shows not half your parts.
If I could write the beauty of your eyes,
And in fresh numbers number all your graces,
The age to come would say ‘This poet lies;
Such heavenly touches ne’er touch’d earthly faces.’
So should my papers, yellow’d with their age,
Be scorn’d, like old men of less truth than tongue,
And your true rights be term’d a poet’s rage
And stretched metre of an antique song:
But were some child of yours alive that time,
You should live twice, in it, and in my rhyme.
W. Shakespeare
0 comentários:
Enviar um comentário