Ius
hominum...
Ius hominum...
Por mais ordeiro que um povo seja, sempre há coisas. É uma
asneira que se diz, um marco que o arado arranca, uma cabra lambisqueira que
salta à vinha de alguém, duas maçãs que uma criança rouba. Mas tudo isso não
vale nada. As mulheres engaleiam-se, o falatório no tanque anima-se, discute-se
nas cavas, e acaba tudo em águas de bacalhau. No tempo do Leonardo, porém, Deus
nos livrasse! Aquele cobardola só sabia dizer:
- Embargo! Ou fazes o que eu digo, ou vou à Vila e enrolo-te em
meia folha de papel selado.
- Se tem assim tanta razão, salte! Salte para aqui, e tiram-se
as teimas de homem para homem. Olha lá não saltasse! Metia o rabo entre as
pernas, e tribunal.
Ora, o que a justiça quer é comer. Certo e sabido: vai-se ter
com o Dr. Valério a Murça, e é logo:
- Você está cheio de razão, alma de Deus! Ponha a questão, que
não há ninguém que lha perca. Se quiser, passe-me uma procuração, deixe
trezentos mil réis para preparos, e o resto é comigo.
Um céu aberto. Até parece que a gente já está a ouvir o juiz.
Mas depois é que são elas! Começa um moedoiro, de dinheiro, que não há bolsa
que chegue. O advogado só diz:
- Então agora, que isto vai tão bem encaminhado, é que você se
quer compor?!
E cantem para aqui mais cinco notas! O pior é que daí a um mês,
zás: uma cartinha. «Senhor Fulano, é favor comparecer no meu escritório». Desce
a gente de escantilhão pela serra abaixo, numas ânsias, a cuidar mil coisas. E
o que há-de ser? «Tenha, paciência, isto não anda sem a mola real...»
Até que chega o dia da audiência. Aí, então, é como quem quer
livrar um filho. Presente a este, presente àquele, tia Preciosa, pelo amor de
Deus, diga a verdade e beba mais uma pinga. E para nada, afinal de contas,
porque o outro advogado, que é um bandalho da mesma raça, embrulha tudo. «Ora
explique-me lá isso bem explicado! Não minta...» A gente, quando se senta
naquelas cadeiras, fica logo como há-de ir. Fazem-nos falar, apertam, apertam,
e quem é que não cai? Tiram de nós o que eles querem. «Diga. Diga! Ora assim,
sim! Vê como é tudo ao contrário do que pensava?!» Só visto! Ao fim, sai uma
sentença que não é carne nem peixe, uma pessoa fica borrada, empenhada até às
orelhas, e a dever favores até às pedras da rua.
Mas o Leonardo queria lá saber! O tribunal, para ele, era como a
igreja para as beatas. Tivesse razão ou não tivesse. Sentiam-lhe dinheiro no
bolso, claro, venha a nós... Todos mais a mim, mais a mim. E o lorpa a cuidar
que lhe davam tantos améns por causa dos seus belos predicados! Com que biscas!
Mas, como quem o tem é que o troca, ora viva o nosso amigo, o que é que o traz
por cá, às suas ordens, mande! E o filho de quem o pariu, de costas quentes,
trazia o povo numa apertadinha.
- Ou esbarrondas a parede, ou ainda hoje te vou fazer a cama!
- Farto seja você de tribunais nas profundas dos infernos! Não
tem olhos nessa cara? Não vê que isto é meu, seu ladrão?!
A coitada da Maria Ambrósia, de raiva, até espumava, e o caso
não era para menos. Ter a gente uma coisa sua, e de repente aparecer-nos um
larinhoto e levá-la de mão beijada!
- Lembre-se ao menos destas crianças, que ficam desgraçadas...
Qual o quê! Sentimentos não eram com ele.
- Sejam então muito boas testemunhas... E pronto, começava o
calvário. Coisas de fazer tremer a passarinha. Numa ocasião processou o Garrido
só porque lhe atravessava uma leira quando ia namorar! O pai da Belmira não
queria o casamento. Aqui-del-rei que matava o rapaz se o encontrasse a
desencaminhar-lhe a filha. Que remédio tinha o coitado senão cortar-lhe as
voltas e fazer-lhe o ninho atrás da orelha! Ia ao redor da casa, metia-se no
meio do milhão, e era um regalo. Pois o badana do Leonardo deu com aquele
arranjo em pantanas, e por um triz que não metia o pobre do desgraçado na
cadeia.
- Ó homem do Senhor, tu parece que não tiveste vinte anos! -
clamava o Pinto, indignado, a lembrar-se com saudades dos tempos da mocidade.
- Quem quer cainça, vai para os baldios. Naquilo que é meu, não!
- Estragou-te alguma coisa, porventura?
- Não quero cá saber. Sevandejava-me a propriedade, e não é
pouco! Fica o aviso feito: a mim, quem me pisar o risco, vai malhar com os
ossos no chilindró.
Um castanheiro à borda da extrema, que pingasse para o lado
dele, era uma carga de trabalhos. Mais valia atirá-lo abaixo. Os marcos, então,
andavam sempre numa fona!
Nem já ninguém queria terras ao pé das dele. Os donos punham-nas
à venda, os compradores chegavam-se, mas desistiam.
- É um bom bocado, realmente, dá aqui um rico milhão, e não se
pode dizer que seja caro. O pior é a má vizinhança... Não. Meter-se a gente em
trabalhos escusadamente!
Foi por Deus o Abrunhosa ir ao Brasil, ganhar por lá bem contos,
aprender como as bandalheiras se fazem, e vir pôr termo àquilo. De contrário,
quem havia de viver em Celeirós com um justiceiro assim?
O Abrunhosa, apenas regressou do Rio - todo lorde -, pôs-se a
arejar as notas. Comprou o Tapado, limpou a mina do Reguengo, e queria aumentar
a casa. Bem tolo não empregar tanto dinheiro em fragas que lhe rendessem mais!
Mas lá diz o ditado: pobre pássaro que nasce em ruim ninho. Segue-se que era
amigo da sua terra, e a ele se sabe, tinha empenho em fazer as coisas a gosto
dele. Abrir uma varanda do lado do sol, altear a cozinha, ajeirar um quarto de
banho, arranjar comodidades. Mas logo por sorte quem havia de ter um palheiro
em frente? O Leonardo. Os pedreiros a darem começo à obra, e o Leonardo rente
com duas testemunhas.
- Embarga, tio Leonardo?
- Embargo.
- Muito bem. Ide-vos então, rapazes. E descansai. Quem paga é
aqui o nosso milionário...
- Não sou milionário, mas ainda tenho o suficiente para me bater
com qualquer.
- Ora essa! Que dúvida! Com quem ele se foi meter! Isto de mijar
no mar tem o seu quê!
A arrotar postas de pescada, o Leonardo logo no outro dia que
tinha o melhor advogado da comarca, e que ganhava, desse por onde desse.
O Abrunhosa, muito calado, que no fim se veria.
De bico amarelo! Pela mansa, manobrou as coisas de tal maneira,
que comprou testemunhas, comprou advogados, comprou juizes, comprou tudo. Mas a
sério! Nada de conversa fiada. Todos ali comprometidos e firmes. E sem o Leonardo
sonhar sequer! Na audiência, quando contava com um p-a-pá-Santa-Justa a seu
favor, sai-lhe a coisa furada. O Felizardo, o Único que verdadeiramente podia
fazer prova, por ser a pessoa mais velha da terra, que não sabia, que ao certo,
ao certo, não podia afirmar. A Bernarda, que também ao cabo e ao resto não
conhecia a questão. E o Freitas, esse então disse redondamente que quem tinha
razão era o Abrunhosa.
O Leonardo parecia um bicho, a bufar. Era vê-lo pelo corredor a
cabo, para cá, para lá, sem parança, como um lobo num fojo. Dantes, naquelas
ocasiões, espanejava-se todo, de mãos atrás das costas, como se estivesse em
sua casa. Agora, com o rabo entalado, gemia. Traidores! Mas que os metia a
todos na cadeia! Se metia! Com quem cuidavam eles que estavam a brincar? De
resto, a procissão ia ainda no adro. Não cantasse lá o sr. Abrunhosa vitória
antes do fim da festa! Então o Dr. Vaz não valia nada? Deixassem-no falar, e
veriam. Esperassem-lhe pela resposta.
E aqui é que foi a bomba. O Dr. Vaz tinha a língua vendida como
os outros. Nas alegações, que sim, que não, que torna, que deixa, e, para
encurtar razões, que pedia justiça. Claro, os Juizes fizeram-lhe a vontade.
Deram direito ao Abrunhosa.
O Leonardo, ainda a sentença estava no meio, que apelava. Havia
de ir até ao cabo do mundo.
Farroncas tem a minha Joana, mas obras... Ali era meter a viola
no saco e nem tugir nem mugir. Pois se até um cego via que o vento mudara de
feição! Voga bem. Quando o demónio atenta uma pessoa...
O Abrunhosa, ao saber que a questão continuava, riu-se. Era de
força, o tio Leonardo! Mas com valentões assim é que ele gostava de se
divertir. Para o brasileiro aquilo até o distraía. Quem não tem que fazer, faz
colheres.
No Porto, o Leonardo ganhou. Santo Deus! Só lhe faltou deitar
foguetes. Um lorpa, que não via que era tudo combinação. Porque em Lisboa, foi
de caixão à cova.
A gente não se deve rir do mal de ninguém. Mas, quando as coisas
passam as marcas, é humano gostar de ver o nariz achatado a certos figurões.
- Então, tio Leonardo, sempre ganhou a questão? A modos que vi
hoje os pedreiros outra vez na obra do Abrunhosa...
O Campeã era dos que em tempos fora também cosido e mal pago
pelo Leonardo. E gozava a desgraça do facínora sem dó nem piedade...
- Perdi esta, mas posso ganhar outras, que tem lá isso ?
Coitado! Teve quase sempre que ir adiante. E, nisto de
tribunais, quem vai à frente é que geme. Depois, com advogados do Porto e de
Lisboa não se brinca. Comem muito. Não há quem os vede. Aquilo não é gente de
duzentos ou trezentos mil réis. É logo às boladas de vinte ou trinta contos! -
Segue-se que quando o Leonardo se viu livre da enrascada, tinha
tudo em pantanas. Hoje um lameiro, amanhã uma mata...
- Desgraçadinho. Pobre como Job.
- Mas foi um descanso. Todos lhe podiam arregalar os olhos
quando metia a mão no alheio, e cantar-lhas.
- Olhe que agora a justiça são duas lombeiradas com um
estadulho! Ponha aí o que não é seu, se quer os ossos inteiros.
Lá fazia das tripas coração, pois que remédio! Mas tão danado,
tão viciado na chicanice, que a ver-se naquela miséria em que os tribunais o
tinham posto, não suspirava por outra coisa. Nos dias de feira da Vila, já
velho e atoleimado, sentava-se na soleira da porta a ver passar o povo. Como
toda a gente lhe conhecia o fraco, puxavam-lhe pela língua.
- Quer vir, tio Leonardo?
- Não tenho pernas. Se não, bem gostava! Está um dia bendito.
- Bom para semear batatas...
- Quais batatas! Bom mas é para ir pôr uma demanda. Com um sol
destes, eram favas contadas...
MIGUEL TORGA
“Justiça” In “Contos da montanha”
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