Human perfectibility...
Nasce o ideal da nossa consciência da
imperfeição da vida. Tantos, portanto, serão os ideais possíveis, quantos forem
os modos por que é possível ter a vida por imperfeita.
A cada modo de a ter por imperfeita
corresponderá, por contraste e semelhança, um conceito de perfeição.
É a esse conceito de perfeição que se dá o nome
de ideal.
Por muitas que pareça que devem ser as maneiras por que se pode ter a vida por imperfeita, elas são, fundamentalmente, apenas três.
Por muitas que pareça que devem ser as maneiras por que se pode ter a vida por imperfeita, elas são, fundamentalmente, apenas três.
Com efeito, há só três conceitos possíveis de
imperfeição, e portanto, da perfeição que se lhe opõe.
Podemos ter qualquer coisa por imperfeita simplesmente por ela ser imperfeita, é a imperfeição que imputamos a um artefacto mal fabricado.
Podemos ter qualquer coisa por imperfeita simplesmente por ela ser imperfeita, é a imperfeição que imputamos a um artefacto mal fabricado.
Podemos, por contra, tê-la por imperfeita
porque a imperfeição resida, não na realização, senão na essência.
Será quantitativa ou qualitativa a diferença
entre a essência dessa coisa imperfeita e a essência do que consideramos
perfeição; quantitativa como se disséssemos da noite, comparando-a ao dia, que
é imperfeita porque é menos clara; qualitativa como se, no mesmo caso,
disséssemos que a noite é imperfeita porque é o contrário do dia.
Pelo primeiro destes critérios, aplicando-o ao conjunto da vida, tê-la-emos por imperfeita por nos parecer que falece naquilo mesmo por que se define, naquilo mesmo que parece que deveria ser.
Pelo primeiro destes critérios, aplicando-o ao conjunto da vida, tê-la-emos por imperfeita por nos parecer que falece naquilo mesmo por que se define, naquilo mesmo que parece que deveria ser.
Assim, todo o corpo é imperfeito porque não é
um corpo perfeito, toda a vida vida imperfeita porque, durando, não dura
sempre, todo o prazer imperfeito porque o envelhece o cansaço, toda a
compreensão imperfeita porque, quanto mais se expande, em maiores fronteiras
confina com o incompreensível que a cerca.
Quem sente desta maneira a imperfeição da vida,
quem assim a compara com ela própria, tendo-a por infiel à sua própria
natureza, força é que sinta como ideal um conceito de perfeição que se apoie na
mesma vida.
Este ideal de perfeição é o ideal helénico, ou
o que pode assim designar-se, por terem sido os gregos antigos quem mais
distintivamente o teve, quem, em verdade, o formou, de quem, por certo, ele foi
herdado pelas civilizações posteriores.
Pelo segundo destes critérios teremos a vida por imperfeita por uma deficiência quantitativa da sua essência, ou, em outras palavras, por a considerarmos inferior, inferior a qualquer coisa, ou a qualquer princípio, em o qual, em relação a ela, resida a superioridade.
Pelo segundo destes critérios teremos a vida por imperfeita por uma deficiência quantitativa da sua essência, ou, em outras palavras, por a considerarmos inferior, inferior a qualquer coisa, ou a qualquer princípio, em o qual, em relação a ela, resida a superioridade.
É esta inferioridade essencial que, neste
critério, dá às coisas a imperfeição que elas mostram.
Porque é vil e terreno,
o corpo morre, não dura o prazer, porque é do corpo, e por isso vil, e a
essência do que é vil é não poder durar, desaparece a juventude porque é um
episódio desta vida passageira, murcha a beleza que vemos porque cresce na
haste temporal.
Só Deus, e a alma, que ele criou e se lhe
assemelha, são a perfeição e a verdadeira vida.
Este é o ideal que poderemos chamar cristão,
não só porque é o cristianismo a religião que mais perfeitamente o definiu, mas
também porque é aquela que mais perfeitamente o definiu para nós.
Pelo último dos mesmos critérios teremos a vida por imperfeita por a julgarmos consubstanciada com a imperfeição, isto é, não existente, porque a não existência, sendo a negação suprema, é a absoluta imperfeição.
Pelo último dos mesmos critérios teremos a vida por imperfeita por a julgarmos consubstanciada com a imperfeição, isto é, não existente, porque a não existência, sendo a negação suprema, é a absoluta imperfeição.
Teremos a vida por ilusória, não já imperfeita,
como para os gregos, por não ser perfeita, não já imperfeita, como para os cristãos,
por ser vil e material, senão imperfeita por não existir, por ser mera
aparência, absolutamente aparência, vil portanto, se vil, não tanto com a
vileza do que é vil, quanto com a vileza do que é falso. É deste conceito de
imperfeição que nasce aquela forma de ideal que nos é mais familiarmente
conhecida no budismo, embora as suas manifestações houvessem surgido na Índia
muito antes daquele sistema místico, filhos ambos, ele como elas, do mesmo
substrato metafísico.
É certo que este ideal aparece, com formas e
aplicações diversas, nos espiritualistas simbólicos, ou ocultistas, de quase
todas as confissões.
Como, porém, foi na Índia que as manifestações
formais dele distintivamente apareceram, podemos ser imprecisos, porém não
seremos inexactos, se dermos a este ideal, por conveniência, o nome de ideal
índio.
Converter em realidades os nossos sentimentos
e propensões individuais, transformar as nossas disposições de ânimo em medidas
do universo, acreditar que, porque desejamos justiça ou amamos a justiça, a
Natureza terá necessariamente de ter o mesmo desejo ou o mesmo amor, supor que,
porque uma coisa é má, ela pode ser tornada melhor sem a piorar, estas são
atitudes românticas e definem todos os espíritos que se revelam incapazes de
conceber a realidade como algo situado fora deles próprios, como crianças implorando
por luas nesta Terra.
Quase todas as modernas reformas sociais são concepções românticas, um esforço para acomodar a realidade aos nossos desejos.
Quase todas as modernas reformas sociais são concepções românticas, um esforço para acomodar a realidade aos nossos desejos.
O aviltante conceito da perfectibilidade
humana.
Fernando
Pessoa
1st - “Textos de crítica e de intervenção
2nd - "A Educação do Estóico"
(Barão
de Teive)
Human
perfectibility...
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XXXI _ XII _ MMXIV