Labyrinth
of
conscience...
“It is the business of the very few to
be independent; it is a privilege of the strong.
And whoever attempts it, even
with the best right, but without being obliged to do so, proves that
he is probably not only strong, but also daring beyond measure.
He enters into
a labyrinth, he multiplies a thousandfold the dangers which life in itself
already brings with it; not the least of which is that no one can see how and
where he loses his way, becomes isolated, and is torn piecemeal by some
minotaur of conscience.
Supposing such a one comes to grief, it is so far from
the comprehension of men that they neither feel it, nor sympathize with it.
And
he cannot any longer go back! He cannot even go back again to the sympathy of
men!”
Friedrich Nietzsche
“Beyond Good and Evil”
"Toda a actividade humana é assombrosamente complexa, não só a do génio: mas nenhuma é um `milagre´.
De onde vem então a crença de que só no artista, no orador e no filósofo existe génio?
De que só eles têm `intuição´? (com o que lhes atribuímos uma espécie de lente maravilhosa, com a qual vêem directamente a `essência´!).
Claramente, as pessoas falam de génio apenas quando os efeitos do grande intelecto lhes agradam muito e também não desejam sentir inveja.
Chamar alguém de `divino´ significa dizer: `aqui não precisamos competir´. E além disso: tudo o que está completo e consumado é admirado, tudo o que está vindo a ser é subestimado.
Mas na obra do artista não se pode notar como ela veio a ser; essa é a vantagem dele, pois quando podemos presenciar o devir ficamos algo frios.
A arte consumada da expressão rejeita todo o pensamento sobre o devir; ela se impõe tiranicamente como perfeição actual.
Por isso os artistas da expressão são vistos eminentemente como geniais, mas não os homens de ciência. Na verdade, aquela apreciação e esta subestimação não passam de uma infantilidade da razão."
"376 - Amigos. — Apenas pondere consigo mesmo como são diversos os sentimentos, como são divididas as opiniões, mesmo entre os conhecidos mais próximos; e como até mesmo opiniões iguais têm, nas cabeças dos seus amigos, posição ou força muito diferente da que têm na sua; como são múltiplas as ocasiões para o mal-entendido e para a ruptura hostil.
Depois disso, dirá a si mesmo: como é inseguro o terreno em que repousam as nossas alianças e amizades, como estão próximos os frios temporais e o tempo feio, como é isolado cada ser humano!
Se alguém percebe isso, e também que todas as opiniões, sejam de que espécie e intensidade, são para o seu próximo tão necessárias e irresponsáveis como os actos, se descortina essa necessidade interior das opiniões, devida ao indissolúvel entrelaçamento de carácter, ocupação, talento e ambiente, talvez se livre da amargura e aspereza de sentimento que levou aquele sábio a gritar:
"Amigos, não há amigos!".
Esta pessoa dirá antes a si mesma: Sim, há amigos, mas foi o erro, a ilusão acerca de si que os conduziu até a si; e eles devem ter aprendido a calar, a fim de continuar seus amigos; pois quase sempre tais laços humanos se baseiam em que certas coisas jamais serão ditas nem tocadas: se essas pedrinhas começam a rolar, porém, a amizade segue atrás e se rompe.
Haverá homens que não seriam fatalmente feridos, se soubessem o que os seus mais íntimos amigos sabem no fundo a seu respeito?
Conhecendo a nós mesmos e vendo o nosso ser como uma esfera cambiante de opiniões e humores, aprendendo assim a menosprezá-lo um pouco, colocamo-nos novamente em equilíbrio com os outros.
É verdade, temos bons motivos para não prezar muito os nossos conhecidos, mesmo os grandes entre eles; mas igualmente bons motivos para dirigir esse sentimento para nós mesmos.
Então suportemos uns aos outros, assim como suportamos a nós mesmos; e talvez chegue um dia, para cada um, a hora feliz em que dirá: `Amigos, não há amigos!´ , disse o sábio moribundo;
`Inimigos, não há inimigos!´, digo eu, o tolo vivente."
Friedrich Nietzsche
"Humano demasiado humano I"
"460. O grande homem da massa. — É fácil dar a receita para o que a massa denomina grande homem. Em qualquer circunstância, arranjem-lhe algo que lhe seja agradável, ou lhe ponham na cabeça que isto ou aquilo seria muito agradável e lhe dêem tal coisa.
Mas de modo algum imediatamente: deve-se lutar por isso com grande esforço, ou parecer lutar. A massa deve ter a impressão de que há uma força de vontade poderosa e mesmo invencível; ao menos ela deve parecer que está presente.
Todos admiram a vontade forte, pois ninguém a tem, e cada um diz a si mesmo que, se a tivesse, não haveria mais limite para si e seu egoísmo. Vendo-se que uma tal vontade forte produz algo bastante agradável à massa, em vez de escutar os apelos da sua própria cobiça, as pessoas ficam novamente admiradas e felicitam a si mesmas.
Quanto ao resto, ele deve ter todas as qualidades da massa: quanto menos se envergonhar ela diante dele, tanto mais popular ele será. Logo, ele deve ser violento, invejoso, explorador, intrigante, adulador, servil, arrogante, tudo conforme as circunstâncias.
461. Príncipe e deus. — Frequentemente os homens se relacionam com os seus príncipes como fazem com o seu deus, o príncipe tendo sido muitas vezes o representante do deus, o seu sumo sacerdote, pelo menos. Tal sentimento, quase inquietante, de reverência, medo e vergonha, já se tornou e continua se tornando mais fraco, mas ocasionalmente se inflama e se liga a pessoas poderosas.
O culto ao génio é um eco dessa veneração a príncipes e deuses. Em todo lugar onde se busca elevar indivíduos a um plano sobre-humano, surge também a tendência a imaginar camadas inteiras do povo como sendo mais baixas e grosseiras do que são na realidade.
462. A minha utopia. — Numa ordenação melhor da sociedade, as fainas e penas da vida serão destinadas àquele que menos sofre com elas, ou seja, ao mais insensível, e assim gradualmente até aquele que é mais sensível às espécies mais elevadas e sublimadas do sofrimento, e que portanto sofre mesmo quando a vida é aliviada ao extremo.
463. Uma ilusão na doutrina da subversão. — Há visionários políticos e sociais que com eloquência e fogosidade pedem a subversão de toda ordem, na crença de que logo em seguida o mais altivo templo da bela humanidade se erguerá por si só.
Nestes sonhos perigosos ainda ecoa a superstição de Rousseau, que acredita numa miraculosa, primordial, mas, digamos, soterrada bondade da natureza humana, e que culpa por esse soterramento as instituições da cultura, na forma de sociedade, Estado, educação.
Infelizmente aprendemos, com a história, que toda a subversão desse tipo traz a ressurreição das mais selvagens energias, dos terrores e excessos das mais remotas épocas, há muito tempo sepultados: e que, portanto, uma subversão pode ser fonte de energia numa humanidade cansada, mas nunca é organizadora, arquitecta, artista, aperfeiçoadora da natureza humana.
Não foi a natureza moderada de Voltaire, com o seu pendor a ordenar, purificar e modificar, mas sim as apaixonadas tolices e meias verdades de Rousseau que despertaram o espírito optimista da Revolução, contra o qual eu grito: "Ecrasez l'infâme! (Esmaguem o infame!)". Graças a ele o espírito do Iluminismo e da progressiva evolução foi por muito tempo afugentado: vejamos, cada qual dentro de si, se é possível chamá-lo de volta!
464. Comedimento. — A completa firmeza de pensamento e investigação, ou seja, a liberdade de espírito, quando se tornou qualidade do carácter, traz comedimento na acção: pois enfraquece a avidez, atrai muito da energia existente, para promover objectivos espirituais, e mostra a utilidade parcial ou a inutilidade e o perigo de todas as mudanças repentinas.
465. Ressurreição do espírito. — No leito de enfermo da política, geralmente um povo rejuvenesce e redescobre o seu espírito, que ele havia gradualmente perdido ao buscar e assegurar o poder. A cultura deve as suas mais altas conquistas aos tempos politicamente debilitados.
466. Opiniões novas na casa velha. — À derrubada das opiniões não segue imediatamente a derrubada das instituições; as novas opiniões habitam por muito tempo a casa das suas antecessoras, agora desolada e sinistra, e até mesmo a preservam, por falta de moradia.
467. Instrução pública. — Nos grandes Estados a instrução pública será sempre, no melhor dos casos, medíocre, pelo mesmo motivo por que nas grandes cozinhas cozinha-se mediocremente.
468. Inocente corrupção. — Em todas as instituições em que não sopra o ar cortante da crítica pública, uma inocente corrupção brota como um fungo (por exemplo, nas associações eruditas e senados).
469. Os eruditos enquanto políticos. — Aos eruditos que se tornam políticos se atribui habitualmente o cómico papel de ter que ser a boa consciência de uma política.
470. O lobo por trás da ovelha. — Em determinadas circunstâncias, quase todo o político tem tal necessidade de um homem honesto, que como um lobo faminto irrompe num redil: não para devorar o cordeiro que rapta, porém, mas para se esconder atrás do seu dorso lanoso.
471. Tempos felizes. — Uma época feliz é completamente impossível, porque as pessoas querem desejá-la, mas não tê-la, e todo o indivíduo, nos seus dias felizes, chega quase a implorar por inquietude e miséria. O destino dos homens está disposto para momentos felizes, cada vida humana tem deles, mas não para tempos felizes.
No entanto, estes perduram na fantasia humana como `o que está além dos montes´, como uma herança dos antepassados; pois a noção de uma era feliz talvez provenha, desde tempos imemoriais, daquele estado em que o homem, após violentos esforços na caça e na guerra, entrega-se ao repouso, distende os membros e ouve o rumor das asas do sono.
Há uma conclusão errada em imaginar, conforme aquele antigo hábito, que após períodos inteiros de carência e fadiga se pode partilhar também aquele estado de felicidade, com intensidade e duração correspondentes.
472. Religião e governo. — Enquanto o Estado ou, mais precisamente, o governo se souber investido da tutela de uma multidão menor de idade, e por causa dela considerar se a religião deve ser mantida ou eliminada, muito provavelmente se decidirá pela conservação da religião.
Pois esta satisfaz o ânimo do indivíduo em tempos de perda, de privação, de terror, de desconfiança, ou seja, quando o governo se sente incapaz de directamente fazer algo para atenuar o sofrimento psíquico da pessoa: mesmo em se tratando de males universais, inevitáveis, inicialmente irremediáveis (fomes colectivas, crises monetárias, guerras), a religião confere à massa uma atitude calma, paciente e confiante.
Onde as deficiências necessárias ou casuais do governo estatal, ou as perigosas consequências de interesses dinásticos, fazem-se notórias para o homem perspicaz e o dispõem à rebeldia, os não perspicazes pensam ver o dedo de Deus e pacientemente se submetem às determinações do alto (conceito em que habitualmente se fundem os modos humano e divino de governar): assim se preserva a paz civil interna e a continuidade do desenvolvimento.
O poder que reside na unidade do sentimento popular, em opiniões e fins comuns a todos, é protegido e selado pela religião, exceptuando os raros casos em que o clero e o poder estatal não chegam a um acordo quanto ao preço e entram em conflito.
Normalmente o Estado sabe conquistar os sacerdotes, porque tem necessidade da sua privatíssima, oculta educação das almas, e estima servidores que aparentemente, exteriormente, representam um interesse bastante diverso.
Sem a ajuda dos sacerdotes nenhum poder é capaz, ainda hoje, de tornar-se `legítimo´: como bem entendeu Napoleão. Assim, governo tutelar absoluto e cuidadosa preservação da religião caminham necessariamente juntos.
Nisto se pressupõe que as pessoas e classes governantes sejam esclarecidas a respeito das vantagens que a religião lhes oferece, e que até certo ponto se sintam superiores a ela, na medida em que a usam como instrumento: eis aqui a origem do livre-pensar.
Mas o que ocorre, quando começa a prevalecer a concepção totalmente diversa de governo que é ensinada nos Estados democráticos?
Quando nele se vê apenas o instrumento da vontade popular, não um `alto´ em comparação a um `baixo´, mas meramente uma função do único soberano, do povo?
Também nesse caso o governo só poderá ter a mesma atitude do povo ante a religião; toda a propagação das Luzes terá de encontrar eco nos seus representantes, uma utilização e exploração das forças motrizes e consolações religiosas para fins estatais não será tão fácil (a não ser que poderosos líderes partidários exerçam temporariamente uma influência semelhante à do despotismo esclarecido).
Mas se o Estado já não pode tirar proveito da religião, ou se o povo pensa muito variadamente sobre coisas religiosas para permitir ao governo um procedimento homogéneo e uniforme nas medidas religiosas, então necessariamente aparecerá o recurso de tratar a religião como assunto privado e remetê-la à consciência e ao costume de cada indivíduo.
A primeira consequência é que a sensibilidade religiosa aparece fortalecida, na medida em que movimentos seus escondidos e oprimidos, aos quais o Estado, involuntária ou intencionalmente, não concedia nenhum sopro vital, agora irrompem e se exaltam ao extremo; mais tarde se vê que a religião é sobrepujada por seitas, e que uma profusão de dentes de dragão foi semeada, no momento em que a religião se transformou em coisa privada.
A visão dessa luta, o hostil desnudamento de todas as fraquezas dos credos religiosos, afinal já não admite outra saída senão a de que todo o indivíduo melhor e mais dotado faça da irreligiosidade, o seu assunto privado: mentalidade que então prevalece também no espírito dos governantes e que, quase contra a vontade deles, dá às medidas que tomam um carácter hostil à religião.
Tão logo isto sucede, a disposição dos homens ainda motivados religiosamente, que antes adoravam o Estado como algo semi ou inteiramente sagrado, torna-se decididamente hostil ao Estado; e ficam à espreita das medidas do governo, procuram obstruir, atravessar, inquietar o máximo que puderem, e com o ardor da sua oposição impelem o partido contrário, o anti-religioso, a um entusiasmo quase fanático pelo Estado; no que ainda concorre secretamente o facto de nesses círculos os ânimos, desde a separação da religião, sentirem um vazio e buscarem provisoriamente criar, com a dedicação ao Estado, um substituto, uma espécie de preenchimento.
Após essas lutas de transição, que talvez durem bastante, finalmente se decidirá se os partidos religiosos ainda são fortes o bastante para restabelecer o antigo estado de coisas e fazer girar a roda para trás: caso em que o despotismo esclarecido (talvez menos esclarecido e mais temeroso do que antes) inevitavelmente receberá nas mãos o Estado, ou se os partidos não religiosos predominam, e por algumas gerações dificultam e afinal tornam impossível a multiplicação dos adversários, talvez mediante a educação e o sistema escolar.
Mas então diminui também neles o entusiasmo pelo Estado; torna-se cada vez mais evidente que com a adoração religiosa, para a qual o Estado é um mistério, uma instituição acima do mundo, também foi abalada a relação piedosa e reverente para com ele.
Daí em diante os indivíduos só vêem nele o aspecto em que lhes pode ser útil ou prejudicial, e disputam entre si, usando de todos os meios para obter influência sobre ele. Mas essa concorrência logo se torna grande demais, os homens e os partidos mudam rápido demais, derrubam uns aos outros montanha abaixo, de maneira selvagem demais, quando mal alcançaram o topo.
A todas as medidas executadas por um governo falta a garantia da duração; as pessoas recuam ante empreendimentos que necessitariam décadas, séculos de crescimento tranquilo, para produzir frutos maduros. Ninguém sente mais obrigação ante uma lei, senão curvar-se momentaneamente ao poder que introduziu a lei: mas logo começam a miná-la com um novo poder, uma nova maioria a ser formada.
Enfim, pode-se dizer com segurança, a suspeita em relação a todos os que governam, a percepção do que há de inútil e desgastante nessas lutas de pouco fôlego tem de levar os homens a uma decisão totalmente nova: a abolição do conceito de Estado, a supressão da oposição `privado e público´. As sociedades privadas incorporam passo a passo os negócios do Estado: mesmo o resíduo mais tenaz do velho trabalho de governar (por exemplo, as actividades que se destinam a proteger as pessoas privadas umas das outras) termina a cargo de empreendedores privados.
O desprezo, o declínio e a morte do Estado, a liberação da pessoa privada (guardo-me de dizer: do indivíduo), são consequência da noção democrática de Estado; nisso está a sua missão. Se ele cumpriu a sua tarefa, que, como tudo humano, traz em si muita razão e muita desrazão, se todas as recaídas da velha doença foram superadas, então se abrirá uma nova página no livro de fábulas da humanidade, em que serão lidas todas as espécies de histórias estranhas e talvez alguma coisa boa.
Repito brevemente o que foi dito: os interesses do governo tutelar e os interesses da religião caminham de mãos dadas, de modo que, quando esta última começa a definhar, também o fundamento do Estado é abalado.
A crença numa ordenação divina das coisas políticas, no mistério que seria a existência do Estado, é de procedência religiosa: se desaparecer a religião, o Estado inevitavelmente perderá o seu antigo véu de Ísis, e não mais despertará reverência.
Observada de perto, a soberania do povo serve para afugentar também o último encanto e superstição no âmbito destes sentimentos; a democracia moderna é a forma histórica do declínio do Estado.
Mas a perspectiva que resulta desse forte declínio não é infeliz em todos os aspectos: entre as características dos seres humanos, a sagacidade e o interesse pessoal são as mais bem desenvolvidas; se o Estado não mais corresponder às exigências dessas forças, não ocorrerá de maneira alguma o caos: uma invenção ainda mais pertinente que aquilo que era o Estado, isto sim, triunfará sobre o Estado.
Quantas forças organizadoras a humanidade já não viu se extinguirem, por exemplo, a do clã hereditário, que por milénios foi bem mais poderosa que a da família, e que muito antes desta já reinava e ordenava. Nós mesmos vemos a significativa noção legal e política da família, que um dia predominou em toda a extensão do mundo romano, tornar-se cada vez mais pálida e impotente.
Assim, uma geração posterior também verá o Estado se tornar insignificante em vários trechos da Terra, algo que muitos homens da actualidade não podem conceber sem medo e horror.
Trabalhar pela difusão e realização dessa ideia é certamente outra coisa: é preciso pensar muito presunçosamente da sua própria razão e mal compreender a história pela metade, para já agora pôr as mãos no arado, já que ainda ninguém pode mostrar as sementes que depois serão lançadas no terreno rasgado.
Confiemos, portanto, na `sagacidade e interesse pessoal dos homens´, para que o Estado subsista por bastante tempo ainda, e sejam rechaçadas as tentativas destruidoras de supostos sábios zelosos e precipitados!
473. O socialismo em vista dos seus meios. — O socialismo é o visionário irmão mais novo do quase extinto despotismo, do qual quer ser herdeiro; os seus esforços, portanto, são reaccionários no sentido mais profundo. Pois ele deseja uma plenitude de poder estatal como até hoje só o despotismo teve, e até mesmo supera o que houve no passado, por aspirar ao aniquilamento formal do indivíduo: o qual ele vê como um luxo injustificado da natureza, que deve aprimorar e transformar num pertinente órgão da comunidade.
Devido à afinidade, o socialismo sempre aparece na vizinhança de toda a excessiva manifestação de poder, como o velho, típico socialista Platão na corte do tirano da Sicília; ele deseja (e em algumas circunstâncias promove) o cesáreo Estado despótico neste século, porque, como disse, gostaria de vir a ser seu herdeiro.
Mas mesmo essa herança não bastaria para os seus objectivos, precisa da mais servil submissão de todos os cidadãos ao Estado absoluto, como nunca houve igual; e já não podendo contar nem mesmo com a antiga piedade religiosa ante o Estado, tendo, queira ou não, que trabalhar incessantemente para a eliminação deste, pois trabalha para a eliminação de todos os Estados existentes, não pode ter esperança de existir a não ser por curtos períodos, aqui e ali, mediante o terrorismo extremo.
Por isso se prepara secretamente para governos de terror, e empurra a palavra `justiça´ como um prego na cabeça das massas semi-cultas, para despojá-las totalmente da sua compreensão (depois que esta já sofreu muito com a semi-educação) e criar nelas uma boa consciência para o jogo perverso que deverão jogar.
O socialismo pode servir para ensinar, de modo brutal e enérgico, o perigo que há em todo o acumular de poder estatal, e assim instilar desconfiança do próprio Estado. Quando sua voz áspera se junta ao grito de guerra que diz o máximo de Estado possível, este soa, inicialmente, mais ruidoso do que nunca: mas logo também se ouve, com força tanto maior, o grito contrário que diz: O mínimo de Estado possível.
474. A evolução do espírito, temida pelo Estado. — A pólis grega era excludente, como todo o poder político organizador, e desconfiava do crescimento da cultura entre os seus cidadãos; em relação a esta, o seu poderoso instinto básico se mostrou quase que estritamente paralisante e inibidor. Não queria admitir história ou devir na cultura; a educação fixada na lei do Estado deveria ser imposta a todas as gerações e mantê-las num só nível.
Mais tarde, Platão quis a mesma coisa para o seu Estado ideal. Portanto, a cultura se desenvolveu apesar da pólis: é certo que ela ajudou indirectamente e contra a vontade, porque a ambição do indivíduo era estimulada ao máximo na pólis, de maneira que, tendo tomado a via da formação do espírito, continuava nela até o fim.
Não se deve invocar, argumentando contra isso, o panegírico de Péricles: pois este é apenas uma fantasia grande e optimista acerca do nexo supostamente necessário entre a pólis e a cultura ateniense; Tucídides faz com que, logo antes de a noite cair sobre Atenas (a peste e a ruptura da tradição), ela brilhe ainda uma vez, como um crepúsculo transfigurador que nos leva a esquecer o dia ruim que o precedeu."
491. Observação de si mesmo. — O homem está muito bem defendido de si mesmo, da espionagem e do assédio que faz a si mesmo, e geralmente não vê mais do que o seu antemuro. A fortaleza mesma lhe é inacessível e até invisível, a não ser que amigos e inimigos façam de traidores e o conduzam para dentro por uma via secreta.
492. A profissão certa. — Os homens raramente suportam uma profissão, se não crêem ou não se convencem de que no fundo ela é mais importante que todas as outras. O mesmo ocorre com as mulheres em relação aos amantes.
493. Nobreza de carácter. — A nobreza de carácter consiste, em boa parte, na bondade e ausência de desconfiança, ou seja, exactamente aquilo sobre o qual as pessoas gananciosas e bem-sucedidas gostam de falar com superioridade e ironia.
494. Meta e caminho. — Muitos são obstinados em relação ao caminho tomado, poucos em relação à meta.
495. O que há de revoltante num estilo de vida individual. — As pessoas irritam-se com aqueles que adoptam padrões de vida muito individuais; sentem-se humilhadas, reduzidas a seres ordinários, com o tratamento extraordinário que eles dispensam a si mesmos.
496. Prerrogativa da grandeza. — É prerrogativa da grandeza proporcionar enorme felicidade com pequeninos dons.
497. Involuntariamente nobre. — O homem comporta-se de maneira involuntariamente nobre, quando se habituou a nada querer dos homens e a sempre lhes dar.
498. Condição de heroísmo. — Quando alguém quer se tornar herói, é preciso que antes a serpente se tenha transformado em dragão, senão lhe faltará o inimigo adequado.
499. Amigo. — É a partilha da alegria, não do sofrimento, o que faz o amigo.
500. Saber usar a maré. — Para os fins do conhecimento é preciso saber usar a corrente interna que nos leva a uma coisa, e depois aquela que, após algum tempo, nos afasta da coisa.
501. Prazer em si. — `Prazer com uma coisa´ é o que se diz: mas na verdade é o prazer consigo mesmo mediante uma coisa.
502. O homem modesto. — Quem é modesto em relação às pessoas mostra tanto mais em relação às coisas (cidade, Estado, sociedade, época, humanidade) a sua pretensão. É a sua vingança.
503. Inveja e ciúme. — Inveja e ciúme são as partes pudendas da alma humana. A comparação talvez possa ser estendida.
504. O mais nobre dos hipócritas. — Não falar absolutamente de si mesmo é uma bem nobre hipocrisia."
Friedrich Nietzsche
"Humano demasiado humano I"
t.
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