Voluntas...
A vontade é apenas a consciência de um
movimento do nosso espírito em relação e em direcção ao exterior, ao qual
corresponde um movimento centrífugo no nosso sistema nervoso.
Ora, já lhe provei que a qualquer movimento no
espaço corresponde uma idealização no tempo; portanto a esse movimento centrífugo
deve corresponder uma idealização centrífuga.
A isso chamamos nós vontade.
— "O sentimento e a vontade", continua o
Professor Serzedas, "são os resultados materiais do indivíduo ser limitado como
pensamento. Como a ferrugem ataca o ferro inusado, assim o sentimento e a
vontade são as consequências naturais de sermos cada um de nós um pensamento
limitado."
— "Mas", objectei, "nesse caso porque é que
nós, sendo mais pensamento do que por exp., um átomo, temos mais sentimento e
vontade — e não menos, como seria de esperar, sendo as coisas como o Professor
diz."
— "Porque, meu caro amigo, dentro do número
quanto maior um número é, mais número é sem dúvida, mas tão longe do infinito
está o menor como o maior número. De modo que não tendo nós vantagem alguma
sobre o átomo em absoluto , o que somos é mais complexamente limitados do que
ele, donde segue que mais complexa e completamente devemos apresentar o
sentimento e a vontade, estigmas da limitação. Compreende?"
— "Perfeitamente, perfeitamente."
— "O caso é o seguinte: o átomo ocupa por
exemplo na escala dos seres, o lugar três e um homem o lugar dois milhões. Ora 3
está mais perto, por assim dizer, de zero onde, idealmente, a escala principia,
como idealmente acaba em infinito.
Ora, como já lhes provei, este zero é outro
modo de dizer infinito, de modo que 3 está ao mesmo tempo mais perto e mais
longe (por assim dizer) do infinito do que 2 milhões, isto é, nós; é mais e
menos pensamento do que nós somos. Analisando de perto as naturezas comparadas,
nossa e a do átomo, ver-se-á como as partes concordam connosco. É sempre a
concordância do real com o pensamento. Assim vemos que o átomo concebe, deve
por força conceber, o universo como uma coisa vaga, vazia, irreal. Ora aqui
está no que o átomo é mais pensamento do que nós, em que Deus está mais visível
no átomo do que em nós; para ele sem dúvida que o mundo é irreal. Assim o mais
baixo para o pensamento corresponde-se com o mais alto.
Para
nós o mundo existe muito mais realmente do que para o átomo; o que quer dizer
que pensamos mais.
A identidade dos contrários — vê-se meus
amigos — não é uma palavra vã. É preciso, porém, só saber interpretá-la.
Por que é, por exemplo, que o materialismo
extremo — aquele que nem a ideia de causa deixa de pé — se confunde com o
idealismo extremo?
Porque produz o Hegelianismo, materialistas
complexos e completos?
Repare-se que a evolução do mundo é uma
evolução em complexidade.
A nossa diversidade do átomo é em
complexidade; isto é material. A evolução deve ser rectilínea em pensamento.
*
— "Reflectindo bem", continua o professor
Serzedas, "não há sentimento nem vontade. Porque o essencial para que os haja é
que delas haja de algum modo consciência. Implicam-na. Logo, se lhes é
basilarmente necessária a consciência, como a todo o facto psíquico, segue,
meus caros amigos, que são apenas como qualquer coisa do mundo externo, dados
da percepção.
Da
percepção interna, direis, e portanto, não da percepção propriamente.
Demoremo-nos aqui; há aqui que analisar.
O sentimento e a vontade são a consciência de
movimentos ou centrípetos (sentimentos) ou centrífugos (vontade): eis tudo.
Ora, para que cada um de nós possa ter essa consciência é preciso que a tenha em si
só como indivíduo, isto é, como sendo aquela percepção, sua e não de outro.
Resulta daqui que se dá uma limitação da
consciência, e o sentimento meu, não é senão o sentimento de nós como
consciências parciais, limitadas, imperfeitas, (números).
É evidente que esta consciência de si, como
limitado deve dar qualquer coisa de novo ao psiquismo.
De mais a mais o sentir uma realidade dentro
de nós.
Deus não sente nem quer, mas sente e quer
porque em nós quer e sente, limitado em nós.
*
— "O antropomorfismo", disse eu.
— "O antropomorfismo", replicou o professor, "tem isto de errado: que não considera que o que nós chamamos sentimento e
vontade não são coisa que Deus possa ter, nem sequer concebido como
personalidade. Sentimento e vontade são faculdades que só um ser limitado,
inabsoluto pode ter. Somos, não o pensamento
— isso Deus é, para com o mundo, em relação ao
mundo — mas fragmentos de pensamento, formas de pensar, números na série das
formas de conceber.
Do facto de sermos limitadamente pensamento
(porque cada número é limitado) vem que, como não podemos ter uma concepção
total e integral do mundo, nada podemos, nem criar; pelo que temos de
nos esforçar por visionar o que vamos fazer — daí a vontade.
O pensamento
absoluto, totalmente, exclui, porque totalmente inclui e contém, sem obrigatoriamente
a conter — a vontade.
Do mesmo modo o sentimento é o resultado de
cada um ter o seu mundo, e do esforço da "vontade".
Falar na vontade de Deus, ou em qualquer
sentimento de Deus, eis o erro.
Deus concebido por nós (em si não sabemos o
que é) é o pensamento absoluto, ou o pensador absoluto.
A única faculdade
nossa que tem que ver com o absoluto, é o pensamento; e a percepção (que é "pensamento", pelas razões que já sabe), a única que concebe uma realidade.
Tanto o sentimento como a vontade são individuais.
A única "faculdade" que podemos conceber Deus
como tendo, admitindo, ao conceber, que isso é relativamente a nós, é o
pensamento.
Uma lei é a exteriorização de um pensamento. É
com justiça que se chama leis às ordens dos fenómenos, e leis às que o homem
impõe às sociedades.
Estas são imperfeitas, porque imperfeito é o
nosso pensamento; mas é justa a identidade do nome, porque há identidade de
causa.
Pero Botelho
“O vencedor do tempo - Serzedas”
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