Intelligenti pauca...
Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma
réstia de parte do sol, um campo, um bocado de sossego com um bocado de pão,
não me pesar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem
exigirem eles nada de mim. Isto mesmo me foi negado, como quem nega a esmola
não por falta de boa alma, mas para não ter que desabotoar o casaco.
Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho
sido,
sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente
tão pouca
coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de
dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como
a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios.
Nestes momento o meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo
mais porque vivo maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa, uma espécie
de oração, uma semelhança de clamor. Mas a reacção contra mim desce-me da
inteligência... Vejo-me no quarto andar alto da Rua dos Douradores, assisto-me
com sono; olho, sobre o papel meio escrito, a vida vã sem beleza e o cigarro
barato que a expender estendo sobre o mata-borrão velho. Aqui eu, neste quarto
andar, a interpelar a vida!, a dizer o que as almas sentem!, a fazer prosa como
os génios e os célebres!
Aqui, eu, assim!...
(…)
E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e
absorventes, maus
e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista,
nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em
mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma
consigo mesma, como com uma criança inoportuna; um desassossego sempre
crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo
sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as
entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o
escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção
do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim,
muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo
a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras
fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a
inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não
recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância - irmãos siameses
que não estão pegados.
(...)
Viver uma vida desapaixonada e culta, ao relento das ideias,
lendo, sonhando,
e pensando em escrever, uma vida suficientemente lenta para
estar sempre à beira do tédio, bastante meditada para se nunca encontrar nele.
Viver essa vida longe das emoções e dos pensamentos, só no pensamento das
emoções e na emoção dos pensamentos. Estagnar ao sol, douradamente, como um
lago obscuro rodeado de flores. Ter, na sombra, aquela fidalguia da
individualidade que consiste em não insistir para nada com a vida. Ser no volteio
dos mundos como uma poeira de flores, que um vento incógnito ergue pelo ar da
tarde, e o torpor do anoitecer deixa baixar no lugar de acaso, indistinta entre
coisas maiores. Ser isto com um conhecimento seguro, nem alegre nem triste,
reconhecido ao sol do seu brilho e às estrelas do seu afastamento. Não ser
mais, não ter mais, não querer mais... A música do faminto, a canção do cego, a
relíquia do viandante incógnito, as passadas no deserto do camelo vazio sem
destino...
(...)
Para compreender, destruí-me. Compreender é esquecer de amar.
Nada conheço mais ao mesmo tempo falso e significativo que aquele dito de
Leonardo da Vinci de que se não pode amar ou odiar uma coisa senão depois de
compreendê-la.
A solidão desola-me; a companhia oprime-me. A presença de outra
pessoa descaminha-me os pensamentos; sonho a sua presença com uma distracção especial,
que toda a minha atenção analítica não consegue definir.
(...)
O isolamento talhou-me à sua imagem e semelhança. A presença de
outra pessoa - de uma só pessoa que seja - atrasa-me imediatamente o
pensamento, e, ao passo que no homem normal o contacto com outrem é um estímulo
para a expressão e para o dito, em mim esse contacto é um contra-estímulo, se é
que esta palavra composta é viável perante a linguagem. Sou capaz, a sós
comigo, de idear quantos ditos de espírito, respostas rápidas ao que ninguém
disse, fulgurações de uma sociabilidade inteligente com pessoa nenhuma; mas
tudo isso se me some se estou perante um outrem físico, perco a inteligência,
deixo de poder dizer, e, no fim de uns quartos de hora, sinto apenas sono. Sim,
falar com gente dá-me vontade de dormir. Só os meus amigos espectrais e
imaginados, só as minhas conversas decorrentes em sonho, têm uma verdadeira
realidade e um justo relevo, e neles o espírito é presente como uma imagem num
espelho.
Pesa-me, aliás, toda a ideia de ser forçado a um contacto com
outrem. Um simples convite para jantar com um amigo me produz uma angústia
difícil de definir.
A ideia de uma obrigação social qualquer - ir a um enterro,
tratar junto de alguém de uma coisa do escritório, ir esperar à estação uma
pessoa qualquer, conhecida ou desconhecida -, só essa ideia me estorva os
pensamentos de um dia, e às vezes é desde a mesma véspera que me preocupo, e
durmo mal, e o caso real, quando se dá, é absolutamente insignificante, não
justifica nada; e o caso repete-se e eu não aprendo nunca a aprender.
"Os meus hábitos são da solidão, que não dos homens";
não sei se foi
Rousseau, se Senancour, o que disse isto. Mas foi qualquer espírito
da minha
espécie - não poderei talvez dizer da minha raça.
(...)
A personagem individual e imponente, que os românticos figuravam
em si mesmos, várias vezes, em sonho, a tentei viver, e, tantas vezes, quantas
a tentei viver, me encontrei a rir alto, da minha ideia de vivê-la. O homem
fatal, afinal, existe nos sonhos próprios de todos os homens vulgares, e o
romantismo não é senão o virar do avesso do domínio quotidiano de nós mesmos.
Quase todos os homens sonham, nos secretos do seu ser, um grande imperialismo
próprio, a sujeição de todos os homens, a entrega de todas as mulheres, a
adoração dos povos, e, nos mais nobres’, de todas as eras... Poucos como eu
habituados ao sonho, são por isso lúcidos bastante para rir da possibilidade
estética de se sonhar assim.
A maior acusação ao romantismo não se fez ainda: é a de que ele
representa a verdade interior da natureza humana. Os seus exageros, os seus
ridículos, os seus poderes vários de comover e de seduzir, residem em que ele é
a figuração exterior do que há mais dentro na alma, mas concreto, visualizado,
até possível, se o ser possível dependesse de outra coisa que não o Destino.
Quantas vezes eu mesmo, que rio de tais seduções da distracção,
me encontro supondo que seria bom ser célebre, que seria agradável ser
ameigado, que seria colorido ser triunfal! Mas não consigo visionar-me nesses
papéis de píncaro senão com uma gargalhada do outro eu que tenho sempre próximo
como uma rua da
Baixa. Vejo-me célebre? Mas vejo-me célebre como guarda-livros.
Sinto-me alçado aos tronos do ser conhecido? Mas o caso passa-se no escritório
da Rua dos
Douradores e os rapazes são um obstáculo. Ouço-me aplaudido por
multidões variegadas? O aplauso chega ao quarto andar onde moro e colide com a
mobília
tosca do meu quarto barato, com o reles que me rodeia, e me
amesquinha desde a cozinha ao sonho. Não tive sequer castelos em Espanha, como
os grandes espanhóis de todas as ilusões. Os meus foram de cartas de jogar,
velhas, sujas, de um baralho incompleto com que se não poderia jogar nunca nem
caíram, foi preciso destruí-los, com um gesto de mão, sob o impulso impaciente
da criada velha, que queria recompor, sobre a mesa inteira, a toalha atirada
sobre a metade de lá, porque
a hora do chá soara como uma maldição do Destino. Mas até isto é
uma visão improfícua, pois não tenho a casa de província, ou as tias velhas, a
cuja mesa eu tome, no fim de uma noite de família, um chá que me saiba a
repouso. O meu sonho falhou até nas metáforas e nas figurações. O meu império
nem chegou às cartas velhas de jogar. A minha vitória falhou sem um bule sequer
nem um gato antiquíssimo. Morrerei como tenho vivido, entre o bric-à-brac dos
arredores, apreçado pelo peso entre os pós-escritos do perdido.
Leve eu ao menos, para o imenso possível do abismo de tudo, a
glória da minha desilusão como se fosse a de um grande sonho, o esplendor de
não crer como um pendão de derrota - pendão contudo nas mãos débeis, mas pendão
arrastado entre a lama e o sangue dos fracos, mas erguido ao alto, ao
sumirmo-nos nas areias movediças, ninguém sabe se como protesto, se como
desafio, se como gesto de desespero. Ninguém sabe, porque ninguém sabe nada, e
as areias engolfam os que têm pendões como os que não têm. E as areias cobrem
tudo, a minha vida, a minha prosa, a minha eternidade.
Levo comigo a consciência da derrota como um pendão de vitória.
Fernando Pessoa
“O livro do desassossego”
“Enlightenment is man's release from his
self-incurred tutelage.
Tutelage is man's inability to make use of his
understanding without direction from another.
Self-incurred is this tutelage
when its cause lies not in lack of reason but in lack of resolution and courage
to use it without direction from another.
Sapere aude! 'Have courage to use
your own reason!'- that is the motto of enlightenment.”
Immanuel Kant
“An Answer
to the Question: What Is Enlightenment?”
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